31 outubro, 2009

... sobre inventar o que se ama... Fernando Pessoa e Mário Quintana






"Quem ama inventa as coisas a que ama...
Talvez chegaste quando eu te sonhava .
Então de súbito acendeu-se a chama !
Era a brasa dormida que acordava ...
E era um revôo sobre a ruinaria,
No ar atônito bimbalhavam sinos ,
Tangidos por uns anjos peregrinos
Cujo dom é fazer ressurreição ...
Um ritmo divino ?
Oh! Simplesmente
O palpitar de nossos corações
Batendo juntos e festivamente ,
Ou sozinhos , num ritmo tristonho ...
Ó ! meu pobre , meu grande amor distante ,
Nem sabes tu o bem que faz à gente .
Haver sonhado ...e ter vivido o sonho!"...

(Mário Quintana)
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"Quando te vi amei-te já muito antes.
Tornei a achar-te quando te encontrei.
Nasci pra ti antes de haver o mundo.
Não há coisa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que não fôsse porque te previa.
Quando eu era pequena, sinto que eu
Amava-te já longe!."

(Fernando Pessoa)
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Fechei os olhos para não te ver
e a minha boca para não dizer...
E dos meus olhos fechados
desceram lágrimas que não enxuguei,
e da minha boca fechada nasceram sussurros
e palavras mudas que te dediquei...
O amor é quando a gente mora um no outro.

(Mário Quintana)
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30 outubro, 2009

Felix Guattari - Fernando Pessoa - Gilles Deleuze: poesia e espaços-tempo





"Querer ser poeta ou fazer poesia
já é de um certo modo participar
de uma minoria, de uma minoria oprimida."
Felix Guattari




POUSA UM MOMENTO

Pousa um momento
Um só momento em mim,
Não só o olhar,
também o pensamento.
Que a vida tenha fim
Nesse momento!

No olhar a alma também
Olhando-me, e eu a ver
Tudo quanto de ti teu olhar tem.
A ver até esquecer
Que tu és tu também.

Só tua alma sem tu
Só teu pensamento
E eu onde, alma sem eu.
Tudo o que sou
Ficou com o momento
E o momento parou.

Fernando Pessoa




"Acreditar no mundo é o que mais nos falta,

nós perdemos completamente o mundo,
nos desapossaram dele, acreditar no mundo
significa principalmente suscitar acontecimentos,
mesmo pequenos, que escapem ao controle,
ou engendrar novos espaços-tempo,
mesmo de superfície ou volume reduzidos."
Gilles Deleuze




29 outubro, 2009

A amizade e os amigos sempre tão necessários



" Para mim, a amizade é como o amor,
nos torna extremamente perspicazes.

Da essência da amizade faz parte a franqueza,
a paixão pela verdade.
É muito agradável olhar para o rosto de um amigo
ou ouvir sua voz ao telefone,
falar com ele justamente daquilo que nos
é mais doloroso ou importante.

Ou ainda ouvir esse amigo confessar uma coisa
que jamais pensou confessar a outra pessoa.

Não raro, uma amizade tem qualquer coisa de sensual.
A figura da pessoa amiga, o rosto, os olhos, os lábios, a voz,
os movimentos, a maneira de se expressar
- tudo isso fica registrado no nosso consciente,
é um código secreto que nos faz sentir confiança
e afinidade por essa pessoa".

Bergman in: Lanterna Mágica, pg 263

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Os amigos (essa gente tão necessária)

Tem gente que basta dizer uma palavra
Acende a ilusão e as roseiras;
Que só com um sorriso entre os olhos
Nos convida a viajar por outras terras,
Nos faz percorrer toda a magia.

Tem gente que basta dar a mão
Rompe a solidão, põe a mesa,
Serve o cozido, coloca as grinaldas;
Que basta empunhar uma guitarra
Compõe uma sinfonia caseira.

Tem gente que mal abre a boca
Chega a todos os limites da alma,
Alimenta uma flor,
Inventa sonhos,
Faz o vinho cantar
E fica como se nada tivesse acontecido.

E assim vamos apaixonados com a vida
Desterrando uma morte solitária,
Pois sabemos que na volta da esquina
Encontramos gente que é assim
TÃO NECESSÁRIA.

(Hamlet Lima Quintana)

"As palavras fazem silêncio" Gilles Deleuze






" É uma pintura
ou uma música,
mas uma música de palavras,
uma pintura com palavras,
um silêncio nas palavras,
como se as palavras agora
regurgitassem seu conteúdo,
visão grandiosa
ou audição sublime.

O específico nos desenhos e pinturas
dos grandes escritores
(Hugo, Michaux...)
elas chegam a puras visões,
que não obstante referem-se
ainda à linguagem na medida
em que dela constituem
a finalidade última,
um fora,
um avesso,
um reverso,
mancha de tinta ou escrita ilegível.

As palavras pintam e cantam,
mas no limite do caminho que traçam
dividem-se e se compõem.

As palavras fazem silêncio...

(Gilles Deleuze)





Desejo ... de... absoluto e......... a ........ilusão repetitiva!




"Comigo caminham todos os mortos que amei,
todos os amigos que se afastaram,
todos os dias felizes que se apagaram.
Não perdi nada, apenas a ilusão
de que tudo podia ser meu para sempre."

Miguel Sousa Tavares"


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>>> Expressa <<<

<<meu maior desejo de absoluto>>

<<"... tudo podia meu para sempre...">>

como eu queria... tanto...

O menino, em mim, sorri.
O homem, chora.
Quem perdeu?
Ambos.
O que perderam?
Tudo.

O menino não sabe.
O homem sabe demais.

Mas ambos descobriram, desde... quando?
Que o desejo de absoluto é só desejo.
Absoluto não existe.

Fim das ilusões, renováveis!



26 outubro, 2009

Estrangeiro na própria casa: outros olhares possíveis para "o mesmo"





Buscar as próprias origens: lar, casa, valores!
E, simultaneamente...
Ser um estrangeiro na própria casa- trabalho-família.

Olhar para o comum e "conhecido" com olhos... descontaminados!

Eis o desafio!

Um desafio sempre renovado já que, olhar frequentemente para as mesmas coisas, do mesmo lugar faz com que as não vejamos no que elas tem de... incomum.
Miopia do cotidiano!

O olhar estrangeiro pousa sobre o mesmo...
e
e nele
vê...
o inédito...
tornado invisível,
exatamente, pelo foco sempre dirigido para
esse mesmo... lugar-olhar!

Portanto...
Fica o convite:
Vamos tentar mudar o foco - tarefa nem sempre fácil -
e deixar de ser míopes; cegos, patetas, viciados?


...

...




A maior riqueza do homem, por Manoel de Barros -




A
MAIOR RIQUEZA DO HOMEM

- Manoel de Barros -

A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito.

Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas,
que puxa válvulas, que olha o relógio,
que compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva, etc. etc.

Perdoai.
Mas eu preciso ser OUTROS.
Eu penso renovar o homem
usando borboletas.


24 outubro, 2009

Escrever, por Valter A. Rodrigues





Prescreve o bom senso (com o qual a academia caminha em acordo) que só devemos escrever quando temos algo a dizer (não necessariamente algo original, mas fundamentado). Que não devemos nos apressar a escrever, pois a escrita demanda uma longa preparação. Uma preparação que passa por muitos modos de organização. Primeiro, criar os sistemas de referência; encontrar os autores, os saberes, o método, o ordenador simbólico que irá funcionar como uma autorização capaz de conferir ao nosso dito uma espécie de validação, uma certificação de origem.

Encontradas essas balizas, passa-se para o plano. Não aquele que, em sua imanência, constitui um território habitável, mas o que antecipa uma regra para a depositação de nossos saberes, ainda que mínimos. Desenhado o plano, que inclui o método (nem isso, basta uma metodologia, de preferência uma escolhida entre as disponíveis nos manuais...), passa-se aos esboços de escrita. Esses esboços, claro, não caminham por si mesmos, devem passar pelo clivo de um terceiro, não um qualquer leitor, mas aquele autorizado, competente para avaliar a pertinência (com todos os sistemas de referência devidamente codificados) da escrita... Essa escrita, entretanto, não me encanta, nem é essa minha experiência de escrita. Só escrevo, só concebo algo a escrever quando não tenho, ao começar, o que dizer... A escrita do bom senso, invariavelmente, me paralisa. Não tenho o que dizer quando o que me convoca está nas alturas. Quando, o que me convoca, são as alturas.

Gosto de pensar que, ao escrever, nem sempre sabemos bem o que estamos fazendo ou dizendo. Há sempre um texto que se escreve ali onde algo escrevemos... Pois há (é necessário que) uma certa inocência na escrita, principalmente naquela que se faz fora das regras formais do bem-dizer acadêmico. É, aliás, essa inocência que confere ao texto um certo frescor, uma certa alegria, um certo inacabamento necessário para que ele se sustente. Um incitamento. Uma potência... Nada mais triste que um texto professoral, de alguém "que sabe" e se coloca na posição de expor seu saber a "quem não sabe". Textos dados de antemão...

Gosto desses textos que avançam sobre suas próprias incertezas, que fazem de seu inacabamento a possibilidade de continuarem. Eles são um modo de persistência... persistem em si mesmos, fazem-se lampejos, caminham intempestivos, arrastando tudo o que encontram pelo caminho, os portos, os sentidos, os nortes, prenhes de seu próprio excesso. Um excesso que é sua velocidade, sua parada repentina, sua alteração de ritmo. Pois tudo o que temos é isso, tempos, velocidades, afetos... Gosto desses textos que não se dão facilmente à compreensão, mas que entretanto ali estão, abertos, disponíveis a um leitor com o qual se construírem... Gosto desses textos nos quais tropeçamos, que nos fazem claudicar junto com eles, textos nos quais nos perdemos... ao mesmo tempo em que nos puxam, nos arrastam, nos impedem a parada, nos devolvem à deriva a cada vez que supomos ter conseguido uma ancoragem.

Quando leio, penso que não devo perguntar: "o que o autor quer dizer", pois estou já na imanência do dito, dos fluxos que arrastam as palavras, as frases, os sentidos. Estou na música, e se encontro uma paisagem, desejo que seja dessas que se desenham para rapidamente se dissolverem em outras paisagens. Esses são os textos com potência de me mover, de me pôr em movimento com eles...
Gosto desses textos que me convidam a inventar meus caminhos, textos que multiplicam meus próprios dizeres, minha própria escrita. É neles que encontro o que pensar, é com eles que meu corpo é forçado a pensar...

*Valter A. Rodrigues*

Afetos, por Valter A. Rodrigues





É inesperadamente que me deparo com um olhar inimigo. Um encontro que surpreende os dois. Eu não a esperava ali, embora o espaço nos seja comum. Não àquela hora. Não naquele ponto de passagem. Há uma surpresa que nos atravessa, há mesmo um movimento – sutil – que vacila em nossos corpos simulando uma aproximação. Rapidamente nossos olhares se desviam. Posso dizer que meu olhar dura um pouco mais, pois eu a vejo dirigir a cabeça na direção contrária à que estou, em movimento ascendente. Empina o nariz, enquanto a boca se curva para baixo. Expressão de um ressentimento que dura. Quantos anos? Três, talvez quatro. Não suficientes para desfazer as cristalizações que determinaram nosso afastamento. Não posso acusá-la, pois em mim esse tempo também se prolonga, já que não faço esforço algum para alterar o movimento que desenha em seu corpo o gesto dessa mágoa que ainda o sustenta nesse inesperado encontro. Deixo-a ir.


Há outro momento, com outra pessoa. Com esta não há ruptura; permanecemos na proximidade. Duramos em nossos cristais, indefinidamente. Alternamos momentos leves com respostas duras. Há uma fragilidade que nos sustenta de alguma maneira. Uma fragilidade, não um laço frágil. Ao contrário, são duros e persistentes esses laços. Duramos. O ressentimento é vivido como infinito, construído de silêncios, queixas, gestos contidos e uma certa resignação. Pergunto-me, o que nos impede de testar nossos limites até alcançarmos outras margens? Experimentarmos uma ausência, por que não? Não sei. O que sei é que isso que nos une – essa paixão em suspensão – nos despotencializa.


Duas formas de encontro que não evitam, entretanto, que entre um e outro aconteçam encontros mais generosos. Se nos extremos estão os gestos inimigos, absolutizados, há muitos outros, cotidianos, que não chegam a confluir para um ponto específico, simplesmente acontecem, se prolongam, se modificam. São também durações, mas de outra qualidade. São laços, não necessariamente frágeis, mas que aparentemente não se comprometem a ponto de se tornarem exigentes de um depois. Nesses encontros, o tempo é sempre outro. Ele escorre, flui. Às vezes não me dou conta de quanto ele dura, da flutuação em que sua velocidade varia.


Mas não só isso. No momento em que os encontros acontecem, são múltiplas e diversas as passagens de força entre um e outro. Fruição do pensamento, estados afetivos que permitem o riso, o ligeiro, o intenso, o “sério”, o confessional... Estados de alma e estados de mundo são lugares dados ao trânsito... Interrompido o acontecimento, há o sentimento de que algo se potencializou, de que tudo continua, não necessariamente da mesma maneira. Esses laços, cuja condição parece ser a fragilidade, renovam-se em outros encontros, sem que o hiato angustie qualquer espera. Eles acontecem, isso é tudo. Permanecem, variáveis, ao longo dos anos, sem que percam sua força. Eles são.

* Valter A. Rodrigues*




A arte de Roger Dean "em animação"





23 outubro, 2009

Um Lindo Dueto: Confissão e Confessussurrâncias



Confissão
- Marise Ribeiro -

Confesso que sob carícias de tortura
padeço com minha maior loucura:
estar junto de ti,
sentindo o corpo em chamas a me consumir.

Confesso que, quando me abraças,
minha alma cai em desgraça,
deixa-se dominar e perde o tino,
subjugando-se ao teu sorriso de menino.

Confesso que te quero tanto...
Esse amor virou magia, encanto;
virou até incurável doença,
se não estiver na tua presença.

Confesso que o som da tua voz,
sussurrando ao meu ouvido
quando ficamos a sós,
desperta impiedosamente meus sentidos.

Depois desta sincera confissão,
mereço melhor sorte
do que a ameaçadora solidão
com que me acenas como pena de morte.






Dueto sob inspiração
do belíssimo poema
de Marise Ribeiro,
" CONFISSÃO"


Confessussurrâncias
- Luiz Gilberto de Barros -

Confessa, sussura, amada..,
Que me desejas... confessa
Ansiosa, desesperada...
Confessa... sem muita pressa.

Refreia os teus anseios,
Mas logo a seguir, não cesses,
Me puxa para os teus seios...
Eu quero que me confesses.

Confessa rindo, chorando,
Nervosa, me percorrendo,
Absoluta, reinando,
Sedenta, amando... querendo...

Confessa, mas me diz quando...
Confessa...eu sei esperar,
Enquanto vou deslizando
No brilho do teu olhar.


22 outubro, 2009

FOUCAULT fala sobre amizade




Esse belíssimo texto, que mais adequadamente poderia ser qualificado como
querido texto é para ser lido com calma, paciência e... com uma boa dose de abertura mental e emocional, já que possui uma força atômica para desconstruir as vigentes noções que se tem sobre a amizade.
É claro que existem amizades baseadas na afinidade e na semelhança dos modos de pensar e sentir. Inquestionável.
Mas, quem sabe um cafézinho, chocolate... para acompanhar a leitura?
Um chá?
Salgadinho?
Pipoca?
Refri?
Faça sua escolha... mas vá até o fim... e, quando você lá chegar... não será mais o mesmo!
Exagero meu?
Ohhh não: provocação!

Além do mais, quero dizer, que esta postagem foi discaradamente roubada do blog da minha querida amiga Ana Lia - uma amiga-inimiga-amiga que comecei a conhecer através de enfrentamentos acirrados... que foram determinantes e condição de existência para a constituição do grande e belo afeto e respeito que nutrimos um belo outro. Um grande beijo para ela!
Os links estão no final da postagem.




Teoria das relações para a amizade: prazer, dessexualização e ascese

A questão que Foucault quer abordar é a da necessidade de se criar uma nova vida cultural frente ao empobrecimento de nosso tecido relacional e afetivo; de se desenvolver produções culturais que tenham por objetivo principal o prazer; de produzir uma cultura de amizades a partir de um devir-minoritário gay, a qual possibilite, mesmo parcialmente, que suas relações sejam transpostas aos heterossexuais, como a qualquer outra categoria (FOUCAULT, 1984b, 2004a, p. 122-123).

Para tanto o trabalho não se destinaria às desgastadas lutas por liberação sexual, mas sim a um constante processo voluntário de reflexão e imaginação com a finalidade de nos constituirmos como seres mais suscetíveis, como também mais preocupados com o outro, no campo dos prazeres. Desse modo, em vez de tentarmos liberar o nosso desejo dos grilhões da repressão sexual, “[...] devemos criar prazeres novos. Então, pode ser que o desejo surja” (FOUCAULT, 1984b, online).

Eu penso que temos uma forma de criação, de empreendimento de criatividade, dos quais a principal característica é o que chamo de “dessexualização do prazer”. A idéia de que o prazer físico provém sempre do prazer sexual e a idéia de que o prazer sexual é a base de todos os prazeres possíveis, penso, é verdadeiramente algo de falso.
O que se pode entender com esse processo de dessexualização do prazer é que a sexualidade, mesmo aparecendo constantemente como uma das fontes mais produtivas de nossa sociedade e de nosso ser, não deve ser entendida como uma fatalidade, mas antes como uma possibilidade de se alcançar uma vida criativa (FOUCAULT, 1984b).

Com isso, Foucault liberta o prazer do campo normativo da sexualidade e lhe oferece uma abundância de possibilidades de surgimento através da criatividade de qualquer “prática possível”.
Nesse campo suscetível ao surgimento de múltiplas relações inéditas, constituído pela amizade, a existência do poder é inevitável, pois, segundo Foucault, em qualquer relação humana há relações de poder, sendo que quanto mais aberto for o jogo maior será o desejo de determinar a conduta do outro (FOUCAULT, 2004d, p. 276-286). Convém destacar que esse governo da conduta alheia, enquanto relação de poder, não visa a destruição do outro, pelo contrário, considera-o como um sujeito ativo que tem sempre a possibilidade de fuga, resistência, luta e inversão da situação (FOUCAULT, 1995a, p. 243).

Entretanto, há casos em que as relações de poder podem se tornar saturadas de tal forma que a mobilidade entre as estratégias desaparece:
Quando um indivíduo ou um grupo social chega a bloquear um campo de relações, a torná-las imóveis e fixas e a impedir qualquer reversibilidade do movimento – por instrumentos que tanto podem ser econômicos quanto políticos ou militares –, estamos diante do que se pode chamar de um “estado de dominação” (FOUCAULT, 2004d, p. 266, grifo nosso).

Toma destaque, então, a questão de como evitar que tais fatos de dominação apareçam na amizade. Como vimos, Foucault acredita que possa surgir uma ética a partir de um modo de vida, de maneira que, seguindo tal pensamento, seria lógico acreditarmos na existência, a partir da amizade, de éticas que levem em consideração o prazer alheio. Todavia, essa preocupação com a satisfação do outro seria um impeditivo suficientemente capaz de barrar o aparecimento de estados de dominação? A resposta para esse problema parece estar no modo como agimos dentro das relações de poder que experimentamos todos os dias, uma vez que, para Foucault, deveríamos agir de maneira bastante prudente e empírica, atentos a todos os detalhes, pois o que separa tais relações dos estados de dominação é uma linha extremamente emaranhada e nebulosa (FOUCAULT, 2004e, p. 223). Em adição a isso, caso sejam encontrados pontos de dominação, faz-se necessário ter sempre em mente um princípio crítico [vii] que questione a necessidade, para a estratégia em questão, da existência de tais focos de não-consensualidade.

É importante esclarecer que essa preocupação com a presença de focos de não-consensualidade, ou mesmo de dominação, não exclui da amizade a existência de conflitos, pelo contrário, estes são extremamente significativos para tal modo de vida. Nele, há um campo fecundo aos embates de idéias, os quais não buscam alcançar uma verdade universal, mas permitir a consideração de múltiplos pontos de vista com a finalidade de colher material a ser refletido e, posteriormente, utilizado na incessante criação do Si.

A amizade [...] [é] a afirmação de existências livres. Os amigos vivem pelas suas diferenças. Não são espelhos para os outros, identidade coletiva ou ideal, fusão numa unidade superior. Os amigos livres são seus principais inimigos, não deixam as coisas sossegadas, como se houvesse um patamar acima a ser atingido onde residem o equilíbrio, a doçura e as delicadezas obrigatórias (PASSETTI, 2003, p. 12).
Dessa maneira, o que se enfoca não é o apego a formas de identidade com características em comum, mas sim um esforço para a compreensão e aceitação do outro como diferença inquietante. Como sugere Nietzsche (2006, p. 56-57): “é preciso honrar no amigo o inimigo. [...] No amigo deve ver-se o melhor inimigo”. Não se deve buscar encontrar no amigo um reforço para sua identidade, mas, pelo contrário, material para transformação e criação do Si.

Como pôde ser observado, toda a amizade foucaultiana é permeada por certo fator de conflito; de inovação, experimentação, diferenciação; de reflexão, trabalho e afirmação de si enquanto força criativa – ou seja, por uma certa atitude ativa frente às condições atuais em que vivemos. Essa postura não passiva, esse modo de ser encontrado na amizade, pode ser entendido como aquilo que Foucault chamava de “atitude de modernidade”.
Por atitude, quero dizer um modo de relação que concerne à atualidade; uma escolha voluntária que é feita por alguns; enfim, uma maneira de pensar e de sentir, uma maneira também de agir e de se conduzir que, tudo ao mesmo tempo, marca uma pertinência e se apresenta como uma tarefa. Um pouco, sem dúvida, como aquilo que os gregos chamavam de êthos (FOUCAULT, 2005b, p. 341-342, grifo do autor).
Trata-se de certa maneira de se conduzir consistente em um permanente trabalho crítico sobre nossos próprios limites e que se dá através de uma ontologia crítica de nós mesmos, aliado a uma intensa experimentação.

O trabalho realizado nos limites de nós mesmos deve, por um lado, abrir um domínio de pesquisas históricas e, por outro, colocar-se à prova da realidade e da atualidade, para simultaneamente apreender os pontos em que a mudança é possível e desejável e para determinar a forma precisa a dar a essa mudança (FOUCAULT, 2005b, p. 348).
Como ferramenta de extrema valia em tal processo, toma destaque o modo como Foucault considerava a Filosofia – “uma ‘ascese’, um exercício de si, no pensamento” (FOUCAULT, 1984a, p. 13).



De fato, o pensador ligava as questões relativas à construção dos modos de vida, como o modo gay, a uma maneira prática de se entender a necessidade da filosofia:
[...] o que é filosofar hoje em dia – quero dizer, a atividade filosófica – senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento? Se não consistir em tentar saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe? (FOUCAULT, 1984a, p. 13).

Tal ponto de vista acerca da filosofia não é recente, tendo sido o mesmo corrente entre os antigos gregos, helenísticos e romanos, para os quais a filosofia significava um permanente exercício de transformação de si durante toda a vida daqueles que quisessem alcançar a verdade, bem como a única capaz de dirigir o pensamento (FOUCAULT, 1984a, 1985; ORTEGA, 1999).

Nessa ascese, o material a ser trabalhado, através de uma intensa atitude experimental, seria o pensamento.
A filosofia é o deslocamento e a transformação das molduras de pensamento, a modificação dos valores estabelecidos, e todo o trabalho que se faz para pensar diferentemente, para fazer diversamente, para “tornar-se outro do que se é” (FOUCAULT, 1994, p. 143, grifo nosso).

Evidencia-se, com isso, a importância que Foucault atribui ao pensamento no que tange à ascese, uma vez que esse se situaria como o principal instrumento-efeito do trabalho de si sobre si. Seria, através da filosofia que poderíamos confrontar o que somos e fazemos com o que pensamos e dizemos, refletir sobre aquilo que acreditamos, transformar nossos pensamentos, enfim: questionar e elaborar de forma diversa aquilo que somos. E é este o ponto que acreditamos ser o elo entre a estética da existência presente na Antiguidade e a amizade para Foucault – “a noção de filosofia como ascese interligada a sua noção de amizade”.
Com efeito, podemos compreender tal afirmação seguindo um encadeamento lógico de algumas importantes considerações. Em primeiro lugar, Foucault acredita que a ética é uma prática, a “prática refletida da liberdade” (FOUCAULT, 2004d, p. 267); em segundo, que o modo como pensamos hoje em dia é influenciado por uma tradição de racionalidades que se coaduna ao biopoder e, por isso, a solução para questionarmos e modificarmos o regime de verdade de nossa época estaria no exercício “crítico e reflexivo” do pensamento sobre seus próprios parâmetros – tarefa da filosofia; e por fim, amarrando a linha de raciocínio, que há a necessidade de uma consonância entre atos e palavras, isto é, entre ética e política – o que explica a declaração de Foucault de que a chave da atitude política pessoal de um filósofo deva ser procurada em sua “filosofia como vida, em sua vida filosófica, em seu êthos” (FOUCAULT, 2004e, p. 219, grifo do autor) e não em suas idéias.

Por tudo isso, torna-se evidente que a amizade foucaultiana utiliza-se da filosofia como um exercício de si no pensamento para constituir-se como um modo de vida e de relações que escapa constante dos processos de institucionalização e restrição do tecido relacional impostos pelo biopoder subjetivante. É devido a essa ascese filosófica do pensamento que a amizade exerce seu potencial de ruptura do instituído e de desenvolvimento de inéditas criações culturais com suas implicações ético-políticas.

Na amizade, trata-se justamente do desenvolvimento de relações que ultrapassem quaisquer categorias, sejam elas de gênero, idade, classe social, etc., uma vez que é por meio da normalização e compartimentalização das relações que o biopoder restringe e captura os processos de subjetivação.
Com tudo isso, após seguirmos a empreitada foucaultiana direcionada à busca por modos de vida mais autônomos, podemos caracterizar a amizade como sendo uma forma de se relacionar, uma maneira ou estilo de ser e de se conduzir, buscada voluntariamente por alguns, que traz consigo um modo de pensar, sentir, agir que não menospreza a atualidade.

Esse êthos filosófico busca constantemente analisar e refletir sobre os limites que determinam o que somos, pensamos e fazemos, ao mesmo tempo em que, permanentemente, experimenta o atual com o intuito de descobrir onde podem surgir os novos focos de processos de subjetivação. Sendo por isso que a amizade é considerada como uma estratégia de resistência extremamente perigosa para o biopoder subjetivante, uma vez que contradiz e combate diretamente a individualidade padronizada imposta por essa específica forma de poder.

Na amizade, através do elogio ao prazer, multiplicam-se os campos de possibilidade de relacionamentos e, conseqüentemente, de surgimento de novas subjetividades. A amizade, por isso, é a expansão das relações, de qualquer relação, para além de suas supostas codificações. Esse conceito de amizade não é muito difícil de realizar, porque o que mais há são as relações que não se enquadram. Elas são até mais numerosas de que as relações codificadas. O difícil é percebê-las, pois são mais provisórias do que as outras que julgamos a “verdadeira amizade”. Provisórias, não no sentido de pouco duradouras; provisórias porque elas acontecem de costume num corpo a corpo com as outras, à sombra daquelas mais codificadas e estabelecidas.
invenção de modos de vida, sem a qual nossa existência ética teria de se render aos valores estabelecidos.

Uma relação de amizade não se deve àquilo que deriva dos indivíduos envolvidos, mas dos feixes de relações que atravessam um e outro, relações de ordem biológica, social, econômica, histórica, etc. Tornarmo-nos sujeitos demanda, portanto, toda uma implicação de linhas que formam o tecido relacional, logo, em certo sentido, é correto dizer que as relações através das quais somos compostos, por exemplo, como amigos, são exteriores às duas pessoas que, por meio delas, se tornam amigas. Cada amizade, envolva ela um ou “n indivíduos”, sempre traz consigo um emaranhado de mundos que não pertencem e nem podem ser controlados por nenhum dos envolvidos. Por isso, as relações são sempre exteriores aos termos que elas relacionam (DELEUZE, 1953, p. 109).

Mas, como relações podem ser exteriores e por que seu efeito pode ser a diferenciação ou criação de novos modos de vida?
Pode-se afirmar, aos nos referirmos a uma relação, que um terceiro indivíduo aparece. “Ele” tem vida própria, pois é exterior aos amigos dos quais provém, sendo que a amizade pode ser entendida como um novo “corpo” que se autopõe e que os amigos devem nutrir e manter. Esse terceiro é o corpo do “fora”, ele não está entre os próprios elementos interligados, é a própria relação. Isso quer dizer, para reforçarmos uma idéia anteriormente enunciada, que o essencial de uma amizade, seu destino, depende dessa exterioridade, pois não pertence nem a um nem a outro dos amigos. A amizade sempre está “entre”.



Links:

Blog da Ana Lia: http://www.cremedeletras.blogspot.com/

Espaço Michel Foucault: http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/

Postagem relacionada nesse blog:Psicologia e Vida Livres: Da amizade como modo de vida, ou sobre o devir homossexual: Michel Foucault e Felix Guattari dialogam aqui

16 outubro, 2009

Desejos de Luz... e cores: Diwali... acontece na Índia





O que significa desejar Luz e receber Luz?
Lucidez, discernimento, clareza, visão...
VER para (VI)VER MELHOR!


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Na Índia está acontecendo

o grande e sempre esperado
Festival das Luzes:
o Diwali!
Então, aí vão meus votos
de muita luz pra eles
... e para todos nós!!!
OOOOMMMMMMMMM






O Diwali (também transcrito do Deepavali ou Deepawali) é uma festa religiosa hindu, conhecida também como o festival das luzes. Durante o Diwali, celebrado uma vez ao ano, as pessoas estreiam roupas novas, dividem doces e estouram rojões e fogos de artifício. Este festival celebra o assassinato de Narakasura, o que converte o Diwali num evento religioso que simboliza a destruição das forças do mal.

O Diwali é um grande feriado indiano, e um importante festival para o hinduísmo, o sikhismo, o budismo e o jainismo. Muitas lendas são associados a Diwali. O feriado é atualmente comemorado pelos hindus, sikhs e jains em todo o mundo como o festival das luzes, onde as luzes ou lâmpadas significam a vitória do bem sobre o mal dentro de cada ser humano. Diwali é comemorado no primeiro dia do mês lunar Kartika, que ocorre no mês de outubro ou novembro.

Em muitas partes da Índia, é o Baile do Rei Rama de Ayodhya,que após 14 anos de exílio na floresta derrotou o mal Ravana. O povo de Ayodhya (a capital do seu reino) congratulou-se com Rama por iluminação em fileiras (avali) das lâmpadas (Deepa), dando assim o seu nome: Deepavali. Esta palavra, em devido tempo, se tornou Diwali em hindi. Mas, no sul indiano em algumas línguas, a palavra não sofreu qualquer alteração e, portanto, o festival é chamado Deepavali no sul da Índia. Existem várias observâncias do feriado em toda a Índia.

O Jainismo Diwali é marcado como o nirvana do Lord Mahavira, que ocorreu em 15 de outubro, 527 aC.

Entre os sikhs, o Diwali veio a ter significado especial a partir do dia ao qual houve o retorno a cidade de Amritsar do iluminado Guru Hargobind (1595-1644), que havia sido detido no Forte em Gwalior sob as ordens do imperador Mughal, Jahangir (1570-1627). Como o sexto Guru (professor), do Sikhismo, Guru Hargobind Ji, foi libertado da prisão - juntamente com 53 hindus Kings (que eram mantidos como prisioneiros políticos) a quem o Guru havia organizado sua libertação. Após a sua libertação ele foi para o Darbar Sahib (Templo Dourado) na cidade santa de Amritsar, onde foi saudado pelo povo com tamanha felicidade que acenderam velas e diyas para cumprimentar o Guru. Devido a isto, sikhs referem frequentemente que Diwali também como BANDI Chhorh Divas - "o dia da libertação dos detidos".

O festival também é comemorado pelos budistas do Nepal, especialmente os Newar budistas.

Na Índia, o Diwali é hoje considerado um festival nacional quanto ao aspecto estético, entretanto, é usufruído pelos hindus, independentemente da fé.



Fonte:



NAMASTE


Oração da serenidade




Duas versão "prontas" para a mesma oração:





Concedei-nos, Senhor, a serenidade necessária
para aceitar as coisas que não podemos modificar;
coragem para modificar aquelas que podemos
e sabedoria para distinguir umas das outras.


......................................


“Senhor, conceda-me a serenidade
para aceitar aquilo que não posso mudar,
a coragem para mudar o que me for possível
e a sabedoria para saber discernir entre as duas.

Vivendo um dia de cada vez,
apreciando um momento de cada vez,
recebendo as dificuldades como um caminho para paz,
aceitando este mundo cheio de pecados como ele é,
assim como fez Jesus, e não como gostaria que ele fosse;

Confiando que o Senhor fará tudo dar certo
se eu me entregar à Sua vontade;
Pois assim poderei ser razoavelmente feliz
nesta vida e supremamente feliz na outra.”

....................................

No sentido que lhe dou, a prece é uma conversa
espontânea e direta com Deus, Jesus... a divindade!
Assim sendo, eu gosto de "esticar" minhas preces...
buscando, com elas, momentos de grande paz e discernimento.



15 outubro, 2009

ESCULTURA, por Luiz Gilberto de Barros




ESCULTURA
Luiz Gilberto de Barros


Cada estátua é uma figura caricata
Que nem sempre representa o modelo,
Que faz pose para o artista que retrata
Suas formas sem, às vezes conhecê-lo.

O talento reconstrói a criatura
Dando a ela uma feição particular
Trabalhada a partir da pedra dura
Que num toque pode às vezes se quebrar.

Entretanto, a pintura de um olhar
Pode dar ao próprio olhar uma visão
Solitária que é capaz de enxergar,
Do escultor, até o próprio coração.

Basta que o artista queira lapidar
Seu olhar no próprio olhar da criação
Que ele mesmo há de até se emocionar
Se a fitar sem apelar para a razão.

Muitas vezes, um obra não copia
A imagem que se quer representar
E acaba revelando a fantasia
Que esculpe o própria dor em outro olhar.


12 outubro, 2009

A arte do corte e sua relação com a (in) justiça, pelo mago-mor




A espada serve para cortar a injustiça e todas as consequencias negativas que dela advém. O golpe deve ser único, preciso e elegante.
(Palavras do mago-mor, em "Introdução Iniciática sobre a arte do corte")

Quando é impossível evitar a injustiça, busca-se elementos para promover e semear a justiça, através do uso intencional, dirigido e contagioso da verdade.
(Fragmentos de "Práticas que configuram justiças absolutas em situações relativas" proferido pelo mago-mor na "Conferência Iniciática acerca dos Procesos Vistos à Posteriori)

Quando é impossível cortar a injustiça e promover a justiça "in loco" toma-se uma atitude de espera, pois as situações que as geraram são relativas e podem se modificar sob a ação inequívoca do divino. Todo o mago deve saber, desde já, que ele está numa situação de aprendizagem acerca dos relativos do absoluto.
(Palavras do mago-mor na Conferência "Interlúdios do Absoluto nos relativos absolutizantes do codidiano")


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11 outubro, 2009

A invenção da infância, por Juremir Machado da Silva





Crédito:
ARTE RODRIGO VIZZOTTO

A invenção da infância

Alguns livros marcam a gente para sempre. Do meu tempo de estudante de Antropologia, cuja rica bibliografia não esqueci, guardei especialmente duas obras: "O Grande Massacre de Gatos", de Robert Darnton, e "História Social da Criança e da Família", de Philippe Ariès. A tese de Ariès surgiu para mim, na época, como uma bomba: a infância é uma invenção recente. Outro livro, que também li naqueles dias, havia provocado um choque em mim: "O Mito do Amor Materno", de Elisabeth Badinter. Convidado a dar uma palestra em Florianópolis sobre infância e mídia, revivi tudo isso. Ariès via-se como um historiador no meio da rua, disposto a ler o passado a partir das urgências do presente. Seduziu-me.

No passado, as crianças morriam como moscas. Ariès escreveu algumas frases que me sacudiram: "Ninguém pensava em conservar o retrato de uma criança que tivesse sobrevivido e se tornado adulta ou que tivesse morrido pequena. No primeiro caso, a infância era apenas uma fase sem importância, que não fazia sentido fixar na lembrança; no segundo, o da criança morta, não se considerava que essa coisinha desaparecida tão cedo fosse digna de lembrança". Foi só no século XVII que a ideia de inocência infantil ganhou força e a nudez se tornou obrigatória nos retratos de crianças. Tudo é cultura. A história molda a natureza até a natureza reagir e tudo devorar. Ariès seguiu a construção da infância. Ele destaca que até o século XIII não havia qualquer diferença entre o vestuário dos adultos e o das crianças.

Estamos de volta ao século XIII. Cada vez mais cedo, as meninas vestem-se como pequenas adultas. Cada vez mais, as quarentonas vestem-se como adolescentes. A história, pelo jeito, é cíclica. No século XIV, os homens passaram a usar trajes curtos e até colantes. Os moralistas denunciaram a indecência dos novos tempos. Nada de novo no front. Era o começo de uma lenta evolução até o fio-dental. Até por volta de 1600, meninos e meninas brincavam de boneca. Mais um retorno. A duração da infância também é tema controvertido. Houve tempo em que acabava, no máximo, por volta dos 7 anos. Depois, tornou-se mais longa. Hoje, vivemos um interessante paradoxo: a sexualidade voltou a começar mais cedo, embora a infância e a adolescência durem cada vez mais.

No século XIX, a infância recuou. O trabalho infantil devorou o tempo de inocência dos mais pobres. Ariès anotou: "Existe, portanto, um notável sincronismo entre a classe de idade moderna e a classe social: ambas nasceram ao mesmo tempo, no fim do século XVIII, e no mesmo meio: a burguesia". Nesse lento processo de reorganização social, "a família e a escola retiraram juntas a criança da sociedade dos adultos". A escola, porém, "confinou uma infância outrora livre num regime disciplinar cada vez mais rigoroso, que nos séculos XVIII e XIX resultou no enclausuramento total no internato". Há quem sinta saudades dessa "tradição". Agora, na sociedade do lazer, é preciso que a criança seja um pequeno adulto, para consumir mais, e que o adulto seja uma eterna criança, para ter direito ao consumo sem utilidade.

Juremir Machadoda Silva | juremir@correiodopovo.com.br

Fonte: Correio do Povo 11 DE OUTUBRO DE 2009

10 outubro, 2009

Novas figuras do caos mutações da subjetividade contemporânea, Por Suely Rolnik








In Caos e Ordem na Filosofia e nas Ciências, org. Lucia Santaella e Jorge Albuquerque Vieira. Face e Fapesp, São Paulo, 1999; pp. 206-21.

Novas figuras do caos mutações da subjetividade contemporânea*

Suely Rolnik


A palavra “caos” é das mais pronunciadas na atualidade. Tema cult de congressos, livros de divulgação científica, artigos de jornal e até programas de TV, fala-se de caos em todos os campos da cultura. Com certeza, não se trata de um mero modismo, mas de uma exigência que a realidade contemporânea vem nos colocando: enfrentar o caos, repensá-lo, reposicionar-se diante dele - mesmo que muitas vezes a insistente evocação dessa palavra vise, pelo contrário, evitar tal enfrentamento e conjurar o pavor que o caos certamente mobiliza. Que mudanças se estariam operando nas subjetividades, hoje, para levá-las a revisar seu conceito de caos e de ordem, assim como da relação entre ambos?

Primeiro, duas palavras acerca da noção de subjetividade. Todo ambiente sócio-cultural é feito de um conjunto dinâmico de universos. Tais universos afetam as subjetividades, traduzindo-se como sensações que mobilizam um investimento de desejo em diferentes graus de intensidade. Relações se estabelecem entre as várias sensações que vibram na subjetividade a cada momento, formando constelações de

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forças cambiantes. O contorno de uma subjetividade delineia-se a partir de uma composição singular de forças, um certo mapa de sensações. A cada novo universo que se incorpora, novas sensações entram em cena e um novo mapa de relações se estabelece, sem que mude necessariamente a figura através da qual a subjetividade se reconhece. Contudo, à medida em que mudanças deste tipo acumulam-se, pode tornar-se excessiva a tensão entre as duas faces da subjetividade - a sensível e a formal. Neste caso, a figura em vigor perde sentido, desestabiliza-se: um limiar de suportabilidade é ultrapassado. A subjetividade tende então a ser tomada por uma inquietude que a impele a tornar-se outra, de modo a dar consistência existencial para sua nova realidade sensível.

Neste final de século - e de milênio -, a desestabilização trabalha no atacado. A imensa diversidade e densificação de universos que se miscigenam em cada subjetividade torna suas figuras e suas linguagens obsoletas muito rapidamente, convocando-a a um esforço quase que permanente de reconfiguração. Nesse contexto, a subjetividade se descobre precária e incerta. Muda por completo o modo como é vivida a experiência da desestabilização.

Na modernidade, tal experiência era associada à doença mental, e trazia o medo de não conseguir configurar-se de acordo com o mapa absolutizado de uma ordem considerada normal: medo de ser anormal, de fracassar ou enlouquecer. As escolhas eram movidas pela exigência de se alcançar essa suposta identidade, sob pena de sucumbir à culpa.

No contemporâneo, no entanto, a experiência da desestabilização encontra-se a tal ponto intensificada que ela não mais se associa à doença; sua generalização a situa no âmbito de uma normalidade. Essa experiência tende então a ser vivida como fragilidade. O medo não é mais o de não conseguir configurar-se segundo um certo mapa, pois múltiplos são os mapas possíveis. O medo agora é de não conseguir reconfigurar-se de todo, de forma minimamente eficaz.
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Nesse processo surgem novos objetos na paisagem ambiente; outros mudam de lugar. Por exemplo, o estatuto dos remédios psiquiátricos, que passam a ter a finalidade de evitar ou remediar a fragilização e seus efeitos - o stress, a depressão, a ansiedade, etc. Hábito que se tornou comum, tomar esse tipo de remédio deixa de ser uma prática secreta, culposa e envergonhada, que marca aquele que o toma com o estigma de doente mental. Hoje, quem toma tais remédios não tem mais por que escondê-lo; pelo contrário, tal atitude denota alguém que investe na administração dos próprios processos de subjetivação, e que se mantém ao par das últimas novidades da indústria farmacêutica.

Há várias outras tecnologias que permitem lidar com o perigo de fragilização - algumas antigas, mas investidas de novas formas ou sentidos; outras inéditas. Entre as antigas, a cocaína, da qual o que se espera hoje são fugazes miragens de uma velocidade compatível com as exigências do mercado. Além da cocaína, a literatura de auto-ajuda, que pretende ensinar a exorcizar os abalos das figuras em vigência, incluindo-se nessa categoria a literatura esotérica e as terapias que prometem eliminar o desassossego (com destaque para a tão falada “neurolingüística”, programação behaviorista de última geração). Entre as tecnologias inéditas, estão os coquetéis de vitaminas, prometendo uma saúde ilimitada, vacinada contra o stress e a finitude, que os prodígios da indústra de cosméticos vêm complementar, apagando, da pele, qualquer vestígio do tempo. Por último, não podemos esquecer as tecnologias diet/light, fórmulas de uma purificação orgânica para a produção de um corpo minimalista, maximamente flexível, capaz de vestir toda espécie de identidade.

Um sintoma desse medo da perda de qualquer possibilidade de configuração é a experiência, bastante recorrente nos dias de hoje, que a psiquiatria batizou de “síndrome do pânico”. Ela acontece quando a desestabilização é levada a um tal ponto de exacerbação que se ultrapassa traumaticamente um limiar de tolerância. Produz-se então uma ameaça imaginária de descontrole das forças, que parecem
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prestes a precipitar-se em qualquer direção, promovendo um caos psíquico, moral, social, e antes de tudo orgânico. É a impressão de que o próprio corpo biológico pode de repente deixar de sustentar-se em sua organicidade e enlouquecer, levando as funções a ganharem autonomia: é o coração que dispara, correndo o risco de explodir a qualquer momento; o controle psicomotor que se perde, o que pode detonar gestos gratuitamente agressivos; o pulmão que se nega a respirar, anunciando a asfixia, etc. A solução será então a de imobilizar o corpo, que só se deslocará acompanhado. O outro torna-se um corpo-prótese, pronto para substituir as funções do corpo próprio caso sua organicidade venha a faltar, dilacerada pelas forças enfurecidas.

É essa a situação que leva o homem a transformar, mais uma vez na História, sua concepção de ordem, de caos e da relação entre ambos. A ordem tende a não mais associar-se a equilíbrio. É que a idéia de equilíbrio implica uma concepção de subjetividade reduzida à consciência e suas representações, e esse tipo de concepção passa a ser inoperante, já que não permite fazer face às importantes mudanças que se produzem no plano das sensações. A subjetividade começa então a ser apreendida como um sistema complexo, heterogenético e distante do equilíbrio, sofrendo constantes bifurcações. O par estabilidade/instabilidade tende a ser abandonado. Em seu lugar aparece a idéia de uma metaestabilidade: uma estabilidade que se faz e refaz a partir das rupturas de sentido, incorporando as composições de forças responsáveis por cada uma dessas rupturas. Circunscreve-se assim um além da consciência, âmbito que a psicanálise apontou já no final do século passado, chamando-o de “inconsciente”. No entanto, a visão psicanalítica desse âmbito, bem como de sua relação com a consciência, é tributária do par caos/ordem, entendidos como os dois pólos, respectivamente negativo e positivo, de um sistema em equilíbrio. Hoje se é levado a pensar que a inexistência de forma no caos não faz dele o âmbito do indiferenciado, como se pensava no final do século XIX, momento
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em que emerge a psicanálise: o caos possui uma trama ontológica específica, feita da multiplicidade de forças em movimento de atração e repulsa, as quais formam composições que engendrarão as figuras ordenadas da subjetividade. Em outras palavras, o caos é o âmbito das gêneses das figuras da subjetividade, ele é portador de linhas de virtualidade. Se mantivermos o nome de “inconsciente” para designá-lo, teremos que pensá-lo como um inconsciente produtivo e criador. Um inconsciente jamais determinado de uma vez por todas, e que se encontra em constante devir. Nesse tipo de visão, a ordem não se faz partindo-se de um elementar indiferenciado para um complexo diferenciado: a subjetividade não se define por uma só e mesma figura, que se estabeleceria na infância e se desenvolveria ao longo da vida. As figuras são várias; elas tomam consistência a partir de limiares caóticos que vão se produzindo, um após outro, do começo ao fim da existência.

Mais do que subjetividades, é preciso falar em processos de individuação ou de subjetivação. Tais processos são inseparáveis das linhas de virtualidade traçadas no caos, linhas que eles atualizam, correndo sempre o risco de submergir. Complexa operação de agenciamento de intensidades, que não esgota essas intensidades e seu potencial de gerar outros devires.

Faz-se necessário constituir uma teoria da subjetividade que comporte tais singularidades e sua potência de transfiguração. Isso implica deslocar-se radicalmente de um modelo identitário e representacional, que busca o equilíbrio e que, para obtê-lo, despreza as singularidades. Trata-se de apreender a subjetividade em sua dupla face: por um lado, a sedimentação estrutural e, por outro, a agitação caótica propulsora de devires, através dos quais outros e estranhos eus se perfilam, com outros contornos, outras linguagens, outras estruturas, outros territórios.

Várias são as estratégias que as subjetividades têm inventado na atualidade para defender-se do desconforto provocado por tão exacerbada desestabilização. Tais estratégias compõem, em doses variadas, as diferentes subjetividades, ou os
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diferentes momentos de uma mesma subjetividade. Elas são basicamente de três tipos.

A primeira estratégia toma como alvo de combate as identidades globalizadas flexíveis, em torno das quais as subjetividades são levadas a se reconfigurar, se quiserem inserir-se em alguma órbita do capitalismo mundializado. Como antídoto a tais identidades globalizadas flexíveis, se propõe então a afirmação de identidades locais fixas, de ordem geográfica, sexual, racial, religiosa, etc. São as minorias militantes de toda espécie.

Já a segunda estratégia toma como alvo a pulverização das identidades locais e dos antigos ideais, processo que se vive hoje num ritmo acelerado. Como antídoto a tão intenso esfacelamento, propõe-se investir identidades ideais, de ordem política, ideológica, religiosa, etc. São os românticos de direita, de centro ou de esquerda.

A terceira e última estratégia toma como alvo a própria idéia de ordem, de previsibilidade e, portanto, de escolha. Como antídoto a esta idéia, propõe-se a pulverização como bandeira de ordem. É o fascínio niilista pelo caos.

Todas essas estratégias têm em comum basear-se numa mesma concepção de caos, de ordem e da relação entre ambos; varia apenas o posicionamento de cada uma no interior dessa polaridade. O niilista estaria do lado do caos, entendido como negativo da ordem; já o romântico e as minorias, xiitas ou não, estariam do lado da ordem, associada a equilíbrio, variando apenas suas figuras.

Ora, se há um combate a ser travado, seu alvo é a própria polaridade ordem/desordem. No âmbito da subjetividade isso implica em combater o regime identitário, não em nome de uma pulverização generalizada, mas para dar lugar a um outro princípio de individuação. A subjetividade deixa de recorrer, para organizar-se, a imagens a priori, opiniões prontas, clichês. Estes tendem a ser varridos de cena, para serem substituídos pelas figuras singulares produzidas nos
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processos de criação, que trazem à existência as configurações de forças que se desenham na subjetividade.

Recolocado o problema nesses termos, enfrentar as intensas mudanças que se operam no contemporâneo, através de qualquer uma das estratégias anteriormente evocadas, pode ter o sentido conservador de resistência a embarcar nos processos de singularização. Em todas essas estratégias há uma anestesia aos efeitos disruptivos da radical disparidade entre o caos e a ordem, e essa anestesia impede de construir novos mundos, a partir da riqueza de hibridações que se fazem nas subjetividades no contemporâneo. A síndrome do pânico é uma espécie de destino extremo dessa situação: ela se apresenta quando a anestesia já não basta, tamanha a violência de movimentação de forças, e passa a ser preciso imobilizar o próprio corpo, concretamente.

É preciso resgatar a vibratibilidade do corpo, a receptividade aos efeitos do mundo na subjetividade. No entanto, conhecer as intensidades não discursivas do caos só é possível por contaminação, jamais por representação. Esse tipo de conhecimento depende de uma escuta para os movimentos que se fazem no caos, assim como de uma certa tolerância para a metaestabilidade. Conhecer deixa então de ser o exercício da busca de uma verdade - o que não quer dizer que tudo seja relativo e que não haja escolhas a fazer em função de alguma previsibilidade. Continua havendo um horizonte de previsibilidade, mas este limita-se a contextos problemáticos singulares e é sempre atravessado pelo imprevisível. O que muda é que não se trata mais de estabelecer um método de conhecimento que garanta a previsibilidade, com o qual se traça o mapa teórico de um mundo em equilíbrio, eliminando tudo o que dele distoa. Trata-se, ao contrário, de ouvir as linhas de virtualidade que se anunciam e se perguntar: como fazer para que esses conjuntos flous de intensidades ganhem consistência subjetiva? Que agenciamentos são passíveis de trazê-los à existência, recompor um mundo, relançar o processo? Há, sem dúvida, uma escolha a ser feita, mas ela não se faz em função de uma suposta
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verdade; as escolhas são múltiplas e se fazem em função do que é melhor para a expansão da vida, assumindo-se sempre o risco do engano. Uma escolha ética, que é mais da ordem da arte do que do método: o que ela visa é criar formas de existência, a favor do processo vital; todo o contrário da tentativa clássica e moderna de domar esse processo.

Dizíamos no início que o caos, hoje, circula de boca em boca, e que essa insistência em evocá-lo responderia a uma solicitação que a realidade atual vem nos colocando. De fato, o caos nunca esteve tão presente. Mas se, neste final de milênio, estamos confrontadas ao caráter precário e incerto da subjetividade, estamos certamente também - e mais do que nunca - diante de seu caráter criador.


*Texto apresentado em mesa redonda no III Congresso Internacional Latino-Americano de Semiótica. PUC- SP, São Paulo, 04/09/96.

Fractal Aguático





HETERÔNIMO DE MIM, por Luiz Gilberto de Barros





HETERÔNIMO DE MIM
Luiz Gilberto de Barros

Oh, poeta, meu irmão, tu fazes parte
Do que eu sinto, como homem, como artista;
Tu transformas meu amor ou dor em arte
Teu lirismo me envolve e me conquista.

Heterônimo de mim, tu multiplicas
Meu amor quando me instalas no teu ser
Se eu parto, perpetuas, porque ficas,
A alegria que eu tenho de viver.

O poeta é passarinho: quando voa,
Ele atinge a dimensão do infinito;
Quando canta sua dor, o amor ressoa
Porque o canto é o amor que jaz... no grito.

E por seres passarinho e voares
Pelas páginas azuis do amor sem fim,
Tu acabas justamente de pousares
Nesse amor que há de existir dentro de mim.

O poeta nunca finge, ele encanta
Cada instante que lhe brota repentino
Quando sua emoção sublime é tanta
Que ele espanta até a dor e o desatino.

Ah, poeta, eu queria que me visses
Como alguém igual a ti e que eu te olhasse
Como um ser igual a mim e que sentisses
O que sinto, cada vez que eu te pensasse.

E que juntos, ao nos lermos, sublimássemos
A essência do que nos revitaliza
E que toda obra-de-arte que criássemos
Fosse bálsamo que o sonho eterniza.

E como todo poeta reinventa
Cada amor que existe em cada coração,
Eu invento este amor que me acalenta
Quando sinto que tu és o meu irmão.




COM AS PALAVRAS, por Ceres Marylise






COM AS PALAVRAS
- Ceres Marylise -


Com as palavras
fiz caminhos poderosos,
permiti silêncio e diálogo
para encurtar distâncias.

Com as palavras
ultrapassei horizontes,
transpus terras e oceanos
e segui mais adiante.

Com as palavras
aprendi toda a História
e criei os seus avessos,
expondo o lado sem glória.

Com as palavras
combati desigualdades
e provei do gosto amargo,
defendendo a liberdade.

Com as palavras
entendi da humanidade,
e a cada dia me espanto
com suas faces e disfarces.

Com as palavras
me reviso a cada instante,
e ainda me refaço
como simples caminhante.



09 outubro, 2009

Palavras do Heremita, o sábio.





Disse-me o velho em sonho que não me assustasse
pois na hora da batalha quem me guarda não haveria
de me faltar.

E fez uma pausa coçando a barba na ponta do queixo,
deu uma baforada e me confidenciou
que pancada em alma forte dói que nem pancada em alma fraca.

Sofre-se igual: o forte e o fraco. O fraco agoniza,
o forte se energiza.
Pancada em alma forte corta mas cicatriza.
Machuca mas não mata.




07 outubro, 2009

O guardador de rebanhos II - O Meu Olhar, Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)





Alberto Caeiro

II - O Meu Olhar


O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...




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