Quatro éticas: tolerância, igualdade, amizade e amor
Ética da tolerância
A intolerância é um equivalente psíquico do mecanismo imunológico da rejeição de si; constitui uma recusa daquilo que não está em conformidade com nossas ideias e crenças. A ética da tolerância
opõe-se à purificação ética. Há uma primeira tolerância, expressa por Voltaire, que respeita o direito do outro de exprimir-se, até mesmo de uma maneira que nos pareça ignóbil. Isso não significa tolerar o próprio ignóbil. Mas evitar que venhamos a impor nossa concepção de ignóbil para proibir uma declaração. Assim, para o ortodoxo, toda heresia é ignóbil; para o integrista, a liberdade de
pensamento é sempre ignóbil; para o stalinista, a crítica da URSS era uma calúnia ignominiosa.
A segunda tolerância é inseparável da opção democrática. A democracia alimenta-se de opiniões diversas e antagônicas e o princípio democrático convida cada um a respeitar a expressão das
ideias opostas às suas. A terceira tolerância obedece à concepção de Niels Bohr para quem o contrário de uma ideia profunda é uma outra ideia profunda; em outras palavras, há uma verdade na ideia antagônica à nossa que deve ser tolerada (...) A tolerância, recusando a intimidação, as interdições, o anátema, dá prioridade ao argumento, ao raciocínio, à demonstração. A tolerância é fácil para o indiferente e para o cínico, mas difícil para o sujeito de convicções.
Ela comporta o sofrimento; o sofrimento de tolerar a expressão de ideias revoltantes sem se revoltar.
Ética de liberdade
Se a liberdade é reconhecida na possibilidade da escolha — possibilidade mental de analisar e de formular a escolha, possibilidade exterior de exercer uma escolha —, a ética de liberdade para o outro
pode ser resumida pelo que diz Von Foerster: “Age de maneira que o outro possa aumentar o número das escolhas possíveis”.
Ética de fidelidade à amizade
A amizade não é somente uma relação afetiva de apego, de cumplicidade; a verdadeira amizade estabelece um vínculo ético de fraternidade quase sagrado entre amigos. A amizade parte de afinidades subjetivas, ou chega a elas, transpolíticas, transclassistas, transéticas e transraciais, como o amor. O caráter sagrado da verdadeira amizade dá-lhe prioridade sobre os interesses, as relações e a ideologia.
A qualidade da pessoa importa mais do que a qualidade das suas ideias ou opiniões. Como diz Lichtenberg: “Regra de ouro, não julgar os homens pelas suas opiniões, mas pelo que as suas opiniões fazem deles”.
Não se deve confundir amizade com camaradagem. Experimentei, dentro do grande Partido, o calor dos camaradas, mas aquilo não era amizade, pois, desde que houvesse condenação pelo aparelho,
cada um virava as costas ao amigo e, pior, denunciava-o como inimigo. O camarada pode tornar-se um falso irmão. O amigo é um irmão por escolha. A ética de fraternidade atua de maneira intensa
e concreta na amizade. O dever de amizade pode entrar em conflito com outros deveres sagrados; descobre então as contradições éticas das quais já falamos. A escolha que divide pode reclamar o
sacrifício da amizade, jamais a traição ao amigo.
Ética do amor
O amor é a experiência fundamental de ligação dos seres humanos. Leva-nos à realização pela nossa união. Se o amor leva ao paroxismo a aptidão integracionista do princípio altruísta de inclusão,
corre o risco de ser apropriado pelo princípio egocêntrico de exclusão, que monopoliza o ser amado e o encerra numa posse ciumenta.
O verdadeiro amor considera o ser amado como igual e livre; como diz Tagore, “exclui a tirania e a hierarquia.” Há muito mau amor não somente nas sociedades em que persiste a submissão das mulheres à autoridade masculina, mas também em nossa civilização individualizada em que dois egocentrismos podem, em confronto, dividir o amor. Nosso mundo sofre de insuficiência
de amor. Mas sofre também de mau amor (amor possessivo), de cegueiras de amor (inclusive, como já dissemos, na religião do amor e na ideologia da fraternidade), de perversões de amor
(fixações em fetiches, objetos, coleções de selos, anões de jardim), aviltamentos do amor que degeneram em ódio, ilusões de amor e amor por ilusões... Como fazer que se compreenda que o amor deve consagrar-se ao frágil mortal, vulnerável, efêmero, condenado
ao sofrimento e à morte?.
Não se pode resolver tudo pelo amor. O amor tem os seus parasitas íntimos, que o cegam, a sua ânsia autodestrutiva e os seus surtos devastadores. No máximo da intensidade de toda paixão, inclusive
a amorosa, precisamos contar com a vigilância da razão. Mas não existe razão pura, e a própria razão deve ser estimulada pela paixão. No mais frio da razão, precisamos de paixão, ou seja, de
amor. (Fragmento de “O Método 6”, a ética).
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ENTREVISTA EDGAR MORIN
QUASE UM SÉCULO DE COMPLEXIDADE E SABEDORIA
O coordenador do CS Juremir Machado da Silva* entrevista Edgar Morin que faz 95 anos no próximo dia 8
Defensor da teoria da complexidade, Edgar Morin, nascido em Paris, em 8 de julho de 1921, chega aos 95 anos de idade escrevendo, viajando, palestrando e comportando-se como o intelectual que tem
sido desde a sua resistência ao invasor nazista na França ocupada da II Guerra Mundial.
Autor de dezenas de livros, tem como obra-prima os seis volumes de “O Método”. Sociólogo, filósofo, epistemólogo, antropólogo e pensador da sociedade contemporânea, ele escreveu sobre quase tudo: das vedetes de cinema ao imaginário da morte. Esta edição do Caderno de Sábado traz
artigos de conhecedores da sua obra e esta entrevista, feita por e-mail, com o sempre jovem e curioso Edgar, que recebeu no distante ano 2000 o título de Doutor Honoris Causa pela PUCRS.
Caderno de Sábado – Qual é a sensação de ter visto quase tudo ao longo de um século: a Alemanha nazista, a guerra, a resistência, o império soviético e seu desaparecimento, os “ismos” – marxismo,
existencialismo, estruturalismo, maoísmo –, o homem na Lua, a televisão, a Internet?
Edgar Morin – A sensação de que não aprendemos com o passado, não tiramos as conclusões necessárias dos erros, que se reproduzem no presente: inconsciência, sonambulismo, ilusão.
CS – De todos esses acontecimentos qual o marcou mais?
Morin – A guerra e a resistência.
CS – O senhor é um homem de livros, dos livros. Teme que o livro, em papel, ao menos, vá
desaparecer?
Morin – A televisão não matou o rádio; o cinema não matou a literatura; o livro nas telas não matará o livro em papel, mas fará com que ele perca espaço.
CS – O senhor sempre combateu por um mundo melhor. Acredita que não há mais utopias. O capitalismo, apesar das suas crises, venceu em definitivo?
Morin – O planeta marcha para prováveis catástrofes, mas, às vezes, o improvável acontece
e muda o destino das coisas.
CS – A França passa por mais uma crise. O governo socialista quer modificar a legislação trabalhista. Trata-se de mais um sinal do fim de uma concepção de mundo?
Morin – Um mundo agoniza, mas um novo mundo ainda não
consegue nascer.
CS – O cinema e a televisão foram objetos dos seus estudos, que abordaram as estrelas, as
vedetes e os olimpianos. Qual personagem desse mundo do imaginário midiático mais o marcou?
Morin – Charles Chaplin.
CS – A sua cultura é gigantesca, enciclopédica. O senhor passou a vida lendo. Que livros mudaram a sua vida?
Morin – “Crime e Castigo” e “Os Irmãos Karamazov”, de Dostoievski; as obras de Montaigne, Pascal, Spinoza, Hegel, Karl Marx e Jean-Arthur Rimbaud.
CS – A reforma do pensamento, necessária à complexidade, defendida em suas obras, está em curso?
Morin – Ela está apenas começando.
CS – A idade mudou a sua maneira de ver a vida e o mundo?
Morin – Ainda não.
CS – A idade muda o olhar dos outros?
Morin – Uns veem a minha velhice; outros veem a juventude da minha velhice.
CS – O senhor tem medo de morrer?
Morin – De vez em quando.
CS – A poesia e os poetas ainda o encantam? Que poema vem em primeiro lugar à sua
mente?
Morin – “O Lago”, de Lamartine
(Veja parte do poema reproduzido abixo).
... A onda pôs-se atentiva, e a voz que me é tão cara.
Proferiu estas palavras: Tempo!, cessa teu voo! vós, horas propícias,
Suspendei a correria: Deixai-nos desfrutar as fugazes delícias
Do nosso melhor dia! Os miseráveis desta terra a vós imploram:
Fluí, fluí por eles;
Levai com seus dias os zelos que os devoram, Esquecei dos felizes.
Mas em vão peço ao tempo um só instante por ora,
Ele escapa-me e parte;
Eu digo a esta noite: sê mais vagarosa; e a aurora
Vai dissipar a noite.
Amemos pois, amemos pois! as horas fogem,
Corramos, desfrutemos!
O homem nunca tem um porto; o tempo, uma margem;
Ele flui, nós passamos!
Tempo cioso, momentos de embriaguez,
Em que o amor em torrentes traz contentamento,
Podem voar distantes com a rapidez
Dos dias de tormento?
O quê! não nos sobrará ao menos
uma mostra?
Quê! para sempre passado? tudo
é perdido? Esse tempo que os doa, esse
tempo que os tira,
Os manterá retidos?
Eternidade, nada, passado, ermo abismo,
Que fizestes dos dias que vós
consumistes?
Dizei-nos: devolvereis os sublimes
mimos
Que de nós arrancastes?
Ó lago! rochas mudas! grutas!
mata escura!
Vós, que o passar dos anos conserva ou remoça,
Guardai desta noite, guardai, bela
natura,
Ao menos a lembrança!
Que esteja em tuas procelas e quietudes, Belo lago, e nas tuas
risonhas montanhas...
(tradução do poema “O Lago”,
Wagner Mourão Brasil)
* Coordenador Editorial: Juremir Machado da Silva | juremir@correiodopovo.com.br Editor: Marcos Santuario | msantuario@correiodopovo.com.br
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EDGAR MORIN, UM PENSADOR PARA O BRASIL, Por Edgar de Assis Carvalho**
AAntropologia fundamental de Edgar Morin considera o homem como ser biológico e cultural que
reorganiza o ecossistema que o rodeia, produz saberes, acumula experiências, desilusões, utopias,
afetividades. Esses amplos pressupostos são sistematizados a partir dos anos 1960 com as análises da morte, magia, cinema, comunicação.
Os seis volumes de “O Método”, escritos entre 1977-2004 — “A Natureza da Natureza”, “A Vida
da Vida”, “O Conhecimento do Conhecimento”, “As Ideias”, “A Humanidade da Humanidade”, “Ética” — constituem um projeto inacabado a ser interpretado, criticado, ampliado, até mesmo reescrito, como ele próprio sugere em A Via para o futuro da humanidade,
ensaio de 2011.
A prática da conectividade, da convivialidade, da transversalidade requer a abertura da razão, a
reforma do pensamento, a expansão a criatividade, a extinção do medo do erro, a explicitação da revolta.
Assumir esse desafio implica a rejeicão de qualquer tipo de certeza sobre o futuro do mundo.
O destino do sapiens-demens é obra aberta, rio majestoso, sereno e tempestuoso, ele reitera. A reorganização e a religação dos saberes são sempre biodegradáveis, jamais se convertem em doutrinas fechadas. Há algo, porém, que o distingue dos demais pensadores, expresso na intimidade de diários e ensaios sobre o contemporâneo, a reforma da educação, o mal-estar na civilização.
Intelectuais não costumam falar de si, adoram falar dos outros. Escondem-se sob a suposta autoridade
de conceitos, teorias, métodos. Diários, cartas, rascunhos costumam ser disponibilizados após a morte. Geralmente escritos nos intervalos de viagens, congressos, exílios, esses escritos confessionais desnudam a alma, expõem a fragilidade que caracteriza nossa condição.
Alertas de Edgar Morin são sempre incisivos nesses sombrios tempos de barbárie e de estados
de exceção com os quais nos defrontamos. Os desafios do século XXI exigem a construção de uma
cidadania mundial, uma política de civilização para a Terra-pátria, texto de 1993.
A universalidade de valores cosmopolitas nunca é obtida pela soma ou subtração de interesses particulares, mas pela multiplicação de pulsões desejantes, guiadas pelas quatro modalidades da consciência: antropológica, telúrica, ecológica, cosmológica. Não apenas a ciência pode dar conta delas, mas as artes, as literaturas e as espiritualidades em geral.
Precisamos, porém, de muita paciência e revolta, para bater de frente nos poderes instituídos.
A reforma da educação exige pensadores empenhados na construção de uma ética de valores
universais que contradiga relativismos e particularismos esclerosados. Ensinar a viver, célebre
expressão de Rousseau, se converte em palavra de ordem a ser reativada e recriada na sociedade
como um todo.
A tarefa não se esgota por aí. É preciso caminhar por cidades sitiadas, universidades sucateadas,
sexualidades recalcadas, intolerâncias raivosas, corrupções generalizadas, para que os dilemas sociais se mostrem como verdadeiramente são, mesmo que essa missão seja penosa, custosa, por
vezes desestimulante.
A presença de Edgar Morin no Brasil exibe a força de suas ideias e utopias, mesmo que a
Universidade não lhes preste a devida atenção. Homenagens, títulos de honoris-causa são expressão
do reconhecimento da obra e do homem. A leitura atenta de seus escritos e entrevistas permitiria
entender muitos dos dilemas brasileiros atuais. Três homenagens recentes marcam minha vida: a primeira, por ocasião de seus 80 anos, no plenário da UNESCO, em Paris, em julho de 2001. Em minha intervenção, destaquei a ressonância de suas obras nesses tristes trópicos, a expansão de núcleos de estudos voltados à leitura de sua obra. A segunda, também em Paris, em 2006, na Maison de l’Amérique Latine. A celebração de seu aniversário transcorreu animada com mariachis que entoavam canções latino-americanas, pois tinha o apoio da Multiversidade do mundo real, inspirada nos fundamentos da complexidade. Edgar estava feliz por nos ter por perto: seus amigos, seguidores e, também, críticos de sua obra. A terceira foi na PUC de São Paulo, em novembro de 2008, no
TUCA, ao receber o honoris causa. Coube a mim saudá-lo em nome de professores e alunos. No
teatro, palco de muitas resistências a poderes ditatoriais, reiterei a convicção de que a partir daquele
momento a Universidade passara a apostar na universalidade da cultura e na unidade do humano.
Aos 87 anos, em seu agradecimento, confessou ser um eterno aprendiz, um caminhante sem caminho,
um herdeiro da utopia. Às vésperas de completar 95 anos, em junho deste ano, não pôde
comparecer ao Congresso Internacional sobre Educação, em Fortaleza, cujo tema era Saberes para
uma Cidadania Planetária. Gravou uma mensagem que guiou muitas das conferências, mesas-redondas, debates lá ocorridos. Visivelmente mocionado, desejou sucesso a todos nós que acreditamos na força propulsora de seu pensamento em prol de uma sociedade pautada pelo reconhecimento, solidariedade, altruísmo, bases de uma sociedade verdadeiramente justa e democrática.
** Consultor do Núcleo de Estudos da Complexidade, Titular de Antropologia PUC/SP
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Escafandrista do pensamento
MARIA DA CONCEIÇÃO DE ALMEIDA***
A expansão das ideias de Edgar Morin não se limita ao continente europeu. Basta consultar
o Google, bola de cristal da sociedade- mundo, para ter uma dimensão da magnitude de um
pensamento que ultrapassa fronteiras geográficas, nacionalidades, domínios de conhecimento.
O pensamento e o conhecimento são nômades, não têm nacionalidade nem pátria.
De “O Método”, em seis volumes, a títulos classificados como sociologia, antropologia, política,
educação, escritos de conjuntura, livros socioautobiográficos, diários, cinema, imaginário e cultura
de massa, a mesma obstinação: religar o que o pensamento da disjunção separou, fazer acontecer uma política de civilização e de humanidade, ultrapassar a prosa da vida pelo estado poético de viver, promover uma ecologia das ideias e da ação alimentada pela diversidade cultural e de saberes, questionar as verdades únicas, a ortodoxia e o mito salvacionista da tecnociência. Como no domínio
estendido da matéria e do vivo, também o homem, a cultura, a política, os amores e o pensamento
são marcados pela incompletude, o erro, o inacabamento e a incerteza. Daí porque dirá algumas
vezes: “o único pensamento que vale a pena vive à temperatura de sua própria destruição”.
Ou, quando fala sobre os intelectuais: “sou um deles, mas não sou igual a eles”.
Neste ano que completa 95 anos, esse escafandrista das águas profundas do conhecimento
demonstra que a vitalidade e vigor de um pensamento não se medem pela escala cronológica,
mas se expressa na ousadia de pensar bem, na resistência às palavras-mestras consagradas,
na insubmissão à cretinização da polícia do pensamento. Edgar é um pensador a quem incomoda o culto à sua personalidade. Essa afirmação que me foi repetida tantas vezes por Emilio Roger-Ciurana, nosso amigo comum, eu própria testemunhei ao longo dos anos de convivência intelectual e amizade.
“Faço um esforço constante”, diz Edgar, “para não me pôr num pedestal, porque a estátua
exterior, a que se mostra aos outros, vem da estátua interior, daquela que, inconscientemente,
se esculpe para si”. Herman Melville, autor de Moby Dick escreveu certa vez: “Gosto de todos os homens que mergulham. Qualquer peixe pode nadar perto da superfície, mas é preciso ser uma grande baleia para descer a cinco milhas ou mais. Desde o começo do mundo os mergulhadores do
pensamento voltam à superfície com os olhos injetados de sangue”. Gilles Deleuze completa:
“Admite-se facilmente que há perigos nos exercícios físicos extremos, mas o pensamento também
é um exercício extremo”. Como um bom escafandrista, Edgar Morin tem feito de seu pensamento um potente cilindro para se deslocar nas águas profundas de saberes diversos, incertezas e mistérios da condição humana. Diante da fúria de Moby Dick, consubstanciada na crueldade do mundo, na barbárie, na violência e na crise civilizacional ele tem respondido com exercícios extremos de pensamento capazes de nos encorajar na tarefa de refundação de um mundo melhor e mais justo.
Homem inteiro, adorável, intempestivo, eterno adolescente, amigo. O mergulhador das águas profundas do conhecimento volta à superfície sempre, porque não é um pensador de um só território. Em terra firme também encontra seus alimentos para pensar e viver, como numa história que me contou um dia.
Estava ele em Camoglie, um pequeno porto em Ligura, na Itália, observando um aquário, quando de súbito um peixe se fixou diante dele e durante algum tempo eles se olharam fixamente através do vidro. Foi um encontro arrebatador, um amor à primeira vista, me contou Edgar. Ele não queria sair dali, desejava permanecer, mas o funcionário do local anunciou o fim das visitas.
Um pensador inteiro! Um intelectual que ao mesmo tempo edifica um novo método para as
ciências e se sente arrebatado pelo olhar de pequeno peixe num aquário. Um parceiro. Um amigo. É esse o Edgar Morin que conheço e que alimenta minha vida intelectual, de fato, minha vida inteira, porque posso repetir como ele: “não sou daqueles que têm uma profissão, mas daqueles que têm uma vida”.
*** Professora da UFRN, Coordenadora do GRECOM (Grupo de Estudos da Complexidade)
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Os signos de Morin, por Roberto Ramos****
O Paradigma da Complexidade possui uma interpelação básica. Parece responder e corresponder
a uma pulsão humana: a demanda por um Conhecimento pleno, em sua provisoriedade. Pronuncia o diálogo entre as partes e o todo, e vice-versa. Procura derrubar os limites e as barreiras entre diferentes áreas do saber, com a sua interpelação transdisciplinar.
No universo semiológico do Paradigma da Complexidade, encontramos signos, comprometidos com os diálogos entre o todo e as partes, e vice-versa. São três signos: o Signo-objeto, o Signo-teórico
e o Signo-metodológico.
O Signo-objeto estabelece o objeto de estudo, singularizado pelo próprio Paradigma. É desenhado
pela própria importância do seu Nominalismo. O Nome não é uma opção aleatória, nem empreendimento gratuito. Tem um papel de fundação. Torna real. Concede materialidade. Transcende a sua temporalidade. O papel do nome é primordial. Materializa a condição de real. Garante as trocas simbólicas de conhecer e de ser reconhecido, de interpelar e de ser interpelado. A sua pronúncia não é vazia. Preenche-se de plenitude. Representa o aval de vida, de modo ativo, como realidade biológica e cultural. Revela-se, como um significante primordial, em essência e por excelência. A opção pelo termo, “Paradigma”, carrega uma carga cultural. É a categoria Relação e a Lei da Totalidade Social, que pertencem ao método Dialético. Também, a concepção de Estrutura. Podemos
nos interrogar sobre qual Dialética? A caminhada teórica e metodológica do Sujeito Morin não denega a sua condição de excomunista, discípulo do pensamento marxista. A Dialética se
adjetiva. Aparenta ser marxista.
O Signo-objeto condensa as influências culturais da Dialética marxista e do Estruturalismo. Tal simbiose não é anônima. Possui um nome e um endereço epistemológico: a Dialética Histórico-Estrutural (DHE), como um paradigma síntese, de caráter derivado. É um método, que compatibiliza a Estrutura com o movimento. Passou a contar com maior visibilidade a partir da década de 60, do século XX, através de pensadores importantes. Cabe recordar, entre outros, Claude Lévi-Strauss, na
Antropologia, Jacques Lacan, na Psicanálise, Louis Althusser, no Marxismo, e o próprio Barthes,
na Semiologia.
O Signo-metodológico estabelece o conceito sobre as práticas da produção de Conhecimento.
É instituído e constituído por sete Princípios da Complexidade, inscritos e circunscritos na rubrica
da Transdisciplinaridade. São singularizados, sem valoração de hierarquia: “O Primeiro é o Sistêmico ou Organizacional, o Segundo, o Hologramático, o Terceiro, o Anel Retroativo, o Quarto, o Anel Recursivo, o Quinto, o Auto-eco-organização, o Sexto, o Dialógico, e o
sétimo, o da Reintrodução”. Os princípios trazem duas informações básicas. Oferecem uma concepção de Conhecimento complexo. Além disso, estabelecem uma forma de produzi-lo. Ao aludir o Dialogismo entre o objeto e o sujeito, Morin faz a contramão de dois significantes básicos do Pensamento linear. São os fetichismos do Positivismo, com a divinização da objetividade,
e do Marxismo ortodoxo, com a fé absoluta no determinismo econômico. Há, no texto de Morin, ao evocar o objeto e o sujeito, duas realidades subjacentes. São as Condições Objetivas e as Condições
Subjetivas, evocadas, anteriormente, pela DHE, procurando abraçar o sentido do todo. Não há como desvincularmos o Signo metodológico da Complexidade das suas derivações da DHE.
O Signo-teórico é o conjunto de categorias – conceitos classificatórios – presente no Paradigma
da Complexidade. Pelos seus respectivos envolvimentos complexos, vamos referir o Conhecimento. A conjugação da ação de conhecer está relacionada à linguagem. Não é uma tradução qualquer, mas uma “tradução construtora”, aparelhada de “princípios/regras”. Precisa ter a capacidade de revelação e a autocapacidade do seu relativismo, porque o real, em toda a sua extensão e profundidade, é
indizível. O Conhecimento complexo acolhe as certezas e as incertezas. É provisório e transdiscipilinar. Está voltado para as dimensões objetivas e subjetivas. Envolve os diálogos entre a unidade e a diversidade. Estabelecese, como um sistema aberto às possibilidades de mudanças e
transformações. Um novo Signo-objeto vem à tona. É a Complexidade. Distinguese do objeto da DHE – os eventos históricos, em seus aspectos culturais e ideológicos. É transdisciplinar, em sua essencialidade. Transcende a geografia das Ciências Sociais e Humanas. Procura ocupar os espaços dialógicos com todas as ciências. Morin não inventou a Complexidade, mas teve um mérito apreciável. Transformou-a em um objeto do estudo científico. Concedeu-lhe relevância. Delimitou-a, concedendo o benefício à incerteza e desenhando a sua fisionomia transdisciplinar. Emergiu um novo Signoobjeto para a cientificidade. Saiu da imersão das entrelinhas e do oculto nos bastidores textuais. A Complexidade ascendeu à condição de objeto científico, em sua inscrição de relevância. Portanto, o Paradigma da Complexidade é uma opção metodológica. Apresenta um signo- objeto, um signo-teórico e um signo-metodológico compatíveis. Traz algumas características essenciais,
para a concepção e a produção do Conhecimento complexo, com influências do Estruturalismo
e da DHE. Propõe a sua provisoriedade, acolhendo as certezas e as incertezas. É um diálogo
da unidade e da diversidade, através da Transdisciplinaridade, com as suas completudes e com
as suas incompletudes.
**** Ph.D Professor Famecos- PUCRS
(Todos os textos usados nessa postagem foram transcritos do Jornal Correio do Povo deste sábado, dia 02 de julho de 2016. As imagens são minhas).
Veja, no link abaixo, uma homenagem que fiz ao filósofo Edgar Morin há anos atrás, a qual eu reitero na íntegra: