02 julho, 2016

Edgar Morin chega aos 95: Obrigado!!!




Quatro éticas: tolerância, igualdade, amizade e amor

Ética da tolerância

A intolerância é um equivalente psíquico do mecanismo imunológico da rejeição de si; constitui uma recusa daquilo que não está em conformidade com nossas ideias e crenças. A ética da tolerância
opõe-se à purificação ética. Há uma primeira tolerância, expressa por Voltaire, que respeita o direito do outro de exprimir-se, até mesmo de uma maneira que nos pareça ignóbil. Isso não significa tolerar o próprio ignóbil. Mas evitar que venhamos a impor nossa concepção de ignóbil para proibir uma declaração. Assim, para o ortodoxo, toda heresia é ignóbil; para o integrista, a liberdade de
pensamento é sempre ignóbil; para o stalinista, a crítica da URSS era uma calúnia ignominiosa.

A segunda tolerância é inseparável da opção democrática. A democracia alimenta-se de opiniões diversas e antagônicas e o princípio democrático convida cada um a respeitar a expressão das
ideias opostas às suas. A terceira tolerância obedece à concepção de Niels Bohr para quem o contrário de uma ideia profunda é uma outra ideia profunda; em outras palavras, há uma verdade na ideia antagônica à nossa que deve ser tolerada (...) A tolerância, recusando a intimidação, as interdições, o anátema, dá prioridade ao argumento, ao raciocínio, à demonstração. A tolerância é fácil para o indiferente e para o cínico, mas difícil para o sujeito de convicções.
Ela comporta o sofrimento; o sofrimento de tolerar a expressão de ideias revoltantes sem se revoltar.

Ética de liberdade

Se a liberdade é reconhecida na possibilidade da escolha — possibilidade mental de analisar e de formular a escolha, possibilidade exterior de exercer uma escolha —, a ética de liberdade para o outro
pode ser resumida pelo que diz Von Foerster: “Age de maneira que o outro possa aumentar o número das escolhas possíveis”.

Ética de fidelidade à amizade

A amizade não é somente uma relação afetiva de apego, de cumplicidade; a verdadeira amizade estabelece um vínculo ético de fraternidade quase sagrado entre amigos. A amizade parte de afinidades subjetivas, ou chega a elas, transpolíticas, transclassistas, transéticas e transraciais, como o amor. O caráter sagrado da verdadeira amizade dá-lhe prioridade sobre os interesses, as relações e a ideologia.
A qualidade da pessoa importa mais do que a qualidade das suas ideias ou opiniões. Como diz Lichtenberg: “Regra de ouro, não julgar os homens pelas suas opiniões, mas pelo que as suas opiniões fazem deles”.

Não se deve confundir amizade com camaradagem. Experimentei, dentro do grande Partido, o calor dos camaradas, mas aquilo não era amizade, pois, desde que houvesse condenação pelo aparelho,
cada um virava as costas ao amigo e, pior, denunciava-o como inimigo. O camarada pode tornar-se um falso irmão. O amigo é um irmão por escolha. A ética de fraternidade atua de maneira intensa
e concreta na amizade. O dever de amizade pode entrar em conflito com outros deveres sagrados; descobre então as contradições éticas das quais já falamos. A escolha que divide pode reclamar o
sacrifício da amizade, jamais a traição ao amigo.

Ética do amor

O amor é a experiência fundamental de ligação dos seres humanos. Leva-nos à realização pela nossa união. Se o amor leva ao paroxismo a aptidão integracionista do princípio altruísta de inclusão,
corre o risco de ser apropriado pelo princípio egocêntrico de exclusão, que monopoliza o ser amado e o encerra numa posse ciumenta.

O verdadeiro amor considera o ser amado como igual e livre; como diz Tagore, “exclui a tirania e a hierarquia.” Há muito mau amor não somente nas sociedades em que persiste a submissão das mulheres à autoridade masculina, mas também em nossa civilização individualizada em que dois egocentrismos podem, em confronto, dividir o amor. Nosso mundo sofre de insuficiência
de amor. Mas sofre também de mau amor (amor possessivo), de cegueiras de amor (inclusive, como já dissemos, na religião do amor e na ideologia da fraternidade), de perversões de amor
(fixações em fetiches, objetos, coleções de selos, anões de jardim), aviltamentos do amor que degeneram em ódio, ilusões de amor e amor por ilusões... Como fazer que se compreenda que o amor deve consagrar-se ao frágil mortal, vulnerável, efêmero, condenado
ao sofrimento e à morte?.

Não se pode resolver tudo pelo amor. O amor tem os seus parasitas íntimos, que o cegam, a sua ânsia autodestrutiva e os seus surtos devastadores. No máximo da intensidade de toda paixão, inclusive
a amorosa, precisamos contar com a vigilância da razão. Mas não existe razão pura, e a própria razão deve ser estimulada pela paixão. No mais frio da razão, precisamos de paixão, ou seja, de
amor. (Fragmento de “O Método 6”, a ética).

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ENTREVISTA EDGAR MORIN
QUASE UM SÉCULO DE COMPLEXIDADE E SABEDORIA

O coordenador do CS Juremir Machado da Silva* entrevista Edgar Morin que faz 95 anos no próximo dia 8

Defensor da teoria da complexidade, Edgar Morin, nascido em Paris, em 8 de julho de 1921, chega aos 95 anos de idade escrevendo, viajando, palestrando e comportando-se como o intelectual que tem
sido desde a sua resistência ao invasor nazista na França ocupada da II Guerra Mundial.
Autor de dezenas de livros, tem como obra-prima os seis volumes de “O Método”. Sociólogo, filósofo, epistemólogo, antropólogo e pensador da sociedade contemporânea, ele escreveu sobre quase tudo: das vedetes de cinema ao imaginário da morte. Esta edição do Caderno de Sábado traz
artigos de conhecedores da sua obra e esta entrevista, feita por e-mail, com o sempre jovem e curioso Edgar, que recebeu no distante ano 2000 o título de Doutor Honoris Causa pela PUCRS.

Caderno de Sábado – Qual é a sensação de ter visto quase tudo ao longo de um século: a Alemanha nazista, a guerra, a resistência, o império soviético e seu desaparecimento, os “ismos” – marxismo,
existencialismo, estruturalismo, maoísmo –, o homem na Lua, a televisão, a Internet?

Edgar Morin – A sensação de que não aprendemos com o passado, não tiramos as conclusões necessárias dos erros, que se reproduzem no presente: inconsciência, sonambulismo, ilusão.

CS – De todos esses acontecimentos qual o marcou mais?

Morin – A guerra e a resistência.

CS – O senhor é um homem de livros, dos livros. Teme que o livro, em papel, ao menos, vá
desaparecer?

Morin – A televisão não matou o rádio; o cinema não matou a literatura; o livro nas telas não matará o livro em papel, mas fará com que ele perca espaço.

CS – O senhor sempre combateu por um mundo melhor. Acredita que não há mais utopias. O capitalismo, apesar das suas crises, venceu em definitivo?

Morin – O planeta marcha para prováveis catástrofes, mas, às vezes, o improvável acontece
e muda o destino das coisas.

CS – A França passa por mais uma crise. O governo socialista quer modificar a legislação trabalhista. Trata-se de mais um sinal do fim de uma concepção de mundo?

Morin – Um mundo agoniza, mas um novo mundo ainda não
consegue nascer.

CS – O cinema e a televisão foram objetos dos seus estudos, que abordaram as estrelas, as
vedetes e os olimpianos. Qual personagem desse mundo do imaginário midiático mais o marcou?

Morin – Charles Chaplin.

CS – A sua cultura é gigantesca, enciclopédica. O senhor passou a vida lendo. Que livros mudaram a sua vida?

Morin – “Crime e Castigo” e “Os Irmãos Karamazov”, de Dostoievski; as obras de Montaigne, Pascal, Spinoza, Hegel, Karl Marx e Jean-Arthur Rimbaud.

CS – A reforma do pensamento, necessária à complexidade, defendida em suas obras, está em curso?

Morin – Ela está apenas começando.

CS – A idade mudou a sua maneira de ver a vida e o mundo?

Morin – Ainda não.

CS – A idade muda o olhar dos outros?

Morin – Uns veem a minha velhice; outros veem a juventude da minha velhice.

CS – O senhor tem medo de morrer?

Morin – De vez em quando.

CS – A poesia e os poetas ainda o encantam? Que poema vem em primeiro lugar à sua
mente?

Morin – “O Lago”, de Lamartine
(Veja parte do poema reproduzido abixo).


... A onda pôs-se atentiva, e a voz que me é tão cara.
Proferiu estas palavras: Tempo!, cessa teu voo! vós, horas propícias,
Suspendei a correria: Deixai-nos desfrutar as fugazes delícias
Do nosso melhor dia! Os miseráveis desta terra a vós imploram:
Fluí, fluí por eles;
Levai com seus dias os zelos que os devoram, Esquecei dos felizes.
Mas em vão peço ao tempo um só instante por ora,
Ele escapa-me e parte;
Eu digo a esta noite: sê mais vagarosa; e a aurora
Vai dissipar a noite.
Amemos pois, amemos pois! as horas fogem,
Corramos, desfrutemos!
O homem nunca tem um porto; o tempo, uma margem;
Ele flui, nós passamos!
Tempo cioso, momentos de embriaguez,
Em que o amor em torrentes traz contentamento,
Podem voar distantes com a rapidez
Dos dias de tormento?
O quê! não nos sobrará ao menos
uma mostra?
Quê! para sempre passado? tudo
é perdido? Esse tempo que os doa, esse
tempo que os tira,
Os manterá retidos?
Eternidade, nada, passado, ermo abismo,
Que fizestes dos dias que vós
consumistes?
Dizei-nos: devolvereis os sublimes
mimos
Que de nós arrancastes?
Ó lago! rochas mudas! grutas!
mata escura!
Vós, que o passar dos anos conserva ou remoça, 
Guardai desta noite, guardai, bela
natura,
Ao menos a lembrança!
Que esteja em tuas procelas e quietudes, Belo lago, e nas tuas
risonhas montanhas...
(tradução do poema “O Lago”,
Wagner Mourão Brasil)

* Coordenador Editorial: Juremir Machado da Silva | juremir@correiodopovo.com.br Editor: Marcos Santuario | msantuario@correiodopovo.com.br

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EDGAR MORIN, UM PENSADOR PARA O BRASIL, Por Edgar de Assis Carvalho**

AAntropologia fundamental de Edgar Morin considera o homem como ser biológico e cultural que
reorganiza o ecossistema que o rodeia, produz saberes, acumula experiências, desilusões, utopias,
afetividades. Esses amplos pressupostos são sistematizados a partir dos anos 1960 com as análises da morte, magia, cinema, comunicação.
Os seis volumes de “O Método”, escritos entre 1977-2004 — “A Natureza da Natureza”, “A Vida
da Vida”, “O Conhecimento do Conhecimento”, “As Ideias”, “A Humanidade da Humanidade”, “Ética” — constituem um projeto inacabado a ser interpretado, criticado, ampliado, até mesmo reescrito, como ele próprio sugere em A Via para o futuro da humanidade,
ensaio de 2011.
A prática da conectividade, da convivialidade, da transversalidade requer a abertura da razão, a
reforma do pensamento, a expansão a criatividade, a extinção do medo do erro, a explicitação da revolta.
Assumir esse desafio implica a rejeicão de qualquer tipo de certeza sobre o futuro do mundo.
O destino do sapiens-demens é obra aberta, rio majestoso, sereno e tempestuoso, ele reitera. A reorganização e a religação dos saberes são sempre biodegradáveis, jamais se convertem em doutrinas fechadas. Há algo, porém, que o distingue dos demais pensadores, expresso na intimidade de diários e ensaios sobre o contemporâneo, a reforma da educação, o mal-estar na civilização.
Intelectuais não costumam falar de si, adoram falar dos outros. Escondem-se sob a suposta autoridade
de conceitos, teorias, métodos. Diários, cartas, rascunhos costumam ser disponibilizados após a morte. Geralmente escritos nos intervalos de viagens, congressos, exílios, esses escritos confessionais desnudam a alma, expõem a fragilidade que caracteriza nossa condição.

 Alertas de Edgar Morin são sempre incisivos nesses sombrios tempos de barbárie e de estados
de exceção com os quais nos defrontamos. Os desafios do século XXI exigem a construção de uma
cidadania mundial, uma política de civilização para a Terra-pátria, texto de 1993.
A universalidade de valores cosmopolitas nunca é obtida pela soma ou subtração de interesses particulares, mas pela multiplicação de pulsões desejantes, guiadas pelas quatro modalidades da consciência: antropológica, telúrica, ecológica, cosmológica. Não apenas a ciência pode dar conta delas, mas as artes, as literaturas e as espiritualidades em geral.
Precisamos, porém, de muita paciência e revolta, para bater de frente nos poderes instituídos.
A reforma da educação exige pensadores empenhados na construção de uma ética de valores
universais que contradiga relativismos e particularismos esclerosados. Ensinar a viver, célebre
expressão de Rousseau, se converte em palavra de ordem a ser reativada e recriada na sociedade
como um todo.

A tarefa não se esgota por aí. É preciso caminhar por cidades sitiadas, universidades sucateadas,
sexualidades recalcadas, intolerâncias raivosas, corrupções generalizadas, para que os dilemas sociais se mostrem como verdadeiramente são, mesmo que essa missão seja penosa, custosa, por
vezes desestimulante.

A presença de Edgar Morin no Brasil exibe a força de suas ideias e utopias, mesmo que a
Universidade não lhes preste a devida atenção. Homenagens, títulos de honoris-causa são expressão
do reconhecimento da obra e do homem. A leitura atenta de seus escritos e entrevistas permitiria
entender muitos dos dilemas brasileiros atuais. Três homenagens recentes marcam minha vida: a primeira, por ocasião de seus 80 anos, no plenário da UNESCO, em Paris, em julho de 2001. Em minha intervenção, destaquei a ressonância de suas obras nesses tristes trópicos, a expansão de núcleos de estudos voltados à leitura de sua obra. A segunda, também em Paris, em 2006, na Maison de l’Amérique Latine. A celebração de seu aniversário transcorreu animada com mariachis que entoavam canções latino-americanas, pois tinha o apoio da Multiversidade do mundo real, inspirada nos fundamentos da complexidade. Edgar estava feliz por nos ter por perto: seus amigos, seguidores e, também, críticos de sua obra. A terceira foi na PUC de São Paulo, em novembro de 2008, no
TUCA, ao receber o honoris causa. Coube a mim saudá-lo em nome de professores e alunos. No
teatro, palco de muitas resistências a poderes ditatoriais, reiterei a convicção de que a partir daquele
momento a Universidade passara a apostar na universalidade da cultura e na unidade do humano.
Aos 87 anos, em seu agradecimento, confessou ser um eterno aprendiz, um caminhante sem caminho,
um herdeiro da utopia. Às vésperas de completar 95 anos, em junho deste ano, não pôde
comparecer ao Congresso Internacional sobre Educação, em Fortaleza, cujo tema era Saberes para
uma Cidadania Planetária. Gravou uma mensagem que guiou muitas das conferências, mesas-redondas, debates lá ocorridos. Visivelmente mocionado, desejou sucesso a todos nós que acreditamos na força propulsora de seu pensamento em prol de uma sociedade pautada pelo reconhecimento, solidariedade, altruísmo, bases de uma sociedade verdadeiramente justa e democrática.

** Consultor do Núcleo de Estudos da Complexidade, Titular de Antropologia PUC/SP

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Escafandrista do pensamento
MARIA DA CONCEIÇÃO DE ALMEIDA***


A expansão das ideias de Edgar Morin não se limita ao continente europeu. Basta consultar
o Google, bola de cristal da sociedade- mundo, para ter uma dimensão da magnitude de um
pensamento que ultrapassa fronteiras geográficas, nacionalidades, domínios de conhecimento.
O pensamento e o conhecimento são nômades, não têm nacionalidade nem pátria.
De “O Método”, em seis volumes, a títulos classificados como sociologia, antropologia, política,
educação, escritos de conjuntura, livros socioautobiográficos, diários, cinema, imaginário e cultura
de massa, a mesma obstinação: religar o que o pensamento da disjunção separou, fazer acontecer uma política de civilização e de humanidade, ultrapassar a prosa da vida pelo estado poético de viver, promover uma ecologia das ideias e da ação alimentada pela diversidade cultural e de saberes, questionar as verdades únicas, a ortodoxia e o mito salvacionista da tecnociência. Como no domínio
estendido da matéria e do vivo, também o homem, a cultura, a política, os amores e o pensamento
são marcados pela incompletude, o erro, o inacabamento e a incerteza. Daí porque dirá algumas
vezes: “o único pensamento que vale a pena vive à temperatura de sua própria destruição”.
Ou, quando fala sobre os intelectuais: “sou um deles, mas não sou igual a eles”.

Neste ano que completa 95 anos, esse escafandrista das águas profundas do conhecimento
demonstra que a vitalidade e vigor de um pensamento não se medem pela escala cronológica,
mas se expressa na ousadia de pensar bem, na resistência às palavras-mestras consagradas,
na insubmissão à cretinização da polícia do pensamento. Edgar é um pensador a quem incomoda o culto à sua personalidade. Essa afirmação que me foi repetida tantas vezes por Emilio Roger-Ciurana, nosso amigo comum, eu própria testemunhei ao longo dos anos de convivência intelectual e amizade.
“Faço um esforço constante”, diz Edgar, “para não me pôr num pedestal, porque a estátua
exterior, a que se mostra aos outros, vem da estátua interior, daquela que, inconscientemente,
se esculpe para si”. Herman Melville, autor de Moby Dick escreveu certa vez: “Gosto de todos os homens que mergulham. Qualquer peixe pode nadar perto da superfície, mas é preciso ser uma grande baleia para descer a cinco milhas ou mais. Desde o começo do mundo os mergulhadores do
pensamento voltam à superfície com os olhos injetados de sangue”. Gilles Deleuze completa:
“Admite-se facilmente que há perigos nos exercícios físicos extremos, mas o pensamento também
é um exercício extremo”. Como um bom escafandrista, Edgar Morin tem feito de seu pensamento um potente cilindro para se deslocar nas águas profundas de saberes diversos, incertezas e mistérios da condição humana. Diante da fúria de Moby Dick, consubstanciada na crueldade do mundo, na barbárie, na violência e na crise civilizacional ele tem respondido com exercícios extremos de pensamento capazes de nos encorajar na tarefa de refundação de um mundo melhor e mais justo.
Homem inteiro, adorável, intempestivo, eterno adolescente, amigo. O mergulhador das águas profundas do conhecimento volta à superfície sempre, porque não é um pensador de um só território. Em terra firme também encontra seus alimentos para pensar e viver, como numa história que me contou um dia.

Estava ele em Camoglie, um pequeno porto em Ligura, na Itália, observando um aquário, quando de súbito um peixe se fixou diante dele e durante algum tempo eles se olharam fixamente através do vidro. Foi um encontro arrebatador, um amor à primeira vista, me contou Edgar. Ele não queria sair dali, desejava permanecer, mas o funcionário do local anunciou o fim das visitas.
Um pensador inteiro! Um intelectual que ao mesmo tempo edifica um novo método para as
ciências e se sente arrebatado pelo olhar de pequeno peixe num aquário. Um parceiro. Um amigo. É esse o Edgar Morin que conheço e que alimenta minha vida intelectual, de fato, minha vida inteira, porque posso repetir como ele: “não sou daqueles que têm uma profissão, mas daqueles que têm uma vida”.

*** Professora da UFRN, Coordenadora do GRECOM (Grupo de Estudos da Complexidade)

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Os signos de Morin, por Roberto Ramos****

O Paradigma da Complexidade possui uma interpelação básica. Parece responder e corresponder
a uma pulsão humana: a demanda por um Conhecimento pleno, em sua provisoriedade. Pronuncia o diálogo entre as partes e o todo, e vice-versa. Procura derrubar os limites e as barreiras entre diferentes áreas do saber, com a sua interpelação transdisciplinar.
No universo semiológico do Paradigma da Complexidade, encontramos signos, comprometidos com os diálogos entre o todo e as partes, e vice-versa. São três signos: o Signo-objeto, o Signo-teórico
e o Signo-metodológico.

O Signo-objeto estabelece o objeto de estudo, singularizado pelo próprio Paradigma. É desenhado
pela própria importância do seu Nominalismo. O Nome não é uma opção aleatória, nem empreendimento gratuito. Tem um papel de fundação. Torna real. Concede materialidade. Transcende a sua temporalidade. O papel do nome é primordial. Materializa a condição de real. Garante as trocas simbólicas de conhecer e de ser reconhecido, de interpelar e de ser interpelado. A sua pronúncia não é vazia. Preenche-se de plenitude. Representa o aval de vida, de modo ativo, como realidade biológica e cultural. Revela-se, como um significante primordial, em essência e por excelência. A opção pelo termo, “Paradigma”, carrega uma carga cultural. É a categoria Relação e a Lei da Totalidade Social, que pertencem ao método Dialético. Também, a concepção de Estrutura. Podemos
nos interrogar sobre qual Dialética? A caminhada teórica e metodológica do Sujeito Morin não denega a sua condição de excomunista, discípulo do pensamento marxista. A Dialética se
adjetiva. Aparenta ser marxista.

O Signo-objeto condensa as influências culturais da Dialética marxista e do Estruturalismo. Tal simbiose não é anônima. Possui um nome e um endereço epistemológico: a Dialética Histórico-Estrutural (DHE), como um paradigma síntese, de caráter derivado. É um método, que compatibiliza a Estrutura com o movimento. Passou a contar com maior visibilidade a partir da década de 60, do século XX, através de pensadores importantes. Cabe recordar, entre outros, Claude Lévi-Strauss, na
Antropologia, Jacques Lacan, na Psicanálise, Louis Althusser, no Marxismo, e o próprio Barthes,
na Semiologia.

O Signo-metodológico estabelece o conceito sobre as práticas da produção de Conhecimento.
É instituído e constituído por sete Princípios da Complexidade, inscritos e circunscritos na rubrica
da Transdisciplinaridade. São singularizados, sem valoração de hierarquia: “O Primeiro é o Sistêmico ou Organizacional, o Segundo, o Hologramático, o Terceiro, o Anel Retroativo, o Quarto, o Anel Recursivo, o Quinto, o Auto-eco-organização, o Sexto, o Dialógico, e o
sétimo, o da Reintrodução”. Os princípios trazem duas informações básicas. Oferecem uma concepção de Conhecimento complexo. Além disso, estabelecem uma forma de produzi-lo. Ao aludir o Dialogismo entre o objeto e o sujeito, Morin faz a contramão de dois significantes básicos do Pensamento linear. São os fetichismos do Positivismo, com a divinização da objetividade,
e do Marxismo ortodoxo, com a fé absoluta no determinismo econômico. Há, no texto de Morin, ao evocar o objeto e o sujeito, duas realidades subjacentes. São as Condições Objetivas e as Condições
Subjetivas, evocadas, anteriormente, pela DHE, procurando abraçar o sentido do todo. Não há como desvincularmos o Signo metodológico da Complexidade das suas derivações da DHE.

O Signo-teórico é o conjunto de categorias – conceitos classificatórios – presente no Paradigma
da Complexidade. Pelos seus respectivos envolvimentos complexos, vamos referir o Conhecimento. A conjugação da ação de conhecer está relacionada à linguagem. Não é uma tradução qualquer, mas uma “tradução construtora”, aparelhada de “princípios/regras”. Precisa ter a capacidade de revelação e a autocapacidade do seu relativismo, porque o real, em toda a sua extensão e profundidade, é
indizível. O Conhecimento complexo acolhe as certezas e as incertezas. É provisório e transdiscipilinar. Está voltado para as dimensões objetivas e subjetivas. Envolve os diálogos entre a unidade e a diversidade. Estabelecese, como um sistema aberto às possibilidades de mudanças e
transformações. Um novo Signo-objeto vem à tona. É a Complexidade. Distinguese do objeto da DHE – os eventos históricos, em seus aspectos culturais e ideológicos. É transdisciplinar, em sua essencialidade. Transcende a geografia das Ciências Sociais e Humanas. Procura ocupar os espaços dialógicos com todas as ciências. Morin não inventou a Complexidade, mas teve um mérito apreciável. Transformou-a em um objeto do estudo científico. Concedeu-lhe relevância. Delimitou-a, concedendo o benefício à incerteza e desenhando a sua fisionomia transdisciplinar. Emergiu um novo Signoobjeto para a cientificidade. Saiu da imersão das entrelinhas e do oculto nos bastidores textuais. A Complexidade ascendeu à condição de objeto científico, em sua inscrição de relevância. Portanto, o Paradigma da Complexidade é uma opção metodológica. Apresenta um signo- objeto, um signo-teórico e um signo-metodológico compatíveis. Traz algumas características essenciais,
para a concepção e a produção do Conhecimento complexo, com influências do Estruturalismo
e da DHE. Propõe a sua provisoriedade, acolhendo as certezas e as incertezas. É um diálogo
da unidade e da diversidade, através da Transdisciplinaridade, com as suas completudes e com
as suas incompletudes.

**** Ph.D Professor Famecos- PUCRS

(Todos os textos usados nessa postagem foram transcritos do Jornal Correio do Povo deste sábado, dia 02 de julho de 2016. As imagens são minhas).



Veja, no link abaixo, uma homenagem que fiz ao filósofo Edgar Morin há anos atrás, a qual eu reitero na íntegra:





10 maio, 2016

Micropolitica dos afetos, ou, sobre amor, amores e paixões



Micropolítica dos afetos

Objetivos
·        Estabelecer conexões reais, simbólicas, imaginárias, ilusórias, poéticas, virtuais, artísticas, históricas e sociais entre os sentimentos amorosos/apaixonados e seus atores. 
·        Estimular a possibilidade de construção de novos territórios existenciais nas relações amorosas. 
·        Desconstruir ideias de referência ilusórias baseadas na romantização dos afetos e dos vínculos.
·        Instrumentalizar para a micropolítica nos relacionamentos, abrindo caminhos e possibilidades de invenção e intervenção nos cuidados para consigo e com o outro, pessoal e/ou profissionalmente.

Conteúdo programático
  • Afetos alegres e tristes I
    • Tipos de amor e suas características de vínculo. 
    • Culto às formas: vontade de imagem e aparência.
    • O amor entre dois inteiros-fragmentados. 
    • “A vocação” da mulher ao submetimento.
    • Mito, sonho e realidade.
    • Amor a si, amor ao outro, amor aos outros e amor à vida. 
  • Afetos alegres e tristes II
    • Amor líquido na sociedade líquida: O que é isso? Como? 
    • Medos, preconceitos e estereótipos.
    • As instituições, a moral e a ética: casamento e conjugalidade. 
    • Relações de poder atravessando relações amorosas.
    • Produção de subjetividade: violência e machismo. 
    • Identidade e singularidade: guerra dos gêneros ou guerra aos gêneros?
    • Mídia, moda e consumismo.
  • Afetos alegres e tristes III
    • Desejo de presença e desejo de ausência. 
    • Relacionamento simbiótico: amar/amor "demais" ou "de menos". Intoxicação, vício e abstinência.
    • Amores apaixonados e apaixonantes, reais e virtuais.
    • Sujeitos sem pausa: importância do tempo.
    • Da paixão à decisão.
  • Corpo e produção dos afetos: vínculo
    • Outramento.
    • Intensidade dos "bons e maus" encontros.
    • Eu comigo mesmo e eu com o outro: devir solteiro nas relações amorosas. 
    • Rompendo com o espelho e a simbiose: potência para instaurar singularidade. 
    • Um amor não tão demasiadamente humano e um amor não tão demasiadamente desumano: silêncio e contemplação... Uma nova suavidade à vista.
  • Devires sociais nas relações amorosas
    • Mulher, homossexual, criança, revolucionário, atômico e outros.
Operacionalização
Trabalho grupal que acontecerá mediante a discussão de textos, poesias, filmes, vídeos, partilha de experiências e auto-análise.

Cronograma
Grupo está em composição. A ideia é começarmos em junho ou julho, tão logo haja um número mínimo de pessoas inscritas e confirmadas. O dia e o horário será definido nas entrevistas... e os encontros serão semanais com duas ou três horas de duração.
  •  Marcar entrevista individual (imprescindível): cerikky@gmail.com com César.
  • Possibilidade de grupos fechados (para ONGS, empresas, gestores e equipes que trabalham com a temática) ou aos sábados.
Público Alvo
1. Pessoas que queiram trabalhar a temática, em si e nas suas relações, e, 2. Profissionais com formação superior concluída:  psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, nutricionistas, pedagogos, médicos, administradores, advogados e outros.  Vagas limitadas: máximo de 8 participantes.

Local
Instituto Pichon-Riviére de Porto Alegre: Rua Miguel Tostes 998, conj. 24, esquina Protásio Alves. Porto Algre/RS

Investimento
  • Entrevista: R$ 80,00 (Oitenta Reais) e
  • Cinco parcelas de R$ 300,00 (Trezentos Reais) ou à vista: R$ 1.350,00 (Mil e Trezentos e Cinqüenta Reais).
  • Os valores serão líquidos dos impostos de ISSQN, PIS, COFINS E CONT. SOCIAL (13,93 %), caso seja fornecida nota fiscal de serviços.
Certificado
Receberá certificado o participante que comparecer a no mínimo 75 % dos encontros grupais. Carga horária: 50 horas.

Coordenação
Cesar Ricardo Koefender – CRP 07/03744 - 
Psicólogo, analista institucional e psicoterapeuta



08 maio, 2016

Freud, biografia, psicanálise e o cotidiano do inconsciente


A entrevista abaixo, retirada do original El País (link no final), em amarelo, me provocou e
convocou para conversar. Nessa minha conversa, em verde, faço comentários suscitados por algumas inquietações... da leitura.

Élisabeth Roudinesco: “Freud nos tornou heróis das nossas vidas”
Intelectual francesa, renomada especialista em psicanálise, assina biografia do psiquiatra

Para escrever esse monumental volume com ares de biografia definitiva, Élisabeth Roudinesco (Paris, 1944) não quis acreditar “nem na lenda negra, nem na dourada”. Sigmund Freud en Son Temps et Dans le Nôtre (Sigmund Freud no seu tempo e no nosso, inédito no Brasil) parte da vontade de invalidar as condenações mais injustas, aquelas que costumam representar o pai da subjetividade moderna como um simples enganador, mas também de se contrapor às biografias de tom hagiográfico consagradas a esse personagem eternamente polêmico. Discípula de Deleuze, Foucault e Todorov, ex-integrante da Escola Freudiana fundada por Lacan e grande especialista na história da psicanálise, Roudinesco narra a vida de Freud como se fosse um palpitante romance ambientado na Viena da belle époque, avançando até seu exílio (e morte) em Londres nos primórdios da II Guerra Mundial.

No centro dessa paisagem, a autora situa um homem que cometeu erros e enfrentou mil contradições, mas conseguiu criar uma doutrina “a meio caminho entre o saber racional e o pensamento selvagem, entre a medicina da alma e a técnica da confissão”, com a qual conseguiu transformar os mortais em heróis de tragédia grega.

Pergunta. Sua biografia aspira a desenhar um retrato justo e equânime de Freud. A senhora a escreveu em reação aos ataques dos últimos anos contra o personagem?

Resposta. O livro surge da necessidade de repensar o personagem. A última biografia séria sobre Freud, assinada por Peter Gay, saiu há 25 anos. Desde então, quase tudo o que se publicou foram condenações inflamadas a extremos inverossímeis, assinadas por personagens que, na verdade, não conheciam sua história. Como ocorre frequentemente com os personagens polêmicos, Freud acabou se tornando uma caricatura de si mesmo, envolto em numerosos rumores e mentiras. Achei que tinha chegado a hora de voltar a um equilíbrio.

P. No livro, a senhora escreve, por exemplo, que ele não foi “um burguês libidinoso, adepto dos bordéis e da masturbação”, como já se disse tantas vezes. De onde surgem esses mal-entendidos?

R. Em se tratando do fundador de uma doutrina sobre a sexualidade, achei imprescindível saber como havia sido sua vida sexual. Percebi que havia livros inteiros sobre dezenas de lendas das quais não há prova alguma. Quis deixar claro que nada demonstra que ele foi um homem incestuoso, nem de tendência fascista, nem um usurário que cobrava o equivalente a 450 euros por sessão, e que nem engravidou a cunhada nem abandonou suas irmãs aos nazistas. Tampouco foi um homem misógino, embora às vezes paternalista, sim.

P. Outro dos mitos que a senhora destrói é o do gênio incompreendido. A senhora sustenta que, na verdade, ele conseguiu fascinar os seus contemporâneos, “toda uma geração obcecada pela introspecção”.

R. Seu primeiro biógrafo oficial, Ernest Jones, quis apresentá-lo como um gênio solitário contraposto às massas, mas é uma imagem equivocada. É verdade que seus livros foram objeto de um aceso debate, mas não se deve confundir a polêmica com a incompreensão. Por exemplo, quando Elias Canetti visitou Viena, em 1920, disse que descobriu uma cidade inteira perseguindo o seu Édipo. Freud não gostava da polêmica, porque era um homem bastante autoritário e não suportava o conflito, embora às vezes ele próprio o provocasse. Mas é falso que fosse um solitário. Frequentemente trabalhou em equipe.

P. Seu livro inscreve Freud na ebulição intelectual da Viena do fim de século. A descoberta do subconsciente foi na realidade uma aventura coletiva?

R. É óbvio. Freud foi um personagem muito vienense, inscrito em uma época plenamente europeia, na qual o continente se interrogava sobre seus mitos institucionais para renovar sua identidade, uma dinâmica muito compatível com a de Freud. Contemporâneo da emergência do sionismo e do primeiro feminismo, sua contribuição é parte de um grande movimento de emancipação. Começou querendo curar a neurose, mas acabou provocando uma liberação ainda maior. Mas também é verdade, como disse Stefan Zweig, que a burguesia da Belle Époque estava tão concentrada na introspecção que não soube antever a I Guerra Mundial, nem a irrupção do nacionalismo, nem a miséria do povo que a rodeava.

P. Foi também um homem cheio de paradoxos: pai de uma revolução que conduziu à modernidade, mas politicamente conservador; de forte cultura judaica, mas ateu; e libertador das pulsões sexuais, mas partidário da abstinência depois dos 40 anos. Freud era incoerente?

R. Tudo tem uma explicação. Será mesmo que tudo tem uma explicação? O próprio Freud disse que às vezes um charuto é somente um charuto e, não, portanto, a necessariamente interpretação de um símbolo fálico. A abstinência, a partir da qual formulou a teoria da sublimação, explica-se por seu desejo e o de sua esposa, Martha Bernays, de não terem mais filhos. Será mesmo que foi a partir disso? Tenho dúvidas. Até onde sei, a sublimação, como a mais elaborada e madura defesa do ego, aparece já nas citações sobre o chamado período de latência, momento em que a criança sublima seus impulsos eróticos (ou sexuais: aqui as palavras sempre são um problema...) até chegar à adolescência... e depois da "fase fálica". Pode ser que eu esteja fazendo misturas entre diferentes psicanálises, pois, também reconheço que ele pode ter desenvolvido sua teoria da sublimação desde a decisão de não ter mais filhos, claro, mas isso, não quer dizer, por sua vez, que a sublimação não apareça e ou seja usada pelo ego muito antes... ou muito depois. Poderiam ter usado anticoncepcionais, mas ele não tinha suficiente ímpeto sexual e não sabia nem utilizá-los. Freud não foi um homem nada sedutor. Não era um puritano, já que advogou por liberar as pulsões sexuais. Mas tampouco um libertário: acreditava que a pessoa deveria controlá-las. No plano político, eu o definiria como um conservador ilustrado, assim como Zweig. Foi um homem apanhado no turbilhão da revolução comunista, na qual nunca acreditou, e da emergência do fascismo. Perante essa situação, apostou em conservar as instituições existentes, acreditando que a velha Áustria ainda poderia se salvar.

P. Freud concebeu a psicanálise como uma doutrina apolítica, que deveria se manter à margem de qualquer militância. O que a senhora, acostumada a intervir frequentemente no debate público a partir de posições esquerdistas, acha disso?

R. De fato, Freud foi contrário ao comprometimento político e apostou numa espécie de neutralidade. Para ele, a psicanálise já era compromisso suficiente. Eu estou em total desacordo com essa parte. E eu também! Se a psicanálise parte do estudo dos vínculos familiares, como pode o psicanalista ficar à margem do debate sobre o casamento homossexual ou a gestação sub-rogada, para citar dois exemplos? Eu há muito tempo sou favorável a ambos, mas muitos colegas meus se expressam em sentido oposto ao meu. Não sei se você sabe que 70% dos psicanalistas franceses eram contra o casamento homossexual… Eu me pergunto como pode o psicanalista ficar à margem de qualquer casamento e à margem do casamento tomado como instituição. Tanto o casamento entre homossexuais como entre heterossexuais é hegemônico, pois é o casamento que é uma instituição. Apesar do avanço das leis que permitem o casamento e as uniões estáveis entre os primeiros, para evitar problemas de discriminação e legais, ainda assim, muitos psicanalistas não se debruçam sobre a instituição casamento, ficando sua escuta (escuta!) limitada às consequencias dessa institucionalização.  Essa é uma situação complexa na qual nem vou me deter aqui, mas, só para citar, sabemos que o casamento em si, como ação legal, formal e até informal, quando institucionalizado, funciona como estatuto formador de processos de subjetivação que raramente possibilita processos de singularização, pois "obriga", constrange e modifica quase tudo na dupla em questão: ideias, afetos, pensamentos e atitudes são moldados para funcionarem de acordo com os códicos sociais e, por que não dizer, morais, vigentes. Dito de outra forma, o casamento (sempre monogâmico) opera como célula social inicial na formação da família e, esta, como sabemos, tem sua função de reproduzir os valores majoritários: cada um dos casados deve se comportar como tal, seja hetero ou homoafetivo.

P. Como explica o conservadorismo da sua classe?

R. Acredito que, ao limitar o papel do psicanalista ao de mero observador, Freud terminou originando uma classe profissional reacionária. Sim, concordo. Não podemos nos deter em modelos varridos pela corrente da história, nem projetar no presente modelos de um passado remoto. Quando um psicanalista me diz que a família homoparental é contrária ao complexo de Édipo, eu respondo: “Pois mudemos o complexo de Édipo!”. Ou então, em muitos casos, esqueçamos o complexo de Édipo!

Muitos psicanalistas, freudianos e não freudianos, já reinventaram vários complexos de Édipo e, até mesmo, inventaram o Complexo de Electra, segundo dizem alguns, uma versão feminista e não machista correspondente às mulheres. A grande questão, nesse ponto, que me parece importante, é, conforme nos ensinaram Deleuze e Guattari, percebermos que os tais complexos de édipo, em qualquer uma de suas versãos, não são universais e nem exclusivos na configuração da identidade (seja de gênero ou não) e das subjetividades humanas, pois que existem muitas formas de existir que são definidas, "determinadas" por outras configurações que não essas.

É muito comum os psicanalistas e os psicoterapeutas de "orientação psicanalítica" fazerem interpretações do complexo de édipo "de" seus analisandos e "pacientes". Invariavelmente tais interpretações SÃO completamente baseadas na teoria e se configuram como um relâmpago em dia sem tempestade que despenca sobre a cabeça e o coração do analisando assujeitando-o e "adequando-o" à teoria. Eu chamo isso de leitura casada.
Até mesmo entre os partidários do complexo de édipo invertido (para caracterizar "a identidae sexual do homossexual) existe esse tipo de interpretação. Nessa interpretação, grosso modo, para resumir, o modelo teórico preconiza que a mulher quer matar o pai para ficar com a mãe e o homem quer matar a mãe para ficar com o pai. Nela o relâmpago também despenca e fere.

Existe algo que eu chamo de fundamentalista nesses usos da psicanálise: se o analisando contar um sonho em que mata a mãe ou o pai... será fulminado pelo relâmpago. Acho isso muito agressivo e triste: um reducionismo autoritário e fascista que se excerce numa relação de poder. Suposto saber? Pois sim... Pois, não!

Só para terminar esse aparte, vale lembrar, que faz pouco que a homossexualidade deixou de ser considerada doença. Ainda hoje há muitos que trabalham com o designação de homossexuailidade egodistônica (aquela que não é aceita pela pessoa)... que continua sendo considerada doentia.

 P. Você define a psicanálise como “uma epopeia sobre as origens, uma canção de gesta, com suas fábulas, mitos e imagens”. Ou seja, a invenção da subjetividade moderna acabou por transformar o sujeito em uma espécie de herói.

R. Exato. Esse foi o grande trabalho de Freud: nos transformou em heróis de nossas vidas. Pense que, um século atrás, davam poções a um doente, enfiavam-no em um sanatório e o tratavam como louco. Freud, por sua vez, lhes dizia: “Você é Édipo”. Os psicanalistas já não dizem isso, mas algo parecido: “Cuide de si mesmo. Não deixe que o tratem como um sujeito que consome medicamentos passivamente”. Essa teoria do sujeito não existe no behaviorismo [a outra principal escola de psicologia, oposta à psicanálise, que estuda o comportamento e a conduta objetiva, sem acreditar na existência de um subconsciente], que é uma técnica bastante estúpida, embora às vezes funcione. Na minha opinião, cada um deve cuidar da sua história pessoal. Quem não é capaz de verbalizá-la, por um mínimo que seja, está condenado à estupidez. Os autistas não costumam verbalizar suas histórias e nem seus afetos, experiências e outras coisas mais como se "quer" ou exige que o façam... e  nem por isso são estúpidos. Bem pelo contrário: MUITOS SÃO CONSIDERADOS INTELIGENTÍSSIMOS E SENSÍVEIS. O mesmo vale para quem tem diagóstico de bipolaridade (Transtorno Bipolar) , esquizofrenia e etc. 

Quero dizer que existe vida fora da palavra. O fato de necessitarmos dela, como valor majoritário e hegemônico, para nos comunicar, não quer dizer que não exista vida, vivido e vívidez fora dela. Aliás, já nos disse Nietzsche  que a palavra como fonte de comunicação é uma exigência do espírito gregário (viver em grupos) em nós e uma necessidade da nossa consciência, mas... vamos lembrar que a maior parte da nossa vida opera desde o inconsciente... e nisso, estou em total sintonia com ele e com Freud.
Aqui também é bom lembrar que TER um diagnóstico de bipolar, por exemplo, não é sinônimo de SER bipolar: algo que na prática cotidiana é não só confundido como reforçado por muitos psicanalistas e seus pacientes, também... que passam a FORMAR uma identidade, nesse caso, bipolar.  

P. Apesar dos seus efeitos na percepção da interioridade, muitos autores, como o filósofo Michel Onfray e o historiador Mikkel Borch-Jacobsen, continuam definindo a psicanálise como uma fraude. Por que é tão difícil aceitar sua existência?

R. É uma teoria muito contundente, que não é fácil de digerir. Na primeira metade do século passado, ela era condenada em nome da moral. Hoje, o motivo apela ao que alguns chamam de ciência. Atualmente, a psiquiatria está desaparecendo não sei de que realidade e em que realidade ela está falando, mas, aqui, no Brasil, a psiquiatria está forte e robusta, ditando suas práticas para "a gorda saúde dominante" CONSUMIR... ou se poderia dizer para a gorda doença dominante, e os neurologistas se transformaram em simples distribuidores de remédios e a maioria dos psiquiatras também, bem como os médicos clínicos que diagnosticam depressão e saem receitanto psicotrópticos. Isso ocorre porque tratar um paciente com um remédio padronizado é menos custoso do que oferecer um tratamento personalizado e que permita sua evolução. Nesse contexto, é normal que a psicanálise e sua maneira de entender as doenças da alma incomodem. O problema é que as pessoas já estão fartas de tomar remédios. Será? Acho que não. O que vejo é que elas, no geral, adoram: acham que "age rápido", custa menos e dá menos trabalho porque "diminui os sintomas". Se suprimirmos uma doutrina racional como a psicanálise como possível solução, essa gente que já não aguenta mais medicamentos terminará recorrendo aos feiticeiros dos remédios paralelos… Não os chamaria, a todos, de feiticeiros, embora os há. Mas, sim, muitos buscam Ioga, florais e outras práticas alternativas como ÚNICA atenção à sua saúde mental. E, o problema, aqui, na minha opinião e experiência, está na exclusividade que a palavra ÚNICA remete. Fui delegado regional, pelo RS, num encontro em Brasília, que debateu o uso associado de práticas ditas alternativas pelos psicólogos. Nosso Estado teve uma das posições mais abertas e abrangentes sobre o assunto, mas fomos vencidos por critérios de "cientificidade" e de reservas de mercado.

P. A psicanálise precisa mudar para sobreviver?

R. Sim. Deve aspirar a ocupar o lugar que os behavioristas conquistaram. Para isso, terá que se transformar. As pessoas já não querem deitar em um divã três vezes por semana durante os próximos 20 anos. Certamente!!! A psicanálise deve evoluir no ritmo imposto pelo mundo. Deverá passar a apostar em tratamentos mais curtos, durante os quais se interaja com o paciente cara a cara, e não no divã. Isso seria revolucionário. Freud falou sobre o "ouro" da psicanálise e a "prata e o bronze" da psicoterapia: ainda é válido? Para quem? Por que? Deverá aceitar também tratar qualquer pessoa, assim como um médico em um hospital. Idem: revolucionário! As novas gerações já estão praticando uma mudança. Não tenho essas informações. O que sei é que as "psicoterapias de orientação psicanalítica" fazem isso, mas ISSO não é psicanálise. Ou é? O problema é que fazem apenas estudos de psicologia e não de ciências humanas (sim, sim e sim: especialmente filosofia, antropologia e sociologia... bem como política) e , motivo pelo qual os psicanalistas jovens estão menos bem formados e são menos cultos. Para ser psicanalista não é preciso apenas ser inteligente, mas também culto. Aqui eu pergunto o que é cultura e o que é culto: O que são esses conceitos? Desde Guattari... falamos mais, pelos menos "nós", (essas "filiações" são bem complexas e, também, complicadas: um problema-dentro do problema-dentro do problema) da esquizoanálise e da filosofia da diferença, em produção de subjetividade e processos de singularização. Cultura, nos diz Guattari, é um conceito reacionário.
Por "cultos" entende-se aqueles que conhecem os clássicos (assim ditos?)? Aqueles que leram os gregos, Platônicos, Socráticos e pré-Socráticos? Os que vão aos teatros e, além disso, ouvem música clássica? Certamente que existe uma "cultura" nestes citados, assim como, também, existe outra cultura noutros: nas mais váriadas formas de expressão artística, seja no Rock, na música popular, no Hip Hop (e suas variações); no cinema; nos movimentos populares; na produção literária dita "menor" (por estar fora do considerado hegemônico e ao gosto do capital); nas práticas religiosas; na política... dentre outros.

Chegando ao final dessa conversa, percebo que ela é mais é uma conversa com a psicanálise e com os seus usos do que com o texto da eminente psicanalista. 

Também me surpreende, e isso muito mais ainda, desde Freud, de novo e de novo, com o fato de que quase toda a população do planeta AINDA não acredita no inconsciente e considera que a totalidade da sua vida ocorre e decorre do que pensa, sente e age conscientemente.
Até quando?
É a prática psicanalitica, psicoterápica (de qualquer orientação) e o conhecimento da filosofia tão pouco difundido, conhecido, discutido? Ainda é elitista? Ou, embora o CONCEITO, a ideia, de inconsciente, esteja difundida, ela é de difícil "aplicação", manuseio,  "conhecimento" implicado?

Certamente não é tão fácil aceitar, admitir, viver com o conhecimento de que nós existimos fora da nossa consciência, fora daquilo que sabemos conscientemente. Sabemos conscientemente?

Guattari e Deleuze nos mostraram que o tal inconsciente não é meramente uma caixa de pandora, um depósito de traumas, desejos reprimidos e esquecimentos dolorosos. Nos mostraram que, apesar disso, ele é predominantemente, produção desejante, vontade de inéditos. Potência. Produção de diferença. Talvez aí entre, de novo, a psicanálise e suas derivações: foi ela, como mais um hegemônico, que disseminou essa ideia de um inconsciente... quase inacessível... dolorido e doloroso. Doloso?

 Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/02/cultura/1441210297_491115.html 

 

Clínica ética, estética e política



Ressonâncias intensivas I

No curso, excelente, com o Eduardo Passos, que ocorreu no Instituto Pichon-Rivière nesta segunda e terça-feiras (foi em maio  de 2014 e eu aproveito para postar aqui... lembrado pelas recordações do Facebook)... falamos sobre ocupar o contemporâneo, sobre se instalar no contemporâneo...um dos aspectos da abordagem transdisciplinar da clínica (Klinica) e falamos sobre a intercessão da clínica com a política, com a arte e com a filosofia.

O professor citou a arte de Marina Abramovic “The Artist is Present” (“A artista está presente”), que esteve em cartaz no MoMa, em Nova York, em 2010.
A artista pediu que a produção instalasse uma mesa e duas cadeiras para que as pessoas sentassem de frente e a encarassem, pelo tempo que quisessem (mais tarde, a mesa foi suprimida). A fila para tentar olhar para Marina pelo menos por alguns minutos era gigante e permaneceu assim durante toda a exposição, que durou três meses.

Marina fala sobre o que sentiu durante a performance que durou exatamente 736.030 minutos, de acordo com as contas dela:
"E não houve história, não houve uma crescente, não houve um desenvolvimento… era apenas sentar-se. E o público tinha a inteira liberdade de ficar ali o quanto quisesse. O curador da exposição me disse que talvez seria apenas uma cadeira na minha frente, na maioria do tempo. Aconteceu que nós batemos o recorde de visitas do museu e, de 850 mil visitantes, 1.750 sentaram-se na minha frente. Sem fim. Houve uma pessoa que ficou sentada ali durante sete horas. Eles esperavam a noite inteira para sentar-se, apenas porque havia algo realmente acontecendo, de uma forma que é quase racionalmente inexplicável."

Ressonâncias intensivas II

Juntos, Marina Abramovic e Ulay, produziram arte durante 12 anos nômades, entre 1976 e 1988, viajando em um trailer. Eles se diziam um só corpo (nascidos no mesmo dia, em anos diferentes), feito de duas cabeças, mas com a mesma identidade e propósito artístico. “O principal problema neste relacionamento foi o que fazer com o ego de dois artistas. Eu tive que descobrir como colocar o meu de lado, assim como ele, para criar algo como um estado hermafrodita de ser que nós chamamos de morte do ser”, explica Marina.

Marina e Ulay permaneceram juntos até 1988, quando ele resolveu terminar, provocando a revolta da artista que disse “Todos se esforçam tanto para começar um relacionamento e tão pouco para acabar com ele”. Como bons artistas dramáticos e intensos, eles fizeram uma última performance antes da separação, realizada na Muralha da China.. chamada .The Lovers – The Great Wall Walk, Ela veio do leste e ele do Oeste. Encontraram-se após três meses no meio e se despediram.

Mas nem tudo foi arte em seu estado mais puro. Em 2003, Marina revelou que o término aconteceu também por causa de uma traição de Ulay e que ele ficou com todas as obras depois da separação, tornando sua vida um inferno. Segundo Marina, ela só conseguiu recuperar as obras comprando tudo de Ulay de novo. E assim, depois deste término doloroso, eles ficaram sem se ver durante mais de 20 anos. Até o momento da exposição no MoMa.
Este video mostra o encontro deles.




A ideia de trazer esse vídeo foi para falarmos sobre a capacidade e a possibilidade e a necessidade de fazermos da nossa vida uma obra de arte: não é necessário ser artista (profissional) para fazer isso!

Ressonâncias intensivas III

O professor Eduardo Passos também nos apresentou, nas aulas dessa semana no Instituto Pichon-Rivière uma imagem, que ele usou como "disparador"... como "dispositivo" para provocar o pensamento..
E ele conseguiu. Muiitas ressonâncias e efeitos estão acontecendo, sem dúvida, entre nós... e vão conttinuar produzindo "rizomas" e aprendizagens... sem fim!
"Angelus Novus é um desenho à nanquim, giz pastel e aquarela sobre papel, feito por Paul Klee em 1920. Atualmente faz parte da coleção do Museu de Israel em Jerusalém.

Em sua nona tese no ensaio “Teses Sobre o Conceito de História,” Walter Benjamin, que possuiu a tela por muitos anos, escreveu:
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso."
Fonte: Wikipédia

Eduardo Passos desenvolveu na sua aula a idéia de que ... as asas abertas e o vento (da tempestade)... são o intempestivo... o movimento... no qual podemos, devemos... nos colocar. Nos instalar...
São as forças instituintes... que geram, produzem... diferença.
Elas são o inconsciente...
É nelas, nas asas e no vento, que estão as forças de mudança.
Falamos sobre o vivido da vida e... o vívido da vida!
Foi e está sendo (pelas múltiplas ressonâncias) um bom encontro!!!
.....................

A complexa atividade de pensar, de criar conceitos, fazer problemas - problematizar - é para Deleuze, a atividade de fazer proliferar a intensidade dos bons encontros, aqueles que acionam potências e intensidades.
A arte, por exemplo, fazendo problema para a ciência, a ciência fazendo problema para a filosofia, a filosofia fazendo problema para a própria filosofia, para a clínica a política, etc...
Campo de tensões que provocam o pensar, provocam o pensamento... tensões as quais movimentam e causam diferença.
As diferenças, em Deleuze, potencializam a vida justamente porque a ressonância entre conceitos, idéias, campos, etc., fazem problema, forçam a pensar e criam, assim, o novo.
Questão impares, essas, para a clínica... que é ética, estética e política.


14 maio, 2015

Direitos do idoso, Políticas Públicas e mais...


Temos muito o que avançar nesses temas todos: cuidados e direitos do idoso, combate ao preconceito racial, fim da violência de gênero e familiar e para com as mulheres e minorias em geral... no cuidado para com as crianças e adolescentes... enfim...
As políticas públicas ajudam (e muito), mas, sozinhas, não bastam... ou seja, são necessárias mas não suficientes.

Como profissional da saúde, cotidianamente intervenho nos "modos de subjetivação" que se processam nos "adultos"... cansados e "sem tempo" de "lidar" com seus idosos... querem, com frequencia, se livrar do fardo e institucionalizá-los (o que, em determinadas condições é inevitável).

Parece-me que "essa lógica" do descarte é só uma variação dos demais abandonos a que estão sujeitos tantos sujeitos, agora, tidos como objetos (indesejáveis).
Numa analogia livre... poucos adultos jovens, por exemplo, gostam de trocar as fraldas dos seus bebês, mas o fazem, de uma forma ou de outra, diariamente... com muito menos queixas e desconforto... tudo porque a criança "tem toda a vida pela frente" e porque ela está se formando, aprendendo... se desenvolvendo.
Com os idosos... que tem "alguma" vida pela frente... não se dá algo diferente: eles também estão se formando, aprendendo... se desenvolvendo, mas de outro jeito.
A questão, assim, não é a idade, mas a idéia que se tem dela e da tal previsibilidade.

 Será a dialógica da vida e da morte que ocasiona essa diferença de posturas?
Acho que sim.
Em pleno século XXI a morte ainda é um tabu (não estou associando velhice com morte, mas sim... velhice com "previsibilidade" de morte).
Assim como ... infância e idade tenra com "previsibilidade" de vida.
Se tudo acontecer de acordo com "a natureza" das coisas e da vida, sim, crianças vão se tornar adultos e velhos morrem antes de adultos, adolescentes e crianças. Natureza?
O que acontece é que, na natureza... há vida e morte em todas as idades e por diferentes motivos - todos os dias - e nos esquecemos disso.

Abaixo, penso, uma frase e um texto que ajudam a entender melhor isso
(eu os uso no meu seminário do Morin):

”Viver de morte, morrer de vida.”
(Heráclito de Éfeso)

“Viver de morte, morrer de vida.” Sim, é enigmático
Podemos pensar que essa frase tem um primeiro sentido que seria este: para viver deve-se comer, logo, deve-se matar as plantas e os animais, logo, vive-se de morte. E finalmente, de tanto viver, desgastamo-nos e morre-se de viver.Mas é um sentido superficial.E creio que é hoje, vários séculos depois. que compreendemos a profundidade dessa frase. Por quê? Porque sabemos hoje que nossos organismos, o seu como o meu, vivem de moléculas que se degradam sem parar. Logo, nossas células reconstituem as moléculas que morrem. Mas nossas próprias células se degradam. Só nossas células cerebrais e algumas hepáticas permanecem as mesmas . As células de nosso corpo sem transformam sem parar, morrem e renascem. O fato de podermos reconstituir nossas células faz com que possamos rejuvenescer. Efetivamente nossas células vivem da morte das moléculas, nossos organismos vivem da morte de nossas células. E diria mesmo que a sociedade vive da morte de seus indivíduos. Pois indivíduos novos aparecem, e eles recebem cultura e educação, e rejuvenesce a sociedade.Logo, vivemos de morte. E morremos de vida. Não no sentido em que nos desgastamos como um motor de carro, mas no sentido em que nos esgotamos a rejuvenescer. Cada batida de nosso coração envia o sangue para se “desintoxicar” em nossos pulmões e limpar todas as nossas células. Pode-se, portanto, dizer que você rejuvenesce sessenta vezes por minuto. Passamos nosso tempo a rejuvenescer. E finalmente, e é aqui que está a beleza da frase de Heráclito, rejuvenescer acaba por ser mortal. E morre-se de tanto rejuvenescer.
Eis, portanto, uma frase importante. Porque a morte e a vida, essas duas idéias antagônicas, são ao mesmo tempo complementares. Se não houvesse morte,, nós não viveríamos".
(Edgar Morin)

Nessa lógica, para finalizar meu raciocínio... cuidar de idosos também é cuidar da vida (que há neles). E... é cuidar na nossa vida COM eles... estejam eles de fraldas ou sem, na clínica, na geriatria ou não.
Vida essa, que mesmo nas mais difíceis situações e configurações... ainda é vida.
Junto com as políticas públicas precisamos de (mais e melhor) educação, de (mais e melhor) enfrentamento dos próprios preconceitos (sobre o que é vida e morte, por exemplo) e de mais e melhores formas de pensar e encarar... a vida e a morte.

Simples assim.
Simples? Não!
É difícil e complexo.
Mas possível e necessário. 

Outras formas de abuso, tanto na infância quanto na velhice, são: discussões intermináveis "sobre quem tem a razão" ou sobre coisas banais... como mero exercício de poder nas relações; ausência de limites claros, corretos e justos (que não tenham conotação punitiva, revanchista e de indignidade); descaso ou negligência para com necessidades afetivas e de relacionamento, estímulos e incentivo à independência e autonomia possíveis; infantilização e culpabilização; dentre outros... 

Todas as formas de discriminação baseadas em preconceitos podem se configurar como maus-tratos abusos morais, psicológicos e ou legais.