Uma semana depois, 237 mortos: uma tragédia!
Sim, uma tragédia... que poderia ser evitada... através de ações conjuntas entre todos os envolvidos: proprietários, poder público municipal, estadual e federal, famílias, frequentadores... e etecétera...
Não adianta buscar bodes expiatórios para depositar a culpa.
É preciso buscar as responsabilidades de todos.
Todos.
"Uma definição resumida do conceito de trágico no pensamento de Nietzsche
, que poderia incluir as diferentes tematizações e problematizações
desse conceito, seria a de um modo de pensamento que fosse capaz de
assumir e afirmar a totalidade da existência, na integridade de seus
aspectos, incluindo o que nela existe de sombrio e luminoso, de alegre e
doloroso, de desfalecimento e exaltação. Trágico é um pensamento capaz
de acolher e bendizer tanto a criação como a destruição, a vida como a
morte, a alternância eterna das oposições, no máximo tensionamento. Uma
filosofia trágica prescinde de uma visão jurídica e culpabilizadora da
existência, acredita na inocência do vir-a-ser, não nega nem condena,
mas aceita a vida sem subtração e nem acréscimo. Uma existência trágica é
aquela que, sem depender de uma crença na ordenação e significação
moral do mundo, não considera o mal e o sofrimento como uma objeção
contra a vida."
Oswaldo Giacoia
Compreender o que aconteceu em Santa Maria, na boate Kiss, envolve a busca dos múltiplos fatores, complexos e de difícil apreensão... que ocasionaram essa tragédia. Apesar disso, é possível elaborar uma cartografia que ajude a nos aproximar dos fatos.... e, aqui, vou enfatizar apenas um dos componentes dessa complexidade, pois os demais estão na mídia escrita e falada em abundância: a questão da moral (e do DEVER) e a questão da ética.
Está claro que todas as instâncias envolvidas tem o dever moral de proporcionar segurança. Ponto. Mas se nem isso foi feito, de acordo com os dados obtidos pelas investigações até agora apurados, o que pensar em termos de ética? A ética não estaria só em obedecer a lei (as leis), mas em fazer muito mais e além do que ela estabelece e estipula. Seria, por exemplo, não permitir a entrada, na boate, lotada, ou, ainda, fechar a boate até que a mesma estivesse em plenas condições de proporcionar lazer em segurança... com todas as coisas necessárias para isso funcionando perfeitamente. Exemplos que parecem absurdamente irrealizáveis e surrealistas...
Tal ação... teria A VIDA como bem maior e não o lucro e o capital...
Não basta apurar apenas legalmente e tecnicamente os fatos e as responsabilidades. É importante avaliar socialmente, grupalmente e subjetivamente...
"O poder, na verdade, é micropoder. Desse ponto de vista, nós vamos falar também de micropolítica. E ele é micro, porque se exerce na nossa sensibilidade, na nossa estética, no nosso corpo, nos nossos gestos, nos nossos movimentos, nas nossas ações e paixões físicas e também se exerce na linguagem que veicula o pensamento. Então, a própria linguagem se constitui uma forma de captura e nós, sutilmente, somos capturados e falamos “em nome de” ou ocupamos o lugar legitimado pelo poder que pode ser a própria academia com o lugar da ciência, o lugar da autoridade intelectual, muitas vezes. Vamos falar de modo concreto. O capitalismo inventou a ciência da qual ele precisava. Uma vez que estamos aqui envolvidos com as ciências humanas, ciências sociais, nós precisamos fazer uma autocrítica desse ponto de vista e vermos, até que ponto, nosso pensamento científico não é conivente com essas práticas de poder e não reproduz as dicotomias e as separações das quais o capitalismo necessita ou essas formas novas de poder necessitam. Então, as ciências são colaboradoras desse ponto de vista de constituição, de regulação e de conservação desse poder através de um discurso chamado científico. Ou seja, as ciências desse ponto de vista pressupõe o lugar da moral. E a moral é sempre a crença de um dever ser: o pensamento 'dever ser', a sociedade 'deve ser' isso, 'deve ser' aquilo. E não há coisa que o poder saiba fazer melhor. Sim, a vida deve ser boa, em nome de Deus, em nome de um ideal, em nome da paz, em nome da democracia, em nome do liberalismo, em nome dos aparentemente melhores valores, se fazem sempre as piores coisas. Bush, em nome da democracia, faz o que fez no Afeganistão, no Iraque etc."
Luiz Fuganti
Luiz Fuganti
Mais acima falei que a responsabilidade também é dos frequentadores... das próprias vítimas, inclusive.
Isso parece muito polêmico e insensível, mas se formos ver com cautela e lucides... podemos nos dar conta que entrar numa boate entupida de gente e cheia de obstáculos (e lá permanecer) é algo irresponsável. Não averiguar as saídas de emergência e não ponderar (mesmo que as houvesse) se é possível sair desse local com segurança... também.
Aqui não se trata de culpar as vítimas ou, muito menos, de lhes imputar exclusivamente a responsabilidade pelo ocorrido, mas de trazer à luz, por assim dizer, algo que geralmente acontece e permanece "nas sombras": a cidadania e o poder de "tomar a vida nas próprias mãos".
Saindo da boate e indo para as ruas... imaginemos uma pessoa entrar, como caroneiro, num carro que vai ser dirigido por alguém sem habilitação ou... sabidamente e visivelmente alcoolizado. De quem é a responsabilidade se ocorrer algum tipo de acidente? De ambos!
O exemplo parece bobo e desproporcional, mas ajuda a perceber as implicações dos envolvidos... o que, dito de outra forma, corresponde a se perguntar: qual é o meu pedaço nisso? Que responsabilidade eu tenho nisso? Perguntas essas que são cabíveis para todos em todas as situações... da vida cotidiana.
Poderiam os frequentadores decidir por não entrar? Poderiam seus familiares impedí-los de entrar?
Seria possível "sacrificar" uma noite de diversão com amigos e colegas... se negando a permanecer nesse lugar lotado? Se estivesse menos lotada, a tragédia seria evitada?
Que pais têm pleno conhecimento do que seus filhos fazem e para onde vão? Que pais poderiam proibir (ou aconselhar) seus filhos de 18 anos ou mais de (não) irem para a boate? Que pais iriam averiguar as condições de segurança dela... antes de seus filhos a frequentarem?
Quais jovens iriam se negar a entrar e "pagar o mico" de "querer tudo certinho" junto aos companheiros na hora de se encontrar? Poucos, muito poucos...
É compreensível e humanamente (humano demasiado humano?) corriqueiro colocar a diversão, a companhia, o lazer, o entretenimento... o dizer sim no lugar do (dizer) não, naquele momento, no lugar da vida...
O que está colocado aqui é essa intrincada teia de nós que nós fazemos com a nossa vida.
Está colocado em evidência a série de perguntas que não nos fazemos e que não nos fazem.
Está colocado a maneira de pensar e viver acríticos com que vamos fazendo as coisas...
Seria ético nos fazermos essas perguntas... e buscar as respostas..
Não fazer isso também é uma tragédia!
É trágico viver!
É trágico morrer!
Pequenas e grandes tragédias acontecem todos os dias e elas mudam seu caráter de pequenas e grandes na dependência de onde focamos nossas lentes para vê-las... lê-las.
Abranger as responsabilidades e relativizá-las é uma maneira de buscar a apropriação da realidade tal como ele se configura e se apresenta (sem, através disso, eximir de responsabilidade a parte que a cada um compete e investigá-las incansavelmente).
Lembro do bebê recém-nascido que foi achado na lata de lixo.
Lembro da mãe (e do pai) cujo filho se suicidou.
Lembro do dependente químico que, depois de várias internações e tentativas de tratamento, recaiu... ou se matou.
Lembro da idosa atropelada na avenida.
Lembro da guerra no Afeganistão e nos homens (e mulheres) bomba no Paquistão.
Lembro das crianças (homens e mulheres e idosos) morrendo de fome na África.
Lembro da moça estuprada na Índia.
Lembro das perdas que já tive na minha vida.
Lembro das tragédias que acompanho no meu trabalho...
Tudo isso é trágico e não relativiza nem classifica o sofrimento em escalas de menor e maior, mas faz pensar (e sentir) que a vida ainda é o bem maior e que é a ela que precisamos nos apegar (e viver) com tudo o que ela tem de bom e de ruim, por assim dizer.
Um ética que acolhe a auto-implicação nos acontecimentos é uma ética que está em sintonia com a vida.
Uma moral que somente busca a culpa nos outros e elege bodes-expiatórios enfatizando apenas o dever-ser é uma maneira de encarar a vida no que ela tem de sombra e de morte.
Precisamos fazer muito ainda para melhorar a vida nesse planeta!
"Ética é uma capacidade seletiva que a vida tem,
uma capacidade de construir filtros, válvulas, que permitem que certos
encontros sejam afirmativos e ativos e que os encontros passivos e negativos
sejam transmutados. Então a ética é uma capacidade seletiva que liga a nossa
existência a nossa própria potência. A ética diz 'ligue a vida ao que ela
pode'. A moral diz outra coisa. A moral se funda num dever ser. O dever é
primeiro para a moral. Para a ética, a potência é primeira. O dever enquanto
princípio fundante dos comportamentos implica uma dimensão separada da
natureza, uma dimensão separada da vida, uma dimensão separada da própria
potência. A moral reza: a vida deve."
Luiz Fuganti
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Os três textos abaixo, que eu considero muito pertinentes, são de Juremir Machado da Silva e foram transcritos do blog dele no Jornal Correio do Povo de Porto Alegre.
Santa Maria, a negligência como fatalidade
Toda vez que uma tragédia como a de Santa Maria acontece, chocando o mundo, os responsáveis logo falam em fatalidade.
E os laudos falam em sistemas de segurança inadequados ou vencidos.
Há sempre um alvará caduco, um extintor que não funciona, saídas de emergência inexistentes ou trancadas, sinalização deficiente, excesso de pessoas no recinto, procedimentos incorretos e improvisação.
Como usar um sinalizador num ambiente forrado como uma espuma protetora acústica altamente inflamável e capaz de liberar fumaça tóxica?
Os proprietários não sabiam que a banda usaria o sinalizador?
Não sabiam da espuma inflamável no teto?
Não houve uma reunião prévia para falar disso?
A fatalidade tem outro nome: negligência.
A negligência tem uma consequência: responsabilidade.
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Santa Maria: adianta culpar?
Na vida, a gente vê coisas que se repetem e que se sucedem com as estações do ano. As tragédias ditas naturais tendem a ser sazonais. Temos as fatalidades de verão e de inverno: morros que desabam com as chuvas, córregos poluídos que transbordam, casas soterradas, vidas perdidas, insuportavelmente ceifadas cedo demais. Depois do susto e do choque, autoridades esquecem as promessas e a vida segue em frente até a próxima catástrofe. Tem sido assim na região serrana do Rio de Janeiro ou nos alagamentos de São Paulo.
A palavra fatalidade aparece rapidamente na boca de quem deveria rejeitá-la como um insulto ou um desrespeito aos mortos.
Não há fatalidade quando todas as providências não foram tomadas para tentar impedir o pior. Curiosamente sempre tem alguém para condescendentemente relativizar:
– Não adianta buscar culpados.
– Como assim?
– Não vai trazer ninguém de volta.
– E a punição aos responsáveis?
– Não houve intenção. Foi uma fatalidade.
Sim, adianta buscar os culpados. É uma obrigação. Há culpados. Culpar hoje é uma maneira de prevenir o amanhã. Existem crimes dolosos e crimes culposos. Não se pode absolver simplesmente por não ter havido intenção. Os responsáveis são muitos: os proprietários relapsos, a banda imprudente, a fiscalização deficiente. Se o recinto era para mil pessoas, como tem sido divulgado, por que deixaram entrar 1.500 jovens? Se o alvará estava vencido desde o final do ano, como foi possível abrir para uma megafesta? Se só havia uma porta, sem saídas visíveis de emergência, como foi possível ter recebido autorização para funcionar? Se havia espuma inflamável no texto, como proteção acústica, quem permitiu o uso de um sinalizador, um emissor de faíscas, um instrumento pirotécnico?
Todas essas perguntas já foram feitas e continuarão a ser feitas por uma simples razão: continuamos na estupefação e na perplexidade. Como diz a galera, ainda não caiu a ficha. Vamos continuar fazendo as mesmas perguntas por impotência, desespero e ansiedade. Queremos uma resposta convincente. Não aceitamos mais o clichê acintoso da fatalidade. Em quantos lugares a gente vê construções de ricos ou pobres nas encostas de morros? Em quantos lugares a gente vê cultivos em áreas de risco? Em quanto lugares a gente vê estabelecimentos recreativos funcionando visivelmente sem as condições necessárias de segurança? Por quê? Simplesmente porque empurramos com a barriga, burlamos a lei, quando não a subornamos, e acreditamos que o raio não cairá em cima de nós. Quem somos nós?
Aqueles por quem nos tornamos responsáveis.
A noção de responsabilidade coletiva parece, às vezes, neste Brasil ainda pré-moderno em muitas coisas, uma aberração. O interesse imediato joga perigosamente com a calamidade futura. Por toda parte a negligência ri da nossa cara: barcos transbordando de passageiros em inocentes passeios praianos, muitos com coletes salva-vidas em número insuficiente, motoqueiros sem capacete e com crianças na carona zumbindo pelas ruas das cidades, crianças transportadas no banco da frente de carros particulares e por aí vai. Precisamos enquadrar culpados.
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A tragédia de Santa Maria obriga a pensar no futuro
Tarso Genro reuniu colunistas dos principais veículos gaúchos, ontem, no palácio Piratini, para falar da tragédia de Santa Maria. O governador e a presidente Dilma Rousseff tiveram comportamento exemplar deslocando-se prontamente para o local do acontecimento. É assim que acontece em qualquer país decente. Cansei de acompanhar pelo noticiário as viagens de presidentes franceses para prestar solidariedade a famílias enlutadas por avalanches em estações de neve ou acidentes de ônibus. No encontro, achei o governador com um ar visivelmente abatido, sofrido. Esse ar aparece também nos rostos de muitos dos jornalistas que cobriram o episódio. A verdade é que o Brasil continua chocado com o drama da boate na cidade gaúcha. A hora é de apuração das responsabilidades. O passado recente e doloroso precisa preparar o futuro.
Na conversa com os jornalistas, o governador burilou uma frase significativa: “É preciso verificar a cadeia de responsabilidades que se instalou”. Não absolveu de antemão um só elo dessa cadeia. Sustentou que certamente não há causa única nem responsável isolado. O fato de uma parte afirmar que havia condições de funcionamento não quer dizer, argumentou, que, no conjunto, essas condições existissem. Talvez a afirmativa mais forte de Tarso Genro tenha sido esta: “Uma norma nunca pode dizer ‘preferencialmente’, pois já é uma possibilidade de evasão”. Esse “preferencialmente”, como se sabe, aparece na regulamentação das saídas de emergência laterais.
Norma com “preferencialmente” não é lei. É recomendação. Cumpre quem quiser ou quem puder. Rigorosamente falando, “preferencialmente” é uma brecha cinicamente disponibilizada para transformar regra em faz-de-conta. O primeiro a ser punido deveria ser quem escreveu esse “preferencialmente”. Há uma lei que dificilmente encontra anulação: a lei do bom senso. Qualquer lugar destinado a receber centenas de pessoas não pode ter uma única porta. Se a lei permite, ela está errada. Não há revogação para o bom senso. O governador enfatizou que não tem condições de dizer, no momento, se a prefeitura de Santa Maria e Corpo de Bombeiros fazem parte da cadeia de responsáveis pela tragédia. Quer investigação sem complacência e punição impiedosa dentro da lei. Se o Estado tiver de responsabilidade, pagará.
Os niilistas acham que declarações feitas no calor das tragédias sempre acabam esquecidas ou são demagógicas. Aqueles que deitam essas generalizações são, com frequência, os mesmos que criticam os políticos por comparecerem aos locais de sinistros e por não comparecerem. O governador Tarso Genro já tirou uma lição relevante da tristeza que paira sobre os gaúchos agora: a lei precisa mudar. O Estado deve ter papel de corresponsabilidade na fiscalização. A força dos municípios é insuficiente para garantir a segurança de todos. É hora de suplantar clichês como porta arrombada, tranca de ferro. A verdade é outra: somos racionalmente capazes de aprender com o passado. Só reconhecer erros que tiram vidas não basta. A sanção é indispensável.
E os laudos falam em sistemas de segurança inadequados ou vencidos.
Há sempre um alvará caduco, um extintor que não funciona, saídas de emergência inexistentes ou trancadas, sinalização deficiente, excesso de pessoas no recinto, procedimentos incorretos e improvisação.
Como usar um sinalizador num ambiente forrado como uma espuma protetora acústica altamente inflamável e capaz de liberar fumaça tóxica?
Os proprietários não sabiam que a banda usaria o sinalizador?
Não sabiam da espuma inflamável no teto?
Não houve uma reunião prévia para falar disso?
A fatalidade tem outro nome: negligência.
A negligência tem uma consequência: responsabilidade.
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Santa Maria: adianta culpar?
Na vida, a gente vê coisas que se repetem e que se sucedem com as estações do ano. As tragédias ditas naturais tendem a ser sazonais. Temos as fatalidades de verão e de inverno: morros que desabam com as chuvas, córregos poluídos que transbordam, casas soterradas, vidas perdidas, insuportavelmente ceifadas cedo demais. Depois do susto e do choque, autoridades esquecem as promessas e a vida segue em frente até a próxima catástrofe. Tem sido assim na região serrana do Rio de Janeiro ou nos alagamentos de São Paulo.
A palavra fatalidade aparece rapidamente na boca de quem deveria rejeitá-la como um insulto ou um desrespeito aos mortos.
Não há fatalidade quando todas as providências não foram tomadas para tentar impedir o pior. Curiosamente sempre tem alguém para condescendentemente relativizar:
– Não adianta buscar culpados.
– Como assim?
– Não vai trazer ninguém de volta.
– E a punição aos responsáveis?
– Não houve intenção. Foi uma fatalidade.
Sim, adianta buscar os culpados. É uma obrigação. Há culpados. Culpar hoje é uma maneira de prevenir o amanhã. Existem crimes dolosos e crimes culposos. Não se pode absolver simplesmente por não ter havido intenção. Os responsáveis são muitos: os proprietários relapsos, a banda imprudente, a fiscalização deficiente. Se o recinto era para mil pessoas, como tem sido divulgado, por que deixaram entrar 1.500 jovens? Se o alvará estava vencido desde o final do ano, como foi possível abrir para uma megafesta? Se só havia uma porta, sem saídas visíveis de emergência, como foi possível ter recebido autorização para funcionar? Se havia espuma inflamável no texto, como proteção acústica, quem permitiu o uso de um sinalizador, um emissor de faíscas, um instrumento pirotécnico?
Todas essas perguntas já foram feitas e continuarão a ser feitas por uma simples razão: continuamos na estupefação e na perplexidade. Como diz a galera, ainda não caiu a ficha. Vamos continuar fazendo as mesmas perguntas por impotência, desespero e ansiedade. Queremos uma resposta convincente. Não aceitamos mais o clichê acintoso da fatalidade. Em quantos lugares a gente vê construções de ricos ou pobres nas encostas de morros? Em quantos lugares a gente vê cultivos em áreas de risco? Em quanto lugares a gente vê estabelecimentos recreativos funcionando visivelmente sem as condições necessárias de segurança? Por quê? Simplesmente porque empurramos com a barriga, burlamos a lei, quando não a subornamos, e acreditamos que o raio não cairá em cima de nós. Quem somos nós?
Aqueles por quem nos tornamos responsáveis.
A noção de responsabilidade coletiva parece, às vezes, neste Brasil ainda pré-moderno em muitas coisas, uma aberração. O interesse imediato joga perigosamente com a calamidade futura. Por toda parte a negligência ri da nossa cara: barcos transbordando de passageiros em inocentes passeios praianos, muitos com coletes salva-vidas em número insuficiente, motoqueiros sem capacete e com crianças na carona zumbindo pelas ruas das cidades, crianças transportadas no banco da frente de carros particulares e por aí vai. Precisamos enquadrar culpados.
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A tragédia de Santa Maria obriga a pensar no futuro
Tarso Genro reuniu colunistas dos principais veículos gaúchos, ontem, no palácio Piratini, para falar da tragédia de Santa Maria. O governador e a presidente Dilma Rousseff tiveram comportamento exemplar deslocando-se prontamente para o local do acontecimento. É assim que acontece em qualquer país decente. Cansei de acompanhar pelo noticiário as viagens de presidentes franceses para prestar solidariedade a famílias enlutadas por avalanches em estações de neve ou acidentes de ônibus. No encontro, achei o governador com um ar visivelmente abatido, sofrido. Esse ar aparece também nos rostos de muitos dos jornalistas que cobriram o episódio. A verdade é que o Brasil continua chocado com o drama da boate na cidade gaúcha. A hora é de apuração das responsabilidades. O passado recente e doloroso precisa preparar o futuro.
Na conversa com os jornalistas, o governador burilou uma frase significativa: “É preciso verificar a cadeia de responsabilidades que se instalou”. Não absolveu de antemão um só elo dessa cadeia. Sustentou que certamente não há causa única nem responsável isolado. O fato de uma parte afirmar que havia condições de funcionamento não quer dizer, argumentou, que, no conjunto, essas condições existissem. Talvez a afirmativa mais forte de Tarso Genro tenha sido esta: “Uma norma nunca pode dizer ‘preferencialmente’, pois já é uma possibilidade de evasão”. Esse “preferencialmente”, como se sabe, aparece na regulamentação das saídas de emergência laterais.
Norma com “preferencialmente” não é lei. É recomendação. Cumpre quem quiser ou quem puder. Rigorosamente falando, “preferencialmente” é uma brecha cinicamente disponibilizada para transformar regra em faz-de-conta. O primeiro a ser punido deveria ser quem escreveu esse “preferencialmente”. Há uma lei que dificilmente encontra anulação: a lei do bom senso. Qualquer lugar destinado a receber centenas de pessoas não pode ter uma única porta. Se a lei permite, ela está errada. Não há revogação para o bom senso. O governador enfatizou que não tem condições de dizer, no momento, se a prefeitura de Santa Maria e Corpo de Bombeiros fazem parte da cadeia de responsáveis pela tragédia. Quer investigação sem complacência e punição impiedosa dentro da lei. Se o Estado tiver de responsabilidade, pagará.
Os niilistas acham que declarações feitas no calor das tragédias sempre acabam esquecidas ou são demagógicas. Aqueles que deitam essas generalizações são, com frequência, os mesmos que criticam os políticos por comparecerem aos locais de sinistros e por não comparecerem. O governador Tarso Genro já tirou uma lição relevante da tristeza que paira sobre os gaúchos agora: a lei precisa mudar. O Estado deve ter papel de corresponsabilidade na fiscalização. A força dos municípios é insuficiente para garantir a segurança de todos. É hora de suplantar clichês como porta arrombada, tranca de ferro. A verdade é outra: somos racionalmente capazes de aprender com o passado. Só reconhecer erros que tiram vidas não basta. A sanção é indispensável.
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