07 agosto, 2010

Carta de amor, por Juremir Machado da Silva



Nem só de senhoras idosas vive o reconhecimento de Juremir Machado da Silva. Também eu sou fã dele. Das idéias dele. Da sua forma de escrever, brincar, gozar e ir distribuindo, compartilhando conceitos e, eventualmente, os criando... produzindo.
Esse, por assim gostar de me expressar, devir, que o percorre na escrita - talvez melhor seria dizer devires: sensibilidades atípicas, terrorista, criança, homossexual - é fonte de grande divertimento, aprendizagem e revisão de conceitos.
O gosto pela provocação aos conceitos e às maneiras usuais de pensar e raciocinar, bem como o prazer em instigar polêmicas produtivas e produtoras - de inéditos - é uma das suas características mais marcantes e que, realmente, me agrada, muito.
Abaixo, mais um de seus artigos/textos "copiado e colado" da edição de hoje, 07 de agosto de 2010, do jornal Correio do Povo de Porto Alegre.
Bárbaro!

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Carta de amor


Estou exagerando? Ainda ontem, de novo, na Praça da Alfândega, um senhor, que cheguei a confundir com Paulo Brossard, me atacou e falou assim: "Minha mãe te adora". Voltei para casa entusiasmado. Chico Buarque debochou no passado dos ditadores: "Você não gosta de mim, mas a sua filha gosta". Eu posso dizer a qualquer um desses jovens ditadores de moda: "Você não gosta de mim, mas sua avó gosta". Tanto é assim que recebi esta carta de dona Faustina Severo, de Porto Alegre: "Querido Ju: tu és a alegria destes meus dias de alta maturidade. Ah, se eu tivesse dez anos a menos, ou se a sociedade não fosse tão preconceituosa! Poderíamos viver um lindo grande amor".


Se a Cláudia deixasse. Dona Faustina tem 97 anos de idade. Estou falando sério. O mundo mudou radicalmente. As mulheres vivem mais e melhor. As mais velhas estão cansadas de recato. Querem emoções. Querem amor. Querem sexo. No fundo, toda mulher é Madame de Bovary. O bovarismo é que torna as mulheres interessantes. Emma traiu o marido em busca de uma vida espiritual mais elevada. Deu errado. As mulheres são mais inteligentes do que a maioria dos machos, aos quais só interessa a aparência. Encontram na inteligência de alguns homens - ou no poder e no prestígio - um afrodisíaco superior. As mais jovens, na sociedade atual, do espetáculo, da pressa, custam a perceber o valor interior. Houve um tempo em que o excesso de bovarismo era o problema. Hoje, é o contrário. Eis o meu diagnóstico preciso e claro.


As mais jovens ignoram Flaubert. Nem conseguem pronunciar bovarismo. São as marias chuteiras de todos os tipos, graus e classes sociais. Só as bem mais velhas é que descobrem a verdade. Eu desperto o bovarismo das nossas avós. Estou tranquilo: dentro de 50 anos, as suas netas estarão aos meus pés. Eu as acolherei com alegria e sem ressentimento. Uma guria mais franca me jogou na cara: "O senhor escreve para velhos". Saí em defesa das minhas leitoras, que são jovens de espírito, assanhadas, radicais, libertárias, cultas e muito sensíveis. Estamos abraçados. Vou começar a ir com meu amigo Bernardo Issler, professor aposentado da USP, aos bailes da terceira idade de Porto Alegre, São Paulo e Paris. Uau! Em Nova Iorque já tem rave da melhor idade. É uma revolução.


Eu sou o Michel Houellebecq das mulheres com larga experiência. Falo a língua delas. Mexo com a intimidade delas. Só elas apreciam devidamente uma linguagem debochada, uma estética radical, uma literatura vertiginosa, um estilo com cem anos de avanço sobre os demais. Não concorro mais a prêmios, salvo se o júri for integrado por mulheres com mais de 70 anos. A juventude é literariamente analfabeta. Mal chegou a Charles Bukowski. Ou ainda está patinando em Paulo Coelho e vampiros e lobisomens. Nada mais antiquado do que vampiros. As mulheres de mais de 70 anos, futuristas, livres de todas as amarras, querem a complexidade de Baudelaire, Rimbaud, Céline, Houellebecq e eu. São elas que cantam: "Já não somos as mesmas e não vivemos como as nossas filhas".

JUREMIR MACHADO DA SILVA:  correio@correiodopovo.com.br

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Também gostei muito do texto abaixo, retirado da mesma edição do mesmo jornal.
Essas coisas simples e complexas que ajudam e estimulam o pensamento e o pensar são muito bem vindas.

Crônicas da Cena

A utilidade da filosofia

CACO COELHO

A filosofia é a arte de fabricar conceitos, segundo Deleuze. Entender a vida na sua profundeza, desvendar ao homem o sentido oculto das coisas, ou a ausência de qualquer sentido, como o quer Sartre, é o papel do filósofo. Formular um sistema de pensamento, que possibilita articular o conhecimento, é o objetivo preliminar ontológico. Por muito tempo, em algumas questões até hoje, preponderou o que os gregos refletiram da existência. A era moderna foi inventada pelos alemães. Depois, ocorreu uma ascendência, sobre o ocidente, do pensamento francês. Raro terá sido, no entanto, entre os pensadores brasileiros, alguém que tenha ido tão longe, quanto o filósofo gaúcho e universal, Gerd Bornheim. O eixo central do seu sistema era a fragmentação. Sou um fragmento, dizia. Esta disposição revolucionária está intrinsecamente ligada a formação multicultural brasileira. O Gerd entendia, e pregava com obstinação, que a filosofia devia ser útil. Útil para a vida das pessoas, objetivamente.

Sua motivação era fazer ver, identificar, achar, através da expressão que somente a arte é capaz. Alem de complexa obra literária, o mestre fixou sua atuação como professor e palestrante. Seu campus predileto era o da Uerj, pela convivência dialética entre as ciências do saber. Numa palestra sobre Bertolt Brecht, que ficou conhecida como Quatro Estéticas, Gerd falou da invenção da linguagem com o romance de Flaubert, com a pintura da pintura de Picasso, ou ainda, com o homem se tornando destino do homem. Esta palestra foi uma das inspirações para a tese de doutorado, apresentada esta semana, no departamento de filosofia da Uerj, no Rio de Janeiro. O também gaúcho Gaspar Paz, já mestre em musica pelo estudo da obra de Lupicinio Rodrigues com orientação do próprio Gerd, percorreu os passos do filósofo, ao longo da sua formação europeia, focado no influência do teatro e da música. Nos últimos dias de vida, o Gerd permanecia inquieto com as ideias: "Tem tanta coisa que eu ainda tenho que dizer e não consigo mais agarrar". A exuberância do trabalho realizado pelo Gaspar porta esta coragem. Evidencia-se o desejo de que esta beleza seja proclamada, ganhando ampla divulgação. É um direito brasileiro poder pensar seu próprio caminho.


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