31 janeiro, 2015

Sand e o papel do Intelectual e sobre ser Charlie Chaplin (e não Hebdo)


"A cultura é o espaço da criação e da polêmica. Não há criação nem polêmica sem rupturas. Shlomo Sand é intelectual.
O papel do intelectual é colocar em crise as certezas da sua época e promover rompimentos de paradigmas.Intelectual é aquele que sai do seu domínio específico, estuda qualquer tema de interesse social, não respeita discursos de autoridade, pula as cercas das especializações limitadoras e debate tudo o que é de interesse geral. O intelectual usa a inteligência contra a arrogância e só reconhece o melhor argumento. A racionalidade é a sua crença.

Historiador, judeu nascido na Áustria, Sand passou seus primeiros anos num campo de refugiados. militante de esquerda, recusou compensações pelo holocausto. Em termos de atentados, fanatismo religioso, reinvindicações étnicas e multiculturalismo, ele defende a laicidade, a democracia universal e o direito a cada um a opinar sobre tudo.
Sempre que alguém diz ao seu oponente, "você não é especialista nesse assunto" , está passando recibo de que perdeu na argumentação e deseja restabelecer as ordem do arame farpado.
Shlomo Sand propõe que se enfrente o autoritarismo dos donos dos campos do saber com a autoridade da inteligência que não se intimida. Boa parte dos assuntos não resiste a algumns dias de reflexão. Ele pode estar enganado, mas não teme debater. Depois dos atentados que abalaram a França, no começo de janeiro deste ano, Sand manifestou-se dizendo que prefere ser Charlie Chaplin a Charlie Hebdo. Mais uma provocação certeira.
...

Edgar Morin, 93 anos, é outro judeu que defende a necessidade de visões globais complexas e não teme andar na contramão. Sand segue esse tom. Como amarrar todos os fios que se espiralam entre colonialismo, etnocentrismo, ocidentalismo, islamismo radical, antissemitismo, conflitos do Oriente Médio e em outros pontos do planeta, ocidentalização do mundo e islamização da Europa?"
Na entrevista abaixo "ele expõe seus pontos de vista e tenta mostrar as origens dos rastros do ódio e da violência."

Juremir Machado da Silva no Caderno de Sábado do Jornal Correio do Povo deste 31 de janeiro de 2015

Sand: Israel não é uma verdadeira democracia


Entrevista do Caderno de Sábado com Shlomo Sand
Por Juremir Machado da Silva

Raízes do sangue e do ódio

Judeu, historiador, professor da Universidade de Tel Aviv, autor de vários best-sellers, entre os quais “A invenção do povo judeu” e “Como deixei de ser judeu”, Shlomo Sand, 68 anos, é um intelectual polêmico que não teme enfrentar as posições dominantes nem a ira de alguns dos seus colegas de profissão. De Nice, na França, onde passava alguns dias ao sol e escrevendo um livro sobre a relação da história com a ciência, ele concedeu, por telefone, esta entrevista ao Caderno de Sábado. Como sempre, foi implacável.
Passado o impacto da tragédia de Charlie Hebdo, Sand faz o balanço da relação do Ocidente com a religião islâmica e do conflito israelo-palestino,

Caderno de Sábado – Por que, após os atentados de Paris, o senhor declarou, contra boa parte da intelectualidade, não ser Charlie?

Shlomo Sand – Logo depois dos atentados de Paris, escrevi um texto intitulado “Eu sou Charlie Chaplin”. Expus a minha recusa ao slogan “eu sou Charlie”, que reuniu pessoas solidárias aos cartunistas de Charlie Hebdo assassinados por extremistas. O crime cometido não tem justificativa nem desculpa. Dito isso, eu fiz a seguinte pergunta: devo me identificar com as vítimas e ser Charlie porque os mortos representavam a encarnação da liberdade de expressão? Algumas das caricaturas de Charlie Hebdo eram de mau gosto. Apenas algumas delas me faziam rir. Havia na maioria das charges publicadas pelo jornal uma raiva manipuladora com o objetivo de conquistar mais leitores. A caricatura de Maomé com um turbante-bomba publicada por um jornal dinamarquês em 2006 já me havia parecido uma pura provocação. Algo como relacionar judeu com dinheiro. Tudo isso só tem servido para associar islamismo e terrorismo. Incita ao ódio, dissemina preconceito, desrespeita a fé do outro. Sendo assim, não sou Charlie.

Caderno de Sábado – O que deve prevalecer, a liberdade de expressão, de sátira, de humor, ou o respeito às crenças e às diferenças?

Sand – O limite da liberdade de expressão é a difusão do racismo. Duvido que Charlie Hebdo se atrevesse, como escrevi no meu artigo logo depois dos fatos, a publicar uma caricatura do profeta Moisés de quipá com ar de agiota numa esquina. Concordo com a proibição, na França, a que o humorista e polemista Dieudonné faça piadas com o holocausto, mas não posso admitir que ele seja agredido. Se fosse, porém, eu não sairia com um cartaz dizendo “eu sou Dieudonné”. O limite ao humor é a incitação ao ódio, ao racismo e ao preconceito. Uma coisa é satirizar uma religião dominadora e opressiva. Outra, atacar a crença de grupos dominados e humilhados. O Ocidente está acostumado a apoiar as piores opressões no Oriente Médio. Dito isso, precisamos lutar contra o extremismo de organizações como o Estado Islâmico, sem esquecer que europeus deixaram esse crescimento acontecer bancando, muitas vezes, os bombeiros incendiários.

Caderno de Sábado – O Ocidente tem então responsabilidade no que aconteceu como sustentam alguns intelectuais de esquerda?

Sand – É disso que estou falando. O Ocidente não faz o papel de Voltaire no Oriente Médio ou no mundo islâmico. É preciso não ridicularizar grosseiramente o islamismo na Europa onde vivem milhões de muçulmanos em condições precárias, realizando os trabalhos mais insalubres. Por tudo isso, não sou Charlie. Minha simpatia fica com os muçulmanos que vivem em guetos e poderão ser vítimas do ódio desencadeado pelos atentados. Minha referência é outro Charlie, aquele que nunca zombou de pobres e humildes, Charlie Chaplin. É fundamental lutar contra o terrorismo, que existe e produz devastação, tomando-se o cuidado de não estimular racismo e ódio. Além disso, a Europa não pode esquecer seu passado colonialista recente e os rastros que isso deixou. A Europa acompanhou os Estados Unidos ajudando a criar o caos no Iraque e na região. Com apoio de aliados “esclarecidos”, grandes defensores da “liberdade de expressão”, como os sauditas, ajuda a preservar fronteiras ilógicas estabelecidas por interesses imperialistas. A minha conclusão é simples: o Ocidente não é a vítima ingênua e inocente como gosta de se apresentar. A França é responsável pela situação atual do Mali. Precisamos dar uma basta à hipocrisia que dá aos ocidentais sempre o bom papel. Intelectuais e escritores desempenham um papel nisso.

Caderno de Sábado – Livros como o romance de Michel Houellebecq, “Submissão”, que trata da ascensão ao poder na França de um presidente muçulmano, em 2022, incitam o medo do islamismo?

Sand – Michel Houellebecq, mesmo que não seja a sua intenção, contribui para que as pessoas sintam medo do islamismo. Ninguém pode escrever um livro tendo como tema uma ameaça de judeização do mundo, mas o autor de um romance sobre uma ameaça de islamização ganha todos os espaços de mídia. A questão é: como lutar contra o terrorismo? A resposta, como venho mostrando nas minhas reflexões sobre o conflito israelo-palestino, está em entender as origens do conflito. Sem desconstruir os mitos não se chega ao cerne dos problemas maiores.

Caderno de Sábado – Como viu a participação do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu nas manifestações de Paris depois do atentado contra a mercearia judaica e contra Charlie Hebdo?

Sand – Terrível. Netanyahu nem sequer compreende o fato de que judeus possam viver em outros países. Na cabeça dele, todo judeu fora de Israel está em situação temporária fora de casa e deveria voltar para o seu lugar. Ele não entende o conceito de cidadão e de cidadania.

Caderno de Sábado – Um dos assassinos dos atentados de Paris, o que invadiu a mercearia de produtos judaicos, fez menção à questão da Palestina. O senhor é um estudioso das relações entre judeus e palestinos. Vê uma saída para esse conflito que parece sem fim?

Sand – Não. Não vejo saída. Seria preciso uma forte pressão internacional para salvar Israel de si mesmo. Essa pressão teria de vir dos Estados Unidos, mas isso não acontecerá, pois Barack Obama não é presidente que se poderia imaginar. Ele cedeu rapidamente ao lobby sionista e aos interesses da indústria armamentista. Israel não percebe as próprias contradições. Desde 1947, instalou um regime de apartheid que não para de se acentuar. Temo pelo futuro de Israel. As reações e revoltas poderão se ampliar atingido até a Galileia.

Caderno de Sábado – Não vê Israel como uma verdadeira democracia?

Sand – Claro que não. Israel é uma etnocracia, o Estado dos judeus, o que se baseia numa visão etnocêntrica. Uma democracia é de todos os seus cidadãos independentemente das suas crenças ou “raças”. As medidas recentes com o objetivo de enfatizar o caráter judaico do Estado de Israel enfatizam esse elemento inaceitável de separação. Israel e Líbano são dois países com elementos liberais e democráticos, mas Israel não pode ser visto como uma verdadeira democracia na medida em que não aceita o fundamento universalista do regime democrático. Os assentamentos, que continuam, e a lógica empregada pelo sistema dominante alimentam esse apartheid que tem consequências cotidianas deploráveis para palestinos vivendo em condições precárias e insustentáveis. Qualquer um pode ver isso. Repito, só a pressão internacional poderá levar Israel a ser democrático. Quanto ao conflito, precisamos de dois Estados com base nas fronteiras de 1967. Fora disso, nada poderá funcionar mesmo.

Caderno de Sábado – Como superar a questão dos refugiados palestinos que gostariam de ter direito de retornar à terra de pais ou avós?

Sand – Temos de ver a situação com moderação. Todos os refugiados não podem voltar, pois isso significaria o fim de Israel. Mas precisamos fazer com que uma parte desses descendentes de palestinos possa voltar. O princípio é simples: em 1947, a terra onde está Israel era deles, dos palestinos, que foram expulsos de lá. Essa história de direito de dois mil à terra de Israel é uma bobagem. Ninguém tem esse tipo de direito. Ou todos os brasileiros de origem europeia deveriam sair do país e devolver o Brasil inteiro aos índios? Os Estados Unidos também deveriam ser evacuados? Não existe isso. Os judeus não são um povo, não são uma raça. Há judeus russos, poloneses, judeus saídos do Iêmen, de origens distintas. Só a religião é comum entre eles. Os brasileiros não são uma raça. Nem os judeus. Boa parte dos judeus de hoje não descende de ninguém que jamais tenha vivido na Palestina, mas de pessoas convertidas ao judaísmo em outros lugares.

Caderno de Sábado – E a lei de retorno para judeus?

Sand – Só devem poder ir viver em Israel judeus perseguidos. É um critério factível e sustentável moralmente. Os demais têm as suas nacionalidades e não são nem devem ser israelenses. Os fundamentos que justificam a existência de Israel são o holocausto e o fato consumado. Dado que Israel existe, precisa continuar existindo. Para isso, temos de conciliar israelenses e palestinos no mesmo espaço. Como a terra era dos palestinos e não se pode receber de volta todos os refugiados, cabe juntar dinheiro e indenizar todos os que foram despojados. Um mítico direito de dois mil anos atrás não pode se sobrepor ao direito de propriedade legítimo de 1947. Israel precisa assumir o seu papel na tragédia da população palestina.

Caderno de Sábado – Não acredita numa unidade genômica dos judeus?

Sand – De jeito nenhum. Essas pesquisas de DNA, essas pesquisas que falam de um DNA comum a todos os judeus, são uma empulhação. Tudo isso faz parte de um mito perigoso, o mito do povo judeu como raça.

Caderno de Sábado – Seus colegas o odeiam?

Sand – Historiadores apegados aos mitos sionistas me odeiam, mas meus livros são best-sellers em Israel. Estou escrevendo um livro sobre história e ciência para mostrar que história não é ciência. Ideologias, mitos e emoções permeiam boa parte dos relatos.

Fonte: Jornal Correio do Povo 31.01.15

22 janeiro, 2015

O Corpo: sobre nossos limites... Do Blog RAZÃO INADEQUADA



Mara Lafourcade Rayel - "porto dos poros I"
Mara Lafourcade Rayel – “porto dos poros I”
- por Rafael Lauro e Rafael Trindade

Se pudermos dizer que aprendemos alguma coisa, com certeza será sobre nossos limites. Não, o limite não está nem fora nem dentro, está “entre”. A fronteira não é nada mais que o limiar, o ponto de encontro, a linha. Mas todos os limites são cruzados diariamente, a vida vibra, está sempre em ressonância com outras coisas. A vida não respeita limites…
A cerca não limita nem protege, ele faz contato, ela estabelece a fronteira entre nós e o mundo. Se a cruzamos, nos cruzamos, se não a ultrapassamos, ficamos na porta, mas à espreita. Não encontramos obstáculos quando a cruzamos, o obstáculo é encontrar as portas! Não se tratam de portas trancadas, mas ocultas, esperando ser descobertas, desobstruídas. Estamos no mundo e precisamos de uma sabedoria, uma boa maneira de agir, não de uma chave-mestra.
Não acreditamos mais no mal, há apenas mau jeito: uma perna quebrada é um mau jeito, o que fazemos disso? O que nós podemos tirar disso? O problema está no meio, nos limites, assim como a solução, que se encontra nos limiares, nos encontros, na relação. A vida insiste em desfazer a ordem que lutamos para instaurar. A vida se faz em problemas e nos exige a criatividade de solucioná-los.
Queremos aprender a cada vez mais estender nossos limites, ampliar-nos, esticar-nos. Só assim nos vemos livres. Queremos estender nosso ser, apenas assim nos vemos felizes. Queremos deitar no horizonte! Surfar na tangente! Tornar nosso aquilo que não somos. Tornar nosso ser outro. Transformar ser em estar, perecer em bem-estar.
Limite e infinito não mais se opõem, se cruzam constantemente. O infinito nos atravessa, nos corta, nos chama, mas não mais nos atropela. Somos compostos de forças resistentes que criam densidade, um lugar que tende à definição, mas que nunca se sedimenta. De alguma forma nos deformamos até descobrir que somos eternos. Massa de manobra da potência de ser. Cimento da realidade, tijolos da existência. A confusão é total, mas existe um equilíbrio qualquer.
Queremos abrir os braços. Ir para além-do-homem, passar por cima, sobrepujar. Se nos fizemos um experimento foi para encontrar uma reação explosiva, e deixar a casca homem para trás. Desde então, somente aceitamos falar de limites elásticos, de catapultas de afetos, flechas de diferenciação, de membranas permeáveis. E aqui se apresenta um ponto importante: buscamos a concentração perfeita. Não podemos ser invadidos pelo mundo a todo momento, nem nos tornar pedregulhos impenetráveis. Prudência e experimentação, medida e desmedida, envolvimento e afastamento devem ser dosados. O meio interno e meio externo estão em um perpétuo conflito mediado pela concentração.
O que é nosso corpo? Antes de tudo,  uma multiplicidade irredutível. Até onde vai nosso corpo? Até onde o esticarmos! – nós ocuparemos todo o espaço que nos for concedido ou que conquistarmos, mais ou menos como o ar. Se chegamos até você, é porque nossos dedos digitam e temos um monte de silício organizado à nossa disposição. Sua retina capta os nossos códigos, seu intelecto os decodifica à sua maneira, nos encontramos, estão dados os limites. Aquilo que somos nos ultrapassa e te atravessa. Te atropelamos? Esperamos que não… te afetamos, essa é a nossa proposta! Queremos criar laços, fazer aliados, expandir limites, aumentar os volumes, criar densidades!
O que pode o corpo? Pode aquilo que tem potência. O corpo é aquilo que é capaz de fazer e se define também por sua capacidade de ser afetado. Não há separação entre nós e o mundo ao nosso redor: a comida e o ar são o mundo invadindo o corpo; a voz e os movimentos são o corpo penetrando a existência. Somente um ignorante colocaria um “e” ontológico entre o corpo e o mundo. Só separamos sujeito e predicado na gramática – eu sou a ação, eu sou a existência! Falar de outras realidades é abster-se desta, é diminuir-se, é encurtar o caminho para o fim da existência.
Fechar-se não é isolar-se, é deixar passar poucos afetos. Não há escapatória. A fortaleza é uma casca morta e insensível. Abrir-se é perder-se, deixar-se estuprar pelo mundo. Poucos perguntaram: quais são suas máquinas desejantes? Não estou aplicando um teste de personalidade, estou perguntando: “o que te afeta?”. O marco que estabelece seus limites são as máquinas que não se conectam com você. Sua pele é a membrana permeável que permite que estes afetos passem ou não. Nossas fronteiras são pontilhadas, passam fluxos imperceptíveis a todo momento. Nosso corpo é um porto, aberto para o mar.

mara lafourcade rayel - porto dos poros II
Mara Lafourcade Rayel – porto dos poros II


14 janeiro, 2015

Nietzsche: O além do homem, o além do humano, do ser humano (super-homem) e +


Me sentindo provocado por uma postagem no Facebook, feito por uma amiga... resolvi procurar e achei esses três belos textos de , os quais copio abaixo... na íntegra e com todas as imagens e créditos para o autor supracitado no seu blog

Nietzsche – o além-do-homem [ou, o super-homem]      

"Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo?” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 13
Matteo Pugliese
Matteo Pugliese

Por que demoramos tanto para falar do super-homem? Bem, não é tão fácil, este conceito tão famoso de Nietzsche (e tão mal interpretado) exige a articulação de tantos conceitos que seria impossível começar por ele. São necessárias a noção de Eterno Retorno, como ferramenta para se chegar ao Super Homem, a ideia de amor-fati, para superar todo o ressentimento, e, claro, o conceito de Vontade de Potência.
É por isso que aconselhamos antes a leitura destes textos, sem eles, jamais teríamos a capacidade de entender o que significa dizer que “o homem é uma corda, atada entre o animal e o super-homem – uma corda sobre o abismo” (Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 13). Nietzsche matou Deus, e agora quer dar fim aos seguidores dele:
“Grande, no homem, é ele ser uma ponte e não um objetivo: o que pode ser amado, no homem, é ser ele uma passagem e um declínio” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 13
As duas traduções mais comuns para Übermensch são super-homem e além-do-homem; nenhuma delas é perfeita, mas as duas trazem a ideia de superação, de alguém que se eleva, a criação de um novo tipo. Usaremos aqui os dois nomes como sinônimos. O super-homem não é uma forma superior de homem, mas é aquele que deixa a forma homem para trás, se desfaz desta casca que se tornou demasiadamente apertada.
Ao desenvolver este conceito, Nietzsche estabelece plena oposição com o europeu moderno. Este é o alvo de sua crítica, o filósofo também o chama de último-homem, ou homens-superiores. Zaratustra ridiculariza este homem apaixonado por sua cultura, suas leis e seus valores cristãos (já escrevemos aqui sobre a psicologia do homem do ressentimento). O último-homem (último poque depois dele vem o além-do-homem) é o europeu domesticado, obediente, anestesiado, entupido de cultura, aferrado ao seu tempo. Este está em franco declínio, e Zaratustra ama aqueles que querem declinar, pois é deles que nascerá o super-homem: valente, impetuoso, ativo, vivaz.
O niilismo está em seu estágio mais avançado: o homem não quer mais ir para além de si, não quer criar, “seu solo ainda é rico o bastante para isso, mas um dia este solo será pobre e manso, e nenhuma árvore alta poderá nele crescer” (Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 18). O super-homem é aquele que vence o niilismo, supera a forma homem, velha e desgastada, supera todos os humanismos, toda a cultura que o prende em si mesmo, é ele quem “lança a flecha do seu anseio por cima do homem” (Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 18). Já o homem do ressentimento é aquele cujas forças reativas predominam, ele é escravo de seu tempo, não consegue ir para além da conservação.
O homem moderno orgulha-se demais de si próprio, está acomodado, conformado, abraça seus ídolos supersticiosos como único meio de sobrevivência. Chegamos ao extremo da massificação e uniformização. Também existe, claro, muito medo e insegurança, poucos aventureiros. O valor dos valores deve ser revisto: é afundados nesta sociedade moralista que devemos viver? Não! A afirmação do super-homem é a negação dos valores vigentes: ousadia no lugar de segurança, auto-disciplina ao invés e auto-piedade, esquecimento em vez de ressentimento. Zaratustra aconselha ao homem mergulhar dentro de si para encontrar a potência necessária para declinar, deixar esta forma velha e empoeirada e criar novos valores. Isto fica claro nesta famosa passagem:
Eu vos digo: é preciso ter ainda o caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante, eu vos digo: tendes ainda o caos dentro de vós” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 18
Matteo Pugliese5
Matteo Pugliese

O além-do-homem é aquele que supera todo o ressentimento, é a criança da última das três metamorfoses, é a inocência do devir. Todos os modelos são deixados para trás, todos os ídolos são quebrados: só há espaço para a criação. O homem se torna artista, dono de si; não qualquer espécie de ditador, desmentindo qualquer vínculo com o nazismo (pobres daqueles que leram duas linhas de Nietzsche e o acham pessimista ou próximo do nazismo, este ainda tem um longo percurso pela frente).
O super-homem é aquele que apreendeu o verdadeiro sentido do eterno retorno: o retorno da diferença. Há um completo domínio das forças reativas, elas obedecem ao além-do-homem, faz-se uma herarquia. As forças que querem criar se tornam mais fortes que as forças que querem conservar. Expressão da diferença no lugar de conservação do igual. O ser passa a se afirmar na diferença, o devir é o devir da potência na diferença.
Os mais preocupados perguntam hoje: ‘como conservar o homem?’. Mas Zaratustra é o pimeiro e único a perguntar: ‘Como superar o homem?'” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 272
É necessário o dizer-sim do bom jogador, amor-fati, aquele que aprendeu a jogar não pelo resultado do lance de dados, mas pelo prazer que o jogo proporciona, independente do resultado. A dor o cativa, o torna mais forte, ele não amaldiçoa o sofrimento, ele o abençoa, pois é sua possibilidade de provar-se e ir além. Todo “acaso é cozinhado em sua panela”, ele pode aproveitar-se até mesmo da dor, é um tempero a mais na vida, é mais uma tonalidade que ele dispõe ao pintar novos horizontes.
Mas Nietzsche nos avisa desde cedo, não há super-homens ainda (até porque ele é muito mais uma atitude do que uma estado de ser). Nascemos em um lodaçal onde podemos nos aprimorar e tornarmo-nos mestres de nós mesmos, o super-homem é uma possibilidade circunscrita que acontece esporadicamente. Quem sabe não estamos abrindo caminho para ele? Quando a Vontade de Potência se manifesta plenamente, podemos dizer que o além-do-homem se anuncia através de nós.
Ir para além do homem é ir para além da forma homem pregada pelos humanismos que existem por aí, ultrapassar as ideias fechadas, os conceitos que mais parecem prisões. O que pode o homem? Mais nada, o melhor a fazer é ultrapassá-lo.
Após a morte de Deus, seu trono ficou vago, e foi preenchido por toda sorte de superstições. O niilismo ainda está presente, mas o além-do-homem atravessa todo este lodaçal como um raio de luz que não se deixa contaminar pelo niilismo. O além-do-homem atinge o ponto definitivo da morte de deus. Finalmente toda transcendência é deixada de lado: deus, religião, moral, lei, castração, verdade, ciência, humanismo, justiça, bem e mal.
A morte de deus foi anunciada, mas só com o advento do super-homem ela se torna definitiva. Com o declínio do último-homem, o ocaso de seus valores, o homem supera a si mesmo superando deus e todos os valores ascéticos. Por fim, a longa e gelada noite termina com os primeiros raios de sol, anunciando a filosofia do meio-dia.
O homem se acha no meio de sua rota, entre animal e super-homem, e celebra seu caminho para a noite como a sua mais alta esperança; pois é o caminho para uma nova manhã./ Então aquele que declina abençoará a si mesmo por ser um que passa para lá; e o sol do seu conhecimento permanecerá no meio-dia/ ‘Mortos estão todos os deuses: agora queremos que viva o super-homem'” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 76

Matteo Pugliese4
Matteo Pugliese


A psicologia do Homem do Ressentimento

O ressentimento, a ninguém é mais prejudicial que ao próprio ressentido” – Nietzsche, Ecce Homo, §6
Nietzsche

Nietzsche fez um diagnóstico do homem moderno. 
Seus pensamentos são essenciais para entender 
o niilismo em que vivemos e o motivo pelo qual 
o animal homem é um bicho doente. Através 
 da interpretação do mundo pela 
Vontade de Potência, Nietzsche tem condições 
de responder porque o homem ressentido dominou 
e como superar nosso pessimismo atual.
O ressentimento vem daquele homem que perdeu
 a capacidade de criar e de experienciar o presente. 
A Vontade de Potência é a força que se efetiva 
no devir, onde está o mundo está a verdade, 
por isso as forças ativas são ativas, porque 
afirmam o presente. O tipo ressentido é aquele 
que possui alguma inibição ou bloqueio 
para suas forças ativas se expressarem. 
Podemos separá-los em três níveis:
O primeiro nível de niilismo é o do homem 
 ressentido no exato sentido da palavra: re-sentir. 
O esquecimento é uma força ativa no homem que 
o livra de perder-se no passado. A força ativa 
 do esquecimento é o que apaga as marcas 
no homem e o permite novamente experienciar 
o devir. Mas o homem reativo não consegue 
esquecer, ele re-experiencia novamente porque 
suas forças ativas não conseguem superar suas forças 
reativas, responsáveis pela criação das memórias. 
Sendo assim, este homem perde a capacidade 
de metabolizar o que lhe acontece e passa a 
rememorar eventos passados. Lembrar é sempre 
ruim: até mesmo uma boa lembrança, porque 
nega o aqui e agora. O homem ressentido sente 
a frustração do peso de sua bagagem. A identidade 
que preocupa-se em manter, os valores 
de bem e mal, ideais são consequência da perda 
do devir pela memória hipertrofiada do homem reativo.
O segundo nível constitui a má-consciência. 
Dá-se quando a criação de ideais é usada para 
maldizer o mundo, gerando um mal-estar inerente 
à condição humana. O mundo nunca conseguirá s
atisfazer o homem cheio de ideais, por isso 
este indivíduo desaprende a amar a vida e passa 
a maldizê-la. Ele não sabe exatamente por quê, 
mas o mundo é ruim e não o satisfaz. Ele não 
consegue encontrar a solução, mas o mundo parece
 ter infinitos problemas. Ele não suporta que 
o tempo passe porque isso demonstra 
a impermanência que o homem da abstração 
não aguenta. Este tipo de ressentimento acontece 
porque as marcas que constituem o homem 
(sua memória, seus ideias, sua moral) impedem 
que a Vontade de Potência flua naturalmente. 
O homem domesticado é cruel consigo mesmo 
(como animal batendo nas grades): “sofro, 
 portanto deve haver um culpado”. Essas forças 
que se voltam contra ele são as mesmas que o
 machucam e debilitam.
Que tipos de pensamentos a doença inspira? 
A última forma de ressentimento o demonstra 
com o advento da figura do sacerdote. Somente 
ele foi capaz de mudar a direção do ressentimento, 
dar-lhe sua forma final. É uma atitude cruel por 
parte do padre, mas a única capaz de salvar o
 homem doente: dar sentido ao ressentimento, 
para diminuir sua dor. Como todo aquele que 
sofre procura por um sentido, o homem 
reativo também procura uma resposta para s
ua angústia. Qualquer sentido é melhor que 
a falta de sentido e o mesmo acontece com 
o homem reativo: ele não sabe por quê sofre. 
O padre lhe diz então: “você sofre porque 
é um pecador, se você sofre é porque é culpado”. 
A vontade está salva, há um sentido, mesmo que 
seja niilista: o homem sofre para em sua próxima 
vida ser salvo. A forma e o sentido do ressentimento, 
dada pelo padre, tem efeito sedativo, mas a interpretação 
 não é o remédio, é uma das causas da doença.
Nietzsche procura saídas para o homem moderno 
não sufocar-se em sua própria angústia. 
Um dos remédios para o ressentimento? 
A busca pelos momentos de espontaneidade: 
“Aja duas vezes antes de pensar”. 
O hiperdesenvolvimento da consciência levou 
à incapacidade de sentir e agir. O ressentido 
carrega consigo todo o lixo do qual não 
consegue desvencilhar-se. Já o homem ativo tem 
sempre o organismo limpo para novas 
experimentações porque se utiliza de umas 
das fórmulas desenvolvidas por Nietzsche para 
a grandeza do homem: Amor-Fati.

Gravura do livro "Memórias do Subsolo" de Dostoiévski.  Para Nietzsche, este livro representava a descrição perfeita do homem ressentido.
Gravura do livro “Memórias do Subsolo” de Dostoiévski. Para Nietzsche, este livro representava a descrição perfeita do homem ressentido.

Nietzsche – amor-fati      

 Nietzsche na varanda

Minha fórmula para a grandeza no homem é amor-fati: não querer nada de outro modo, nem para diante nem para trás, nem em toda eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos ainda dissimulá-lo – todo idealismo é mendacidade diante do necessário -, mas amá-lo” – Nietzsche, Ecce Homo, Porque sou tão esperto, §10.
As implicações do eterno retorno levarão inevitavelmente a outro conceito muito importante que Nietzsche chamou de amor-fati (do latim, amor ao destino). Se tudo retorna eternamente, e exatamente como é agora, então é imprescindível ao homem seu destino. Se não existe nada além desta existência, há de se concluir que apenas ela merece nosso amor.
Aprender a amar nosso destino, encontrar beleza no necessário, esta é a grande lição de Nietzsche já no fim de sua produção intelectual; talvez seu último grande ensinamento. Dizer sim à vida, porque só ela que existe e somente ela traz valor em si mesma. Esta lição serve tanto para momentos de felicidade como para momentos de desespero. Transformar o “foi assim” em “eu quis assim” dá um sentido próprio ao que aconteceu (ver Zaratustra – Da redenção).
O controle do passado implica aceitar o que lhe foi dado e tirado. Todos os acontecimentos se inserem numa ordem causal da natureza, assim como você, portanto, nada poderia ter acontecido de outra forma, nada poderia ter sido diferente, não adianta lamentar-se. É preciso afirmar até mesmo o erro, afinal de contas, ele não é um erro! Ele era absolutamente necessário naquele momento e só pode ser interpretado como um erro se tomarmos formas superiores para nos guiar (mas Deus está morto).
A exortação de apropriar-se do que aconteceu nos torna capaz de seguir adiante. O bom e o ruim, a dor e o prazer, são inerentes à vida, amar o que lhe acontece e acontecerá é o primeiro passo para tornar-se quem é. “Em vez de esperar que um poder transcendente justifique o mundo, o homem tem de dar sentido à própria vida; em vez de aguardar que venham redimi-lo, deve amar cada instante como ele é” (Marton, Nietzsche e a transvaloração dos valores).
“O homem é algo que deve ser superado” (Zaratustra, prólogo). A forma homem é velha e caduca, ela vai errar sempre porque ainda está presa em ídolos metafísicos, presa à forma. É preciso deixar a forma-homem para trás para afirmar aquilo que passou e mais, amar aquilo que passou, porque assim deveria ser, por toda a eternidade. Redimir o passado, desatar os nós do ressentimento, dissolver a má-consciência, para que mais serviria o amor-fati? Existe tarefa maior?
Devemos afirmar a vida, negando toda calúnia, toda desvalorização, toda acusação que possa ser feita contra ela. Mas este ensinamento foi muito mal compreendido. O amor-fati não implica em resignação, sua lição não é de aceitação passiva, muito menos acovardar-se. Não devemos abaixar a cabeça e aceitar, muito menos virar a outra face (Mt 5,39). O amor-fati diz para o indivíduo amar a vida, porque só ela existe e fora do todo não há nada. Significa afirmar o que tinha que ser sem deixar de afirmar a vontade de potência, em si e no mundo.
E negar os negadores é uma forma de afirmar! Por isso a luta também faz parte deste amor; não se pode apenas entender que existem paradoxos e contradições, é necessário amá-los. Devemos amar a luta, a revolta, a insubmissão. E que dizer “Não” seja apenas um passo para se dizer “Sim” cada vez mais alto! Porque temos cada vez mais vontade de dizer “Sim!”. Vontade de estar no mundo! Vontade de amar! Amor-fati
Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas. Amor-fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores, Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!” – Nietzsche, Gaia Ciência, §276.

Ilustração de Maximillien Leroy
Ilustração de Maximillien Leroy.
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Se você gostou, não deixe de visitar o blog do autor: tem muitos textos ótimos.


13 janeiro, 2015

2015 com luz para iluminar a sombra


Comecei 2015 desejando luz (não religiosa) numa postagem do Facebook, transcrita abaixo.



Amigos e amigas!
Que em 2015... a luz (espiritualidade) ilumine a sombra (Psicologia: termo usado por C. G. Jung para designar a parte da personalidade que não gostamos e/ou não queremos admitir possuir).
Meu desejo de luz para todos, mais transparência e menos opacidade.

Essa estranha imagem possibilita pensar que todos somos (ou podemos ser... um) Buda, o iluminado. Vai nesse sentido o meu desejo de Luz.
Vejam o que é a sombra na Física e as analogias que podemos fazer com a sombra, de Jung, e com os votos de luz:
"Uma sombra é uma região escura formada pela ausência parcial da luz, proporcionada pela existência de um obstáculo. Uma sombra ocupa todo o espaço que está atrás de um objeto com uma fonte de luz em sua frente. A sombra muda de posição conforme a origem da luz.
A sombra é algo inexistente, porém, é o nome que damos para a ausência da luz, a silhueta que é formada quando um corpo bloqueia a luz, portanto pode ser considerado incorreto dizer que um objeto "produz sombra".
Exemplos de bloqueios da luz feitos por corpos: Corpo completamente opaco: não permite a passagem de luz. Corpo meio transparente: permite, parcialmente, a passagem de luz, dependendo da opacidade. Quanto maior a opacidade de um corpo, maior será o bloqueio de passagem da luz e mais nítida será a sombra.
A sombra pode ser de diversos tamanhos, dependendo da distância em relação ao corpo bloqueador da luz e da distância da luz em relação ao corpo.
Existem dois tipos de sombra: a sombra própria e a sombra projetada. A sombra própria é aquela que é formada pelo próprio objeto, por efeito de incidência da luz no objeto. A sombra projetada é quando um objeto em contacto com a luz forma uma sombra que é projetada posteriormente num plano ou até mesmo num outro objeto."
Fonte Wikipédia


Poucos dias depois... o ano começa com os atentados em Paris e com todas as consequências que vamos descobrindo e vendo a cada dia... mais e mais e mais.

Vendo 
os modos 
como
os fatos 
vão se sucedendo, 
parece-me que a sombra está dançando sozinha,  louca e descompromissada... ALHEIA A QUALQUER LUZ NO AMBIENTE.
Assim, o que inexiste passa a existir a ganha vida própria.

Então surgem algumas questões:


O que é liberdade de expressão? Como funciona? Tem limites? Não tem limites? É negociável, ou não? É uma utopia ativa ou uma prática possível e cotidiana ilimitada?
É igual em todas as democracias, ou não?
Eu sou e ao mesmo tempo não sou Charlie!



Uma "tsunami" de cartoons tem invadido o mundo nesses últimos dias, desde o terrível atentado na França, o qual gerou comoção. Compreensíveis (tanto a proliferação de manifetações de solidariedade - com ou sem cartoons - como a comoção.
Enquanto isso e antes disso... o Boko Haram sequestrou (mais dezenas) de meninas na África, crianças foram mortas em escola no Paquistão, mulheres são presas na Arábia Saudita por dirigirem automóveis....
Por que esses fatos não causam tamanha onda de solidariedade?
Eis (mais uma) pergunta para a qual eu não tenho resposta.
Mas tenho uma pista: ocorrem fora dos grandes destinos turístico ocidentais e não tem apoio da mídia.
Quem tem mais poder, de fato?
A caneta que escreve ou a arma que mata?
Ou são poderes diferentes?
Que mundo doido (e complexo) vivemos.


Cada um na sua vida e no seu ofício usa "as armas" de que dispõe.
Na minha e no meu uso a palavra.
É muito comum que eu seja o único ser no mundo que faz determinadas perguntas ou colocações na vida dos meus "pacientes".
Como de resto, é importante saber quando e como perguntar...




Sim, sim e sim: combater o terror e todas as formas de sujeição e discriminação que recaem sobre as pessoas. Sim, sim e sim: levantar a pena, usar a palavra... escrever, desenhar e...
Mas... tem um problema difícil: por vezes é exatamente isso que, ao invés de derrubar e combater o terror... o aciona, aumenta e fortalece.
É incerto o que vai acontecer: se, quem, onde, quando e de que jeito... não sabemos.
Durma-se com um barulho (mudo) desses...


E começam a aparecer, também, algumas posições: (para se aprofundar, siga os links abaixo)

"Entender o atentado de 7 de janeiro, um dos mais graves já ocorridos na França, apenas como um ataque à liberdade de expressão é uma meia verdade e envolve um grande risco político de interpretação."

http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/01/atentado-contra-extrema-esquerda-na-franca/

Eu me encanto com a diversidade humana e seus jeitos de pensar, argumentar, ver os fatos e assumir posições. Aqui um texto muito inteligente e que retrata algumas das coisas que venho pensando.

"A quem serve a liberdade de expressão?
Aqueles que ostentam orgulhosos o slogan “Eu sou Charlie” se dizem advogar pela liberdade de expressão, porém não questionam o que significa essa liberdade de expressão nem tampouco quem tem direito a essa liberdade. Ninguém se preocupa com a censura à liberdade de expressão religiosa islâmica na França."
Zuni


http://descolonizacoes.blogspot.com.br/2015/01/por-que-nao-sou-charlie-hebdo.html

Parece-me desnecessário argumentar o motivo de alguém "ser Charlie":
Assim, estou na contramão, lendo mais o que sai da massificação e do senso comum... buscando outros lados. Este é outro texto bem interessante e que retrata a complexidade do assunto e da diversidade humana.



https://ninja.oximity.com/article/Je-suis-Ahmed-1

E... aí, recebi este link de uma amiga:

Cesar, segue o link da matéria e a tradução, como te disse, "á la" google tradutor, mas acho que já ajuda a compreender um pouquinho.

Edgar Morin: "A França atingiu o coração de sua natureza secular e liberdade"
A fórmula para Francois Hollande está certa: "A França foi atingida no coração. " Ela foi atingida no coração de sua natureza secular e sua ideia de liberdade, precisamente no ataque contra o desrespeito semanal típico, escárnio atingindo o sagrado em todas as suas formas, inclusive religiosa. Mas o desrespeito pela Charlie Hebdo está no nível de riso e humor, dando um caráter estúpido monstruosamente no ataque.
Nosso sentimento é não prejudicar a nossa razão, como a nossa razão não deve reduzir a nossa emoção. Não insuperável contradição.
Houve problemas no momento da publicação das caricaturas. Devemos deixar a liberdade ofender a fé dos crentes no Islão por degradar a imagem de Seu Profeta, ou a liberdade de expressão faz substituições de todas as outras considerações? Então eu manifesto meu senso de contradição não insuperável, especialmente porque eu sou daqueles que se opõem a profanação de lugares e objetos sagrados.
Mas, claro, isso não faz nada para moderar o meu horror e nojo do ataque contra Charlie Hebdo .
Dito isto, o meu horror e nojo não podem deixar de contextualizar o ataque imundo. Isso significa o surgimento, no coração da França, a guerra no Oriente Médio, a guerra civil e a guerra internacional, quando a França interveio na esteira dos Estados Unidos.
A ascensão do Daech é certamente uma consequência da radicalização e apodrecimento de guerra no Iraque e Síria , mas as intervenções militares no Iraque e no Afeganistão têm contribuído para a quebra de compostos nações étnica e religiosamente, como Síria e Iraque .
Os Estados Unidos eram feiticeiros aprendizes e coligação diversa sem força real eles dirigem-se ao fadado ao fracasso, uma vez que não atender a todos os países interessados, também viu que estabelece uma meta de Paz restauração impossível da unidade do Iraque e da Síria, como o único desfecho pacífico real (atualmente inviável) seria uma grande confederação de povos, etnias, religiões do Oriente Médio sob garantia de united nations, único antídoto para o califado.

Coincidência
França está presente por sua aviação, pelas partes muçulmanas francesas para a Jihad por franceses muçulmanos Jihad, e agora, é agora claro que o Oriente Médio está presente no interior da França pela atividade mortal, que começou com o ataque contra Charlie Hebdo , como já o conflito israelense-palestino está presente na França.
Além disso, não é uma coincidência, no entanto acidental, entre o fundamentalismo islâmico assassino que acaba de se manifestar e islamofóbicos funciona Zemmour e Houellebecq, tornam-se os sintomas agravados de virulência, não só na França mas também na Alemanha , na Suécia , a islamofobia.

O medo vai piorar
O pensamento reducionista triunfa. Não só os fanáticos assassinos acreditam combater os cruzados e seus aliados judeus (os cruzados massacraram), mas islamofóbicos a reduzir árabes para sua suposta crença, islão, islâmico reduzir pela islâmico fundamentalista islâmico, em terrorista fundamentalista.
Este anti-islamismo está se tornando mais e mais radical e obsessivo e tende a estigmatizar uma população ainda maior em número do que a população que foi estigmatizado por anti-semitismo judeu antes da guerra e Vichy.
O medo vai piorar em francês de origem cristã, para aqueles de origem árabe, para aqueles de origem judaica. Alguns se sentem ameaçados por outros e um processo de decomposição está em andamento que pode ser capaz de parar o grande comício programado sábado 10 de janeiro, porque a resposta para a decomposição é a reunião de todos, incluindo todos os grupos étnicos, religiões e composições políticas.


En savoir plus sur http://www.lemonde.fr/…/la-france-frappee-au-c-ur-de-sa-nat…

En savoir plus sur http://www.lemonde.fr/…/la-france-frappee-au-c-ur-de-sa-nat…

Na sequencia... apareceu Eu não sou Charlie, do Leonardo Boff:

https://leonardoboff.wordpress.com/2015/01/10/eu-nao-sou-charlie-je-ne-suis-pas-charlie/

No domingo... DIA DA MARCHA:

Marcha em Paris pela unidade acontece com diversidade de manifestações. Eu sou Charlie, eu sou Ahmed, eu sou judeu, eu sou muçulmano e eu sou francês... 

ENTÃO, O QUE PENSAR, DIZER, CONCLUIR DISSO TUDO?
Já dá para concluir algo?

Se uma mesma pessoa, durante uma semana, lesse de manhã quatro jornais diferentes e ouvisse três noticiários de rádio diferentes; à tarde, frequentasse duas escolas diferentes, onde os mesmos cursos estariam sendo ministrados; e, à noite, visse os noticiários de quatro canais diferentes de televisão, comparando todas as informações recebidas, descobriria que elas "não batem" umas com as outras, que há vários "mundos" e várias "sociedades" diferentes, dependendo da fonte de informação.
Uma experiência como essa criaria perplexidade, dúvida e incerteza. Mas as pessoas não fazem ou não podem fazer tal experiência e por isso não percebem que, em lugar de receber informações, estão sendo desinformadas. E, sobretudo, como há outras pessoas (o jornalista, o radialista, o professor, o médico, o policial, o repórter) dizendo a elas o que devem saber, o que podem saber, o que podem e devem fazer ou sentir, confiando na palavra desses "emissores de mensagens", as pessoas se sentem seguras e confiantes, e não há incerteza porque há ignorância.
- Marilena Chauí -

"As regras do jogo ocidental
Postado por Juremir em 13 de janeiro de 2015 - Blog do Correio do Povo

A regra do jogo ocidental democrático é cristalina: cada um pode acreditar no que quiser. Mas não pode tentar impor a sua crença a outros. Tem o direito, porém, de tentar convencer os demais a compartilhar a mesma fé se ela não infringir qualquer lei. Não posso defender um credo racista. Para o restou, posso crer em tudo. Em contrapartida, qualquer um pode criticar essa crença, mostrar seus limites e caricaturá-la em charges ou piadas.
O sagrado de cada um não pode se sobrepor ao profano de outros.
É um sistema complexo. Aquele que descrê não pode invadir o espaço do crente para dentro dele tentar desqualificá-lo. Cada um no seu quadrado. Nenhum cartunista pode pregar charges contra o islamismo dentro de uma mesquita. Isso nem passa pela cabeça de pessoas razoáveis. Se acontecer, haverá punição e rejeição da sociedade. O islamismo pode proibir que seus adeptos coloquem Maomé em imagens. Essa interdição, porém, só pode valer para quem é muçulmano. Os demais não estão obrigado a obedecer a determinações de autoridades às quais não devem respeito. Um adepto que não segue os valores da sua fé pode ser expulso.
É uma questão interna. Fato.
Por que fazer aquilo que ofende o outro? Essa pergunta tem sido repetida incansavelmente depois dos atentados de Paris. Porque na regra do jogo ocidental cada um tem direito até mesmo a blasfemar. O que pode fazer o ofendido? Protestar, criticar, processar, fazer campanha para que ninguém leia o jornal ofensor nem ouça aquele que ofende. Quem não aceita essa regra do jogo não pode viver no mundo ocidental, pois esse é o fundamento das sociedades abertas. Ceder em relação a isso equivale a deixar o outro, aquele que não aceita essa regra do jogo, fixar as novas normas. Tem gente dizendo que ofender o sagrado alheio é provocação desnecessária. Lembra a posição de quem, falando de um estupro, reconhece a monstruosidade do ato, mas enfatiza que a estuprada poderia ter evitado provocar o agressor com o seu modo de ser, com as suas roupas sumárias e as suas atitudes.
No jogo ocidental, eu posso idolatrar um deus e meu vizinho pode escrever um livro contra esse mesmo deus ou ironizá-lo em um milhão de piadas. Se eu for convincente, poderei convencê-lo a fazer outra coisa. Se não for, terei de me controlar e aceitar a diversidade de opiniões. O Ocidente é politeísta. Nesse universo ocidental construído ao longo de séculos, com grande ajuda dos iluministas franceses, só deve valer o argumento que convence. Aceitar a proibição de satirizar o sagrado significaria transformar a fé privada em valor público universalizado. Eu, pessoalmente, não tenho gosto por rir das crenças de quem quer que seja. Mas aceito que outros não pensem como eu. Esse modelo tem a vantagem de dar espaço a todas crenças e também à contestação delas.
Um modelo respeitoso restritivo torna todos reféns de uma crença. É o modelo teológico.
Voltarei combateu a intolerância religiosa.
Hoje, deve-se combater a intolerância com a religião.
Desde que a religião seja capaz de também ser tolerante.
O que está em jogo? A capacidade de o Ocidente continuar fixando as regras do seu jogo sem se tornar refém do que recusa. Não se trata de recusar o diferente, mas de preservar as regras de casa."
(Tem erros de ortografia nesse texto que eu não corrigi. Postei tal como copiei e colei)

Pergunto, de novo: já dá para concluir algo?

"Capa do novo 'Charlie Hebdo' terá Maomé com placa 'Eu sou Charlie'
Edição terá 3 milhões de exemplares e será traduzida para 16 idiomas.
Jornal francês foi alvo de atentado que deixou 12 mortos.

A capa da próxima edição do jornal francês "Charlie Hebdo" trará uma caricatura de Maomé segurando uma placa que diz "Eu sou Charlie" e terá o título "Tudo está perdoado", segundo divulgou o "Libération" no Twitter nesta segunda-feira (12).
A sede do jornal foi alvo de atentado que deixou 12 mortos na última quarta-feira.
A equipe do "Charlie Hebdo" trabalha na próxima edição em espaço cedido na sede da redação do "Libération". A charge da capa é assinada pelo chargista "Luz".
O próximo número do jornal terá 3 milhões de exemplares - normalmente são 60 mil - e criticará, como de hábito, políticas e religiões, e incluirá caricaturas de Maomé, segundo informou o advogado da publicação. A nova edição será vendida em 25 países, de acordo com a France Presse.
"Não cederemos em nada, senão tudo isto não faria sentido", disse Richard Malka. "Rimos de nós mesmos, das políticas, das religiões, é um estado de ânimo", afirmou o advogado.
O Charlie Hebdo "dos sobreviventes", como é conhecida a edição que sai na próxima quarta-feira, será "traduzido para 16 idiomas", de acordo com o médico e cronista Patrick Pelloux.
Para Malka, "nunca temos o direito a criticar um judeu por ser judeu, um muçulmano por ser muçulmano, um cristão por ser cristão, mas podemos dizer tudo o que quisermos, as coisas mais horríveis, e as dizemos sobre o cristianismo, o judaísmo e o Islã, porque além da unidade dos belos lemas, esta é a realidade do Charlie Hebdo".
O advogado disse que o jornal rebeceu pedidos de 300 mil cópias em todo o mundo, e que normalmente o jornal tem tiragem de 4 mil exemplares fora da França.
O número de quarta-feira está sendo preparado exclusivamente por membros da equipe do jornal e não incluirá desenhos de cartunistas externos que publicaram incontáveis esboços em homenagem às vítimas depois do atentado.
Nos Estados Unidos, o Clube de Imprensa de Los Angeles anunciou que o jornal receberá este ano o prêmio Daniel Pearl à coragem e à integridade jornalística. O anúncio foi feito na presença dos pais do jornalista americano, assassinado em 2002 no Paquistão.
O editor-chefe do jornal, Gerard Biard, disse se sentir "profundamente honrado" em receber este tributo. "Evidentemente, vamos aceitá-lo", afirmou."
Fonte G1 Mundo

Dá? Para concluir, algo?
Eu respondo assim:

Quando a liberdade de expressão fere a liberdade de expressão... que fere a liberdade de expressão e que feriu a liberdade de exprssão... entramos num circuito ativo-reativo-reativo de guerra pela liberdade de expressão, que talvez não termine. Ou termine em começo de uma nova guerra... já não mais pela liberdade de expressão, mas pela absolutização da liberdade de expressão.
Eu acho que teremos novos atos terroristas, infelizmente.

Quando tomamos a liberdade de expressão como um desejo de absoluto, custe o que custar, estamos criando um conflito onde quem perde é a possibilidade do exercício da diferença e da própria liberdade de expressão, já que ele assim tomado, o desejo de absoluto, já não é mais liberdade de expressão e sim imposição das partes nos seus antagonismos.
Diz o bom senso que, se estamos na frente da jaula de um felino irritado, não se fica batendo com um pedaço de madeira nas grades (para irritá-lo mais ainda.)...
Esse exemplo pode não ser muito bom, mas é o único que achei agora para expressar a minha opinião... de que essa coisa toda ainda está muito longe de ter uma solução.
Que tipo de solução se pode ter entre duas formas de terrorísmo, a que pega em armas e a que pega em canetas?
A provocação deliberada em nome da liberdade de expressão é algo mais do que isso. Parece-me uma forma autoritária de impor a diferença ao outro, tudo MUITO bem racionalizado.
Ora, sabemos que a racionalização é a doença da razão, onde, com argumentos plauzíveis e em parte lógicos e corretos (baseados na realidade) tenta-se justicar ações e reações, esquecendo-se que, no núcleo deles, há erros inequívocos.
Torcendo tudo e tirando as coisas do lugar em que coloquei... acho que a Charlie Hebdo, até então vista como sendo uma publicação de extrema esquerda com 60 mil exemplares impressos... está sucumbindo ao Capitalismo Mundial Integrado e querendo capitalizar economicamente a dita liberdade de expressão...
3 (ou mais) milões de impressões? Para defender a liberdade de expressão?

Também quer capitalizar as formas de ver, perceber/sentir/olhar/viver o mundo e a vida...
Isso não é mais uma guerra de/pelas liberdades. É uma guerra de prisões. Entre prisões.
Eu, definitivamente, NÃO SOU CHARLIE!

Então... apareceu outro atentado... 



Uma das coisas que eu penso sobre isso é que a Nigéria não tem uma "tradição reconhecida" em defender a liberdade, tal como a França, por exemplo. Isso faz com que "O Açoite Terrorista" doa muito menos nos egos da mídia... naqueles que noticiam e espalham as informações. Vira banalização porque lá, na Nigéria o inimigo é reconhecido, chama-se Boko Haram e tem-se uma "idéia" de onde ele está e como e para onde está se movendo. Faz muito que estão falando nisso e nas atrocidades que são cometidas por esse grupo... assim como faz anos que estão noticiando sobre o taliban e os problemas no Paquistão e no Afeganistão... Assim um jornal que sofre atentado tem mais repercussão do que pessoas que sofrem atentados...
Na França... os terroristas não estão localizados e não se pode rastrear ou antever seus movimentos: o inimigo é invisível e desconhecido, não localizável e, portanto... pode aparecer em qualquer lugar... como, de fato, foi o que aconteceu... pegando todo mundo de surpresa. Além do mais... a Nigéria fica na África e não é um local de destino turístico como Paris e a França.
Lembrei dos problemas que os europeus estão tendo com imigrantes legais e com os que querem entar no continente ilegalmente... Eles estão doidinhos para não receber mais africanos... que fogem das guerras, dos terroristas, das doenças, do clima quente e de tantas coisas mais...
Enfim... esse é o meu pitaco... mesmo não sendo a geografia e a história as minhas áreas de formação.

Chego ao final deste post dizendo o mesmo que falei lá em cima, por ocasião do ano novo: que 2015 nos traga luz e ilumine a nossa sombra!
Precisamos disso e muito.
Acho que alguns dos textos, idéias, posições e artigos... aqui mostrados... fazem isso.

Obrigado a todos que colaboraram... enviando links, comentários, imagens.

2015 de luz para nós e (NA) nossa sombra!