20 abril, 2010

Percepção, sensação e desejo





“Percepção” e “sensação” referem-se a potências distintas do corpo sensível: se a percepção do outro traz sua existência formal à subjetividade, existência que se traduz em representações visuais, auditivas, etc., já a sensação traz para a subjetividade a presença viva do outro, presença passível de expressão, mas não de representação. 


Na relação com o mundo como campo de forças, novos blocos de sensações pulsam na subjetividade-corpo na medida em que esta vai sendo afetada por novos universos; enquanto que na relação com o mundo como forma, através das representações, a subjetividade se reconhece e se orienta no espaço de sua atualidade empírica. 


Há entre esses dois modos de apreensão do mundo uma disparidade inelutável – um paradoxo constitutivo da sensibilidade humana. Tal paradoxo acaba por colocar as formas atuais em xeque, pois estas tornam-se um obstáculo para integrar as novas conexões que provocaram a emergência de um novo bloco de sensações. Com isso, estas formas deixam de ser condutoras de processo, esvaziam-se de vitalidade, perdem sentido. Instaura-se então na subjetividade uma crise que pressiona, causa assombro, dá vertigem.


É para responder a essa pressão que se mobiliza na subjetividade a vida enquanto potência de criação e de resistência: o assombro força a criar uma nova configuração da existência, uma nova figuração de si, do mundo e das relações entre ambos (é para isso que se mobiliza a potência de criação, o afeto artístico); o assombro força igualmente a lutar para que essa configuração se afirme na existência e inscreva-se no mapa em vigor, sem o que a vida não vinga (é para isso que se mobiliza a potência de resistência, o afeto político). 


É a associação do exercício destas duas potências que garante a continuidade da vida, sua expansão. As múltiplas transformações moleculares que daí resultam vão se acumulando e acabam precipitando novas formas de sociedade – uma obra aberta e em processo, cuja autoria é portanto necessariamente coletiva. 


O paradoxo do sensível pulsando no coração da experiência subjetiva e a vertigem que ele mobiliza são assim constitutivos do processo de individuação em seu constante devir outro: eles são o motor propulsor da construção da realidade de si e do mundo, seu disparador. Isto faz de todo e qualquer modo de subjetivação, uma configuração efêmera em equilíbrio instável.


Entendamo-nos sobre a palavra “desejo”: atração que nos leva em direção a certos universos e repulsa que nos afasta de outros, sem que saibamos exatamente porquê; formas de expressão que criamos para dar corpo aos estados sensíveis que tais conexões e desconexões vão produzindo na subjetividade. Pois bem, regimes totalitários não incidem apenas no concreto, mas também nesta invisível realidade do desejo: seus movimentos tendem a bloquear-se; proliferam políticas microfascistas. Violência invisível, mas não menos implacável.


Suely Rolnik







2 comentários:

*lua* disse...

Não sei se ti percebi primeiro ou te senti e depois te percebi ... o importante é que emoções aqui vivi ...

abraços

Kátia disse...

A todo momento recebemos estímulos que nos causam sensações. Mas aqui... é demais!!! Amo a luminosidade desse lugar!!! Uma vez li o termo "sensopercepção". Eu criaria um neologismo para esse meu blog preferido:sensopercepdesejante.
Hahahahahahahahaha, ficou um tanto esquisito, né? Mas é isso mesmo: seus diferentes estímulos ativam em mim, muitas e muitas vezes, uma decomposição e uma nova composição pelas sensações, percepções e desejos de voltar...

Sempre parabéns, my dear!

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