Arnaldo Magalhões de Giacomo
Em sua caminha macia e confortável, o pequeno Tuhu não consegue dormir. Seus olhos piscam, piscam, e seu coração bate apressado porque o menino está alerta.
No escuro do quarto ressoa um rumor suave. Vem lá de baixo e Tuhu sabe o que é: na sala grande, seu pai e um grupo de amigos tocam seus curiosos instrumentos. Um violino canta, uma flauta suspira, murmura um violoncelo.
A sala fica distante e os sons vêm entrecortados. Perdem-se as notinhas alegres pelos corredores e os gemidos das cordas não conseguem subir a escada.
— Ah! se eu pudesse ser grande, pensa o menino, ficar junto deles, ouvindo de perto e tocando também!
Mas Tuhu é pequenino. Seu pai quer que durma cedo.
No entanto, lá em baixo, tocam uma melodia conhecida. Não é qualquer das melodias que seu pai interpreta que ele gosta. Algumas até lhe parecem muito certinhas e sem graça, iguais entre si, como se os compositores andassem a copiá-las umas das outras.
O menino é rebelde e gosta de inovações, de música clara e diferente. Seu pequenino espírito em formação já pressente o que seja vulgar e o que seja arte. E esta composição que tocam é a preferida. Seu pai já lhe explicou tratar-se de uma peça de Bach, compositor alemão. Como é harmoniosa, tranqüila e suave! Parece água correndo no rio, vento batendo nas ramas, nuvens pairando no céu... Tuhu não resiste. Onde estão os chinelinhos ?...
Ei-los aqui. Agora, pé ante pé, é só chegar até ao meio da escada.
Seus irmãos — Berta, Carmem Oton, Clóvis, Ester e Gilda — não devem acordar e, se papai o vê, zanga-se, na certa. Mas, para ouvir a música tão querida, vale a pena arriscar-se aos ralhos paternos.
Sentado na escada, queixo apoiado nas mãos, Heitor Villa-Lobos — o menino Tuhu — sonha acordado, ouvindo Bach. Sonha ser um músico também, tocar e, principalmente, fazer música. Como será bom, pensa ele, transformar em sons toda a tranqüila serenidade que sente na alma, toda a beleza que percebe ao seu redor. Como será bom tirar de um instrumento o canto de um pássaro, o rugido do mar, a música das fontes, o zunir do vento!...
E em baixo, no salão, seu pai e os amigos terminam o recital. Duas noites por semana se reúnem para tocar, primeiro na Rua Sta. Cristina e depois na casa da Rua do Riachuelo, onde a família Villa-Lobos mora agora. E é quando executam Bach que o menino mais gosta.
A noite avança. Enquanto o Professor Raul se despede dos amigos, D. Noêmia sobe para dormir. Já no meio da escada, sorri, apesar de um pouco zangada: lá está o desobediente Tuhu, semi-deitado no degrau, olhos cerrados pelo sono, o dedo da mão direita ainda estirado, como que marcando um compasso... Se papai o visse!
A mãe toma-o nos braços suavemente. Deita-o com carinho, cobre-o, e, antes de se retirar, beija-lhe a testa.
Tuhu sonha ser músico e, no sonho, ainda ouve Bach...
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