24 fevereiro, 2012

Tradições cruéis e O Olhar do touro, por Juremir Machado da Silva, ou sobre os prazeres sublimados das touradas


Tradições cruéis  


Adiós! Fim de uma tradição. As touradas estão proibidas em Barcelona e em toda a Catalunha. Vale uma revelação estonteante: as tradições têm começo, meio e fim. Não são eternas. Nem intocáveis. Nascem, crescem e morrem. Dependem das sensibilidades de cada época. Houve um tempo em que maltratar animais era considerado normal. Os bichos eram instrumentos e brinquedos dos homens. Era comum que marmanjos se divertissem "judiando" de animais. A Farra do Boi, praticada em Florianópolis, sempre foi uma dessas maldades protegidas pela tradição trazida de além-mar. A doma violenta, no Rio Grande do Sul, foi durante muito tempo a única maneira de adestrar cavalos, mas era também um modo de liberar certa perversidade, inconsciente ou não, típica do bicho homem, um ser que encontra prazer na agressividade e na violência lúdica.

Ernest Hemingway, Prêmio Nobel da Literatura, que gostava de touradas e de fanfarronices, escreveu que "matar limpamente, de modo a produzir prazer estético e orgulho, sempre foi um dos grandes prazeres de parte da raça humana". Hemingway foi um homem do seu tempo. Em "O Sol Também Se Levanta", ele pintou com maestria esse gosto dos seus contemporâneos por sangue animal: "Montoya desculpava tudo num toureiro que tivesse afición. Desculpava os ataques de nervos, o pânico, os erros inexplicáveis, toda a sorte de lapsos. Em suma, àquele que possuía afición, Montoya perdoava tudo. Perdoou-me imediatamente por todos os meus amigos. Sem dizer coisa alguma, considerava-os simplesmente como algo um pouco vergonhoso entre nós, como o ventre rasgado dos cavalos, nas touradas". A guerra também não era uma vergonha. Filmes recentes mostram a "fissura" de soldados americanos pelas situações bélicas de extremo perigo.

No Brasil, atualmente, os rodeios, tão ao gosto dos "caubóis" do interior de São Paulo, representam uma moderna tradição de crueldade. Hemingway racionalizava o seu gosto alegando que o touro tinha a sua chance e que o toureiro arriscava a sua vida. Estatisticamente falando, os riscos enfrentados pelo touro sempre foram maiores. Os animais já foram escravos dos homens. É verdade que agora alguns homens querem se tornar escravos dos animais. Faz parte certamente da chamada dialética senhor e escravo. Os seres humanos submetem ou são submetidos. Uma síntese atual seria a submissão voluntária. É outro papo. As tradições cruéis estão com os dias contados. As perseguições a touros e bois pelas ruas das cidades podem ser rotuladas de bullying contra quadrúpedes condenados.

Aqueles que faturam com touradas, apoiados em argumentos antropológicos relativos ao respeito às diferenças culturais, tentarão reverter a proibição aprovada na Catalunha. O argumento mais forte, contudo, é de natureza econômica e "social": as touradas criam empregos, movimentam a economia, alimentam famílias, garantem o sustento de crianças e melhoram as receitas públicas. Qual o direito prioritário: o dos animais, o da tradição cultural ou o da produção de riqueza? Qualquer um que não seja cínico sabe a resposta. Os aficionados poderão matar as saudades lendo Hemingway.

Juremir Machado da Silva | juremir@correiodopovo.com.br, em 23/02/2012

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O olhar do touro

-Eh, touro - provocava uma voz feminina quando o animal, arfando, parecia contemplar a plateia em convulsão.

O bicho estava a não menos de 5 minutos da sua morte. Quinze minutos antes, entrara na arena circular da Plaza de Toros de Santa Maria, no centro de Bogotá, como uma fera negra bela e exuberante. Explosão de vida.

Foi no último domingo, 19 de fevereiro. Depois de conhecer a linda cidade litorânea de Cartagena de Índias e de tomar muitos banhos nas águas caribenhas da ilha colombiana de San Andrés - a mil quilômetros de Bogotá, muito mais próximo da Nicarágua -, fomos ver uma tourada. Minhas leituras de Ernest Hemingway e minha curiosidade de escritor e jornalista me empurraram para o local. Entrei lá tentando pensar no aspecto poético do jogo cantado por artistas como Garcia Lorca ou louvado por pintores como Pablo Picasso. Vi só a face da barbárie.

Dizem os organizadores, para se defender dos que pregam o fim das touradas, inclusive o prefeito de Bogotá, que se trata de dar uma morte honrosa a um guerreiro, o touro. E que muito mais cruel é morrer nos matadouros industriais. Muito lero, uma baita racionalização. Na prática, um animal poderoso, mas encurralado, sem ponto de fuga, saltando do corredor da morte para o abate sob tortura diante dos aplausos frenéticos de homens, mulheres, velhos, jovens, ricos, pobres, colombianos e estrangeiros. Lá estávamos nós, constrangidos. Lá estava também, em férias, o nosso ministro da Educação, Aloísio Mercadante, com a família.

O touro é provocado pelo matador e seus assistentes, auxiliares poltrões que sempre podem se esconder atrás de barreiras providenciais. O animal é ferido no dorso com uma lança pelo "picador", que entra numa montaria com a proteção de uma saia medieval e aceita passivamente as investidas da vítima ferida. Depois, baixando mais a cabeça por causa dos golpes do "picador", é torturado pelos bandarilheiros, que lhe enterram os chamados ferros, farpas, lâminas de cinco a sete centímetros com arpões na ponta e hastes coloridas. O matador exibe sua arte. Dança com o touro. A massa grita "olé". Por fim, o toureiro enfia a sua espada no animal, cuja respiração se acelera pavorosamente. Os assistentes cercam e estimulam o bicho, que cai e recebe a punhalada final. Grotesco.

O matador, durante a luta, encontra tempo para virar as costas e caminhar até o público para vangloriar-se, receber rosas, cumprimentar as autoridades. Ao final, é festejado como um herói e pode sair nos ombros do público. A tourada é uma cerimônia de abate com direito a espetáculo, aspectos "lúdicos" e histeria coletiva. Vibra-se com o sofrimento do animal e comemora-se a sua morte. Animais comem animais. Sou carnívoro. Não pretendo ser vegetariano. Mas não sou favorável à tortura. Já tinha visto touradas em filmes e na televisão. Li muito sobre touradas. Estar no local da tortura e execução é totalmente diferente. Senti nojo e certa revolta. É uma luta desigual. As chances do animal são quase nulas. O toureiro é um idiota que se acha superior. Saí da Plaza com aquela velha certeza: a humanidade não é confiável.


Juremir Machado da Silva | juremir@correiodopovo.com.br, em 24/2/2012


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Finalmente estão terminando essas barbáries. Nunca gostei e nem entendi (?) o sentido daqueles homens magérrimos e elegantes entrarem vestidos com aquelas roupinhas coladas ao corpo numa arena (arena!) para matar com violência os muito mais elegantes e fortes touros.
Seria algo atávico e filogeneticamente herdado dos caçadores: herança  do tempo em que...
Acho que até pode ser, já que é histórico e social esse desejo do homo sapiens (homo sapiens demens, segundo as palavras de Edgar Morin) dominar a natureza, mas, considero  ser muito mais outra das expressões hegemônicas do domínio masculino. Numa palavra: machismo.
Redundância? Simplificação? Reducionismo?

Não é frequente assistirmos a mulheres matarem touros.
A tourada é um esporte (?) masculino que tem repercussões no imaginário masculino e feminino. Os homens os invejam e admiram e as mulheres os desejam. Desejam?
O quê deles elas desejam?
Será que os homens também desejam... algo deles?
A força? A coragem? A elegância? O poder? O apelo erótico?

Que força? Que coragem? Que elegância? Que poder?
Ficar enfurecendo o bicho e ficar dando pulinhos ou passos para o lado enquanto ele passa pelo tecido vermelho? Francamente!

No tempo dos romanos, do império romano, quem entrava na arena eram  homens e mulheres para serem mortos por outros homens (e não por outras mulheres) ou pelas feras, tigres e leões... para delírio das massas. Uma catarse coletiva, certamente.

Esse "mal-estar na civilização" (Freud) que se dá através da sublimação dos impulsos agressivos e sexuais certamente tem gerado um campo de "barbáries civilizadas" e socialmente aceitas... que agora começam a ser proibidas, por lei. Fim da farra! Pelo menos é o que se espera.

No Afeganistão e no Paquistão, só para citar dois países que eu sei, há a tradição do "esporte" da briga (rinha) de galos entre si e também do enfrentamento de espécies diferentes, como um galo e uma cobra. Outra forma de tourada que leva ao êxtase os expectadores. Ou os torna ricos - alguns deles - com as apostas que são feitas.

Certamente que o dinheiro e todos os aspectos econômicos envolvidos têm sua contribuição para a ocorrência dessas coisas: é preciso dinheiro para formar touros e toureiros, cobrar ingressos, organizar "o espetáculo" , enfim, para fazer essa máquina funcionar.

Também tem sua contribuição "para fazer essa máquina funcionar" a necessidade de sublimação de ambos os impulsos, agressivos e sexuais. Algo como ´"é melhor matar o touro do que uma pessoa". (Ouvi de um homem, só a titulo de exemplo, que deu um chute violento num porco e o matou... porque estava furioso com a mulher e as filhas).
Nessa linha de raciocínio, vê-se que os crimes contra humanos - assassinatos -são quase sempre feitos às escondidas e sem testemunhas e, claro, sem aprovação social (exceção feita aos países que aprovaram a pena de morte).
Até que... começaram a ser feitos em público e na presença de muitos, como é o caso de adolescentes que atiram em alunos e professores nas escolas e de talibãs que executaram (durante o período que estavam no poder) "os impuros e infiéis adúlteros" ...  também em "praça pública".
Faltou pouco, me parece, para que "o prazer" em matar o touro se transformasse em prazer em matar o humano: neste último caso, a multidão era convocada e obrigada a assistir a execução para se disciplinar e aprender o rigor da lei islâmica, a sharia, em voga no Afeganistão durante o regime talibã (e que pode voltar
a ser adotada na Líbia atual, pós Kadhafi, embora o conselho de transição se defina como sendo de "muçulmanos moderados").

E o componente erótico, sexual, nisso tudo, onde está?
Não sei. Não sou psicanalista (embora tenha feiro uma parte da formação e a abandonado) e deixo isso para quem se interessar em abordar o tema com "mais proficuidade".
Alguns indicadores, no entanto, que tem a ver com essa "abordagem do caráter erótico sublimado das touradas transformadas em esporte" são:
- fazer sexo animal: envolve arranhões, puxões de cabelo, palavras de baixão calão, subjugação e domínio de uma das partes sobre a outra (que podem se inverter, nos humanos).
- prazer sentido na forma de arrepios , suor, calor, expectativa.
- presença do medo e da antecipação do desfecho, um prazer  (o momento em que o touro vai morrer é o ápice das preliminares, de todas elas, uma espécie de orgasmo - uma morte do eu, que se entrega ao outro e se dá para o seu gozo - que também é o "meu gozo").
- a presença inquestionável da sedução arrebatadora, àquela à qual não dá para resistir e que  culmina com a ausência da liberdade de escolha (o touro não se senta no chão e se recusa à batalha esperando passiva e ativamente que o toureiro e seus ajudantes desistam de o importunar e provocar). Nos humanos, me parece, esta estaria ligada ao desejo, nem sempre consciente, de ser arrebatado, "vencido" pela sedução do outro.

Resumindo, diria que se a agressividade fosse melhor tolerada - e portanto não reprimida (a sublimação vem da necessidade de reprimir impulsos agressivos E sexuais) - respeitada e até estimulada nas nossas relações interpessoais, familiares e sociais, o rumo das coisas seria outro: outras "coisas da vida" poderia se transformar em outras "vidas das coisas" já que a raiva, o ódio passam e se esvaem.
Se pudermos aceitar, ouvir, falar, expressar, discutir, comunicar nossos desagrados, discordâncias e mal-estares (e permitir que os outros o façam) - formas atenuadas da raiva e do ódio - certamente as coisas teriam desfechos menos trágicos, mesmo que igualmente dramáticos (de drama, de intensidade, de palco
 - ambiente -  para expressão).
Mas, para isso, precisamos desinstitucionalizar o lugar da agressividade nas instituições da família, da religião, da escola, da comunicação  (linguagem), do trabalho...  uma tarefa árdua e difícil, mas possível e necessária que deve ser interminável.

Quando um bebê grita furioso porque está com sono nos compadecemos e acolhemos sua necessidade de ficar quieto e o colocamos para dormir. Muitas vezes ele se recusa a fazer isso, então o tranquilizamos com palavras, música, sorrisos, palavras mansas... e ele aceita ir pra cama. É claro que não estou sugerindo que façamos isso com um adulto. Estou dizendo que não recusamos a raiva do bebe e seu mal-humor porque ele está cansado: nós a aceitamos, entendemos, respeitamos e a transformamos com nossa experiência...
Praticamente ninguém deseja que um bebê pare de chorar ou gritar porque está com sono... e que fique no seu melhor estado de humor e alegria e felicidade.
Mas fazemos isso com os adultos, adolescentes, chefes, empregados, pais, mães, amigos, vizinhos, conhecidos e desconhecidos: queremos simpatia, educação, bom humor, afabilidade e disposição "o tempo todo". E, paradoxalmente, mesmo sabendo que não teremos isso, acabamos por desvalorizar atitudes ou sentimentos - em nós e nos outros - considerando-os como sendo meros acasos e que não valem à pena serem retomados, já que são fluídicos e de difícil apreensão... num mundo tão mutável e rápido, onde a comunicação e os estímulos são constantes e diversificados...
Por que sentir desprazer e se incomodar com o prazer do outro em comunicar sua raiva? (isso supondo-se que o outro consiga sentir prazer ou bem estar... sem cair no que é mais comum: sentir-se culpado - antes ou depois, não importa). E aqui é importante distinguir que sentir prazer ou bem estar em falar e comunicar a raiva não é sinônimo de sentir prazer com e pela raiva.

Também não estou fazendo apologia e propaganda do direito de cada um fazer "o que bem entende" - porque disso também já temos o bastante.  Além da conta...

Não sou do tipo defensor dos direitos dos animais e nem tenho bicho de estimação. Na verdade, não sou muito ligado neles. Gosto de vê-los no zoológico, especialmente os felinos, ursos, antílopes... Também gosto da fauna marinha. Dos peixes, crustáceos e mamíferos, como os golfinhos e baleias.
Mas também não gosto - e gosto menos ainda - de vê-los sofrer e de ver seu habitat sendo destruído.
Paradoxalmente, parece que cachorros e gatos não compartilham desse sentimento. Quando vou na casa de pessoas que os tem, eles invariavelmente andam em torno de mim, especialmente os gatos, mesmo os tidos como ariscos e que se escondem quando chega alguém estranho... teimam em vir se  esfregar nas minhas pernas, e, pasmem, me lamber. Ou o que é pior: pular no meu colo!
Alguém já sentiu aquela língua áspera de um gato? To fora. Fora! Da língua e de dar colo.

Também tenho minhas restrições e discordâncias com a humanização dos animais e aquele tipo de antropomorfismo que insiste em tratar os bichos como pessoas (ou melhor do que elas).

Também já me passou pela cabeça: "acho que prefiro um cachorro do que determinadas pessoas".
Enfim... coisas da minha vida.

Então, onde é mesmo que quero chegar com esse texto? Não sei, talvez a lugar algum. Talvez queira apenas discorrer sobre coisas que penso e vejo e, desse jeito, expressar um outro olhar de touro, o meu (sou do signo de touro).

* Clique meu durante uma tarde com Pedro e Elisa pelos "potreiros" de interior gaúcho.