JORGE DE LIMA (1895-1953)
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E tudo haveria de ser assim, para contemplar-te sereno, ó morte,
e integrar-me nos teus mistérios e nos teus milagres.
Agora vejo os Lázaros levantarem-se
e...
18 fevereiro, 2013
O canto dos pássaros: sensação, tempo e pensamento
Um músico do nosso tempo – chamado Olivier Messiaen – vai fazer uma distinção entre quatro tipos de canto de pássaros. Diz ele, que na primavera, os pássaros, praticamente todos eles, fazem o canto do amor – que é um canto de sedução, geralmente feito pelos machos. Esse canto de amor – evidentemente – tem uma função específica: serve à espécie – porque o amor permite a reprodução; e serve aos prazeres do indivíduo. Seria esse canto – que eu chamei de canto de amor – que ocorre em todas as primaveras.
O outro tipo de canto, diz ele, que é entendido por todo e qualquer pássaro – é o grito de alarme. Os pássaros – através do gorjeio – fazem o canto de amor e o grito do alarme: dois cantos que estão a serviço do que eu passarei a chamar, nesta aula, de CORPO ORGÂNICO. Ambos os cantos estão a serviço do organismo – das funções dos órgãos; no sentido de que um canto – o canto de amor – tem como único objetivo prestar um enorme serviço à espécie; ou seja – à evolução da espécie; e assim por diante.
Mas, de outro lado, Messiaen vai falar num terceiro canto (por enquanto, eu vou deixar o [quarto] entre aspas). Esse terceiro canto, de que Messiaen nos fala, é o canto que alguns pássaros fazem para o pôr do sol – ou [melhor]: para o crepúsculo e para a aurora. Esse canto não tem nenhum objetivo orgânico e não presta nenhum serviço à espécie ou ao indivíduo: é o canto gratuito – que o pássaro produz, não importa os perigos que ele corra. Segundo Olivier Messiaen, [o canto gratuito] é de uma extraordinária beleza! E quanto mais forte for o crepúsculo; quanto mais se espalhar a cor violeta; e quanto mais bonita for a aurora – mais esplendorosos os temas e motivos que o pássaro canta.
A partir dessa colocação, é evidente que há uma diferença do canto da primavera e do grito de alarme para o canto gratuito – porque esse canto é gratuito [exatamente] porque não presta nenhum serviço ao organismo ou à espécie.
Se, de algum modo, eu me fiz entender; se alguma coisa do que eu falei atravessou… (caso contrário, mais adiante eu farei com que vocês entendam!) – eu marquei claramente a existência – pelo menos nos pássaros – de dois tipos de corpo: um corpo orgânico, que está sempre a serviço da espécie e do indivíduo; e um corpo que, por enquanto, eu só posso chamar de um corpo estético. No caso dos pássaros, é um corpo que fica de tal forma tocado diante das luzes, da claridade e das cores que o crepúsculo e a aurora produzem, que começa a [emitir] – Atenção! – ondas rítmicas: ele gera ondas rítmicas, que se encontram com as forças da natureza. E quando o ritmo se encontra com as forças da natureza – isso se chama SENSAÇÃO.
- O que é a sensação?
A sensação é a potência de um corpo vivo, que produz uma onda de intensidade – que no caso dos pássaros são os ritmos; e no caso das forças caóticas da natureza, as misturas das cores, dos calores e das luzes… E quando essas duas linhas se encontram, emerge o que Olivier Messiaen vai chamar de personagem rítmico. O personagem rítmico não é um sujeito, não é um pássaro. O personagem rítmico é uma onda, que se serve do corpo do pássaro.
Então, através do encontro das ondas estéticas e da composição do personagem rítmico – que é exatamente o pássaro ao fazer esse canto; com as forças do sol, as forças da natureza – que eu passarei a chamar de paisagem melódica – alguma coisa em termos de corpo, em termos de pensamento e em termos de tempo se produz.
E aí, com uma certa facilidade, eu já faço a distinção de que, no nosso corpo, nós teríamos – misturados – o corpo orgânico e o corpo histérico. Esse corpo histérico foi apresentado teoricamente no Ocidente pela obra de Artaud – que dá a esse corpo o nome de CORPO SEM ÓRGÃOS.
A nossa apreciação dessa questão não é difícil: de um lado um corpo orgânico – sempre a serviço da espécie, a serviço do indivíduo; e de outro lado, um corpo estético, ou melhor, um corpo histérico – ligado à produção da beleza.
A ligação que eu vou fazer do pensamento com o corpo não é a ligação do pensamento com o corpo orgânico, porque essa separação do corpo e do pensamento – que tem origem no platonismo – é a separação do corpo orgânico: que se separa do pensamento.
Essa expressão, que eu acabei de usar aqui, é realmente muito difícil, porque – classicamente – nós entendemos o pensamento como aquilo que funciona sempre por sua boa vontade – e eu estou dizendo que não; que o pensamento é forçado a pensar por este corpo que eu chamei de “corpo histérico” – o corpo das atitudes e das posturas, o corpo do gestus. Ele força o pensamento a pensar.
- Força a pensar, o quê?
Ele força a pensar o impensado – a pensar o corpo, a pensar a vida. É como se, de repente – diante de toda essa história pesada da filosofia – nós tivéssemos a viabilização, a possibilidade do pensamento pensar. E o pensamento, quando pensa, o que ele pensa é – o corpo e a vida.
Ou seja, quando eu fiz essa distinção de corpo orgânico e corpo histérico; e, no caso de Cassavetes, liguei o corpo histérico às posturas e atitudes, o que eu quiz dizer pra vocês é que – a função do pensamento é pensar todas as atitudes e as posturas do corpo – insônias, sono, tristeza; todas as linhas de errância – abstratas e difíceis – que o corpo produz.
Então, de um outro lado, a minha aula tem ( olhem o nome:) uma postura ética, - postura é coisa de corpo, não é? -, uma postura espinozista; no sentido de que – sem temores, sem medo da morte – o que nós vamos fazer é PENSAR O CORPO.
... a composição do pensamento com o corpo faz com que o corpo secrete tempo. Essa idéia de tempo é uma idéia absolutamente trágica – porque é ela que nos dá e nos tira a vida. Pelo menos, é assim que nós pensamos o tempo.
Acontece que toda a tradição do Ocidente compreendeu o tempo segundo o modelo orgânico, ou seja – aquele modelo que não passa; funcional, organizacional. O tempo foi compreendido, pelos pensadores do Ocidente, em termos de tempo orgânico ou tempo cronológico. Como? Porque o organismo produz o tempo que lhe interessa. E o homem, na sua pequena humanidade, não faz nada mais do que servir a esse organismo.
Agora, o que eu estou falando, é que nós vamos romper com esse tempo cronológico, para encontrar outras formas do tempo, ou melhor – a pura forma vazia do tempo.
Para Proust, esse tempo secretado pelo corpo – agora vem um enunciado assim terrível – talvez seja o único índice de imortalidade. Ou seja: Proust afirma que as religiões não podem – em nenhum momento – nos indicar a possibilidade de que nossa alma seja eterna. Mas quando o pensamento mergulha no corpo e encontra o tempo. .. – ele começa a conhecer os segredos da eternidade. Então, a partir daqui, eu mostro pra vocês que, ao pensar o tempo, nós pensaremos juntos também a eternidade.
Toda a razão de ser da noção de contemplação está diretamente ligada à questão do tempo. Essa noção já é platônica… – mas no Plotino ganha uma diferença.
Samuel Butler diz que uma semente de rosa, jogada na lama – sem mãos, sem pés e sem nenhum instrumento – é capaz de transformar essa lama na qual ela está inserida em macias e perfumadas pétalas de rosas, de forma magnífica! O que eu estou dizendo, é que as rosas são produzidas pelas sementes; e essas sementes fazem as suas roseiras e as suas rosas com a lama, – a água e a terra -, que é a matéria que elas utilizam para transformar aquilo num determinado ser: a roseira, apinhada de rosas…
Ao fazer isso, a semente não produz nenhuma atividade. A única coisa que a semente faz… – é contemplar!
Ouvir uma tese dessas, é quase enlouquecedor! Uma tese de que a natureza produz – não pela atividade – mas pela contemplação. Eu estou dizendo que, na natureza, a geração não se dá por processos de atividade… mas por processos contemplativos. Quando a gente fala “contemplação”, vem logo à nossa mente a idéia de narcisismo.
Narciso era aquele que contemplava a sua imagem… Por isso, existe uma distinção, também neo-platônica, entre narcisismo formal e narcisismo material. O narcisismo material é quando Narciso contempla a sua imagem e se esgota naquela contemplação. Enquanto que contemplação formal, ou o narcisismo formal, é quando essa semente de planta – sem olhos – contempla a natureza; e, ao contemplar, sintetiza os elementos, de tal maneira, que novos objetos começam a ser gerados. Ou seja, [a partir] da contemplação de uma semente – na lama – uma série de sínteses irão se processar… – e essas sínteses vão gerar os objetos que existem na natureza.
Pra vocês entenderem, a repetição pode ser exemplificada como a repetição do barulho de um relógio – tic-tac, tic-tac, tic-tac. Qualquer um de nós – no silêncio da noite – [percebe claramente] essa repetição do relógio… “tic-tac, tic-tac, tic-tac” (não é?) – Isso se chama repetição! Quando ouvimos esse “barulho”, passamos a achar que sempre que o tic aparecer, logo em seguida virá o tac – nosso espírito fica na absoluta convicção de que esse fenômeno vai ocorrer! Ora, se é tic, em seguida tac, depois tic, depois tac – tic-tac, tic-tac. .. – O que faz o espírito? Quando o espírito ouve o tic-tac. .. – de tanto ouvir essa repetição… – quando aparece o tic – ele, o espírito – antecipa o tac; isto é: o espírito não espera que o tac chegue… – antecipa-o. Ou seja, o processo de antecipação é um processo que se dá – em nosso espírito – quando a natureza se repete; e nós acreditamos – temos a crença – de que aquela repetição vai permanecer. Sempre que acreditamos que uma repetição vai permanecer – antecipamos um de seus elementos. Neste caso – antecipamos o tac.
Quem antecipa não é a natureza – quem antecipa é o espírito! Então, quando o espírito contempla a natureza e a natureza lhe oferece um processo de repetição… – esse processo é infatigável! A natureza sempre repete [o mesmo processo...] – e o espírito começa a produzir uma diferença naquilo: começa a introduzir a retenção e a antecipação.
O que quer dizer isso?
De tanto ouvir tic-tac, o espírito retém o tic, antecipa o tac e junta os dois – no tic-tac. Isso porque – fora do espírito – o tic e o tac são dois elementos separados: ou seja, quando aparece o tic; em seguida aparece o tac. Mas o tic não pode re aparecer, se o tac não tiver des aparecido!… O que implica em dizer que, o processo de repetição na natureza, pressupõe (Olha lá, heim?) a noção de INSTANTES DESCONTÍNUOS. A natureza nos mostra isso. Ela nos mostra o que se chama – “Os Instantes Descontínuos…”
- O que são os Instantes Descontínuos?
É a aparição de um elemento… e a des aparição desse elemento – para que um outro elemento surja. Ou seja: os dois elementos jamais apareceriam ao mesmo tempo na natureza! Isso se chama – descontinuidade dos instantes. O espírito contempla essa descontinuidade dos instantes – [antecipa] um instante e retém o [outro]. Na natureza, esses dois elementos estão separados; no espírito, eles se juntam. No espírito, não existe mais um tic e um tac – porque o tic e o tac formam uma pequena extensão. Na filosofia do tempo, de Bergson, esta “pequena extensão” chama-se DURAÇÃO; ou seja – o espírito, que reteve e antecipou…, reteve e antecipou esses dois elementos descontínuos produzidos pela natureza. Esse “procedimento espiritual” é – simultaneamente – a INVENÇÃO DO TEMPO.
O que eu acabei de dizer pra vocês, é que, para que o tempo surja, ou melhor: a condição para que surja o tempo – é que exista o espírito que contempla.
O que eu falei agora pra vocês, é que NA NATUREZA existiria um processo de REPETIÇÃO: um processo de repetição descontínuo. O espírito contemplaria essa repetição descontínua, juntaria os elementos que na natureza estão separados, e ao juntar esses dois elementos, o espírito formaria uma pequena linha: uma pequena extensão, ou seja – formaria uma DURAÇÃO.
Ou melhor: o tic aparece. Quando o tic des aparece, o tac aparece; quando o tac desaparece, o tic aparece, (não é?) Então, o tic e o tac – cada um deles é um presente que se dá na ausência do outro; ou seja: cada instante, quando aparece, para que o outro instante apareça, ele tem que desaparecer.
Quando esses dois instantes se juntam no espírito, o instante anterior passa a se chamar passado; e o instante posterior passa a se chamar futuro. O tic – que é presente na natureza; e o tac – que é presente na natureza; no espírito – tornam-se passado e futuro. Ou seja: o espírito – que contempla – produz O TEMPO!
O que quer dizer passivo?
Passivo quer dizer – aquilo que não produz modificação no objeto contemplado, ou seja: o espírito não produz nenhuma modificação na repetição da natureza – mas ele próprio se modifica. Então – a repetição da natureza e a diferença do espírito.
Voltando: eu disse contemplação; disse que o espírito contempla; e disse que o espírito faz uma síntese.
Hume, o filósofo que eu estou citando, chama – orgulhosamente – essa síntese de Espírito ou Imaginação Contraente. O espírito tem o poder de contemplar os instantes separados na repetição da natureza…, contraí-los no seu interior, e, ao fazer essa contração – dentro de si – ele gera o tempo. O tempo emerge: o tempo emerge no espírito.
Nós ficamos praticamente assustados. Mas, por quê? Porque – quando o pensamento se associa com o corpo; ao pensar o corpo… – ele verifica que o corpo secreta tempo: abandonamos definitivamente o senso comum!
Ou seja – tudo aquilo de que eu estou falando, é impossível de ser compreendido pelo senso comum! Por quê? Porque são as experiências mais possantes que o espírito humano pode fazer. Essas experiências, que eu estou mostrando pra vocês, é a repetição da natureza – que seria a eternidade; e a contemplação do espírito – que seria o nascimento do tempo.
Ou seja: o que faz o pensamento – sua única questão – é conquistar o tempo.
Samuel Butler: contemplação...
E ele diz o seguinte: você joga uma semente na lama: a semente cai na lama… Essa lama é água, terra, luz e ar. Ou – quimicamente mais bem explicado – é fósforo, é carbono, etc. E a semente está ali! Qual é o procedimento que essa semente tem para se transformar numa rosa, sabendo-se que a matéria da qual ela vai se servir, para que a rosa nasça, é a lama que a circunda? É essa a questão! Ou seja: quando você encontra uma roseira, essa roseira se originou numa semente; e essa semente retira da lama os componentes para produzir as suas rosas.
E a semente não faz nada?
Cl.: Faz! Ela.. contrai! Da mesma maneira que esse espírito contraiu… Depois você vai entender perfeitamente isso: o processo da semente é um processo de contração. Ela contrai os elementos – e ao contrair esses elementos – ela começa a gerar esse mundo lindíssimo que nós temos. Da mesma forma que um pássaro canta para o sol – uma semente contempla a natureza. É o mesmo procedimento!
O corpo orgânico se submete ao organismo; e o órgão principal é a consciência. Ou seja: o corpo orgânico é todo governado pela consciência.
E a natureza humana?
Cl.: A natureza humana é orgânica – e dominada pela consciência. É preciso romper com o humanismo para chegar a essa posição que eu estou colocando. O maior adversário dessa posição é, sem dúvida nenhuma, o humanismo; porque o homem enquanto tal é orgânico e – como diz Nietzsche – a consciência é o órgão mais jovem. O que eu estou mostrando pra vocês… é que o pensamento só pode pensar se a consciência for paralisada – porque a consciência é um obstáculo para o pensamento.
Em termos nietzscheanos, a consciência é uma força reativa. Em termos espinozistas, a consciência é uma força conservativa. [Enquanto que] o pensamento é avassalador, é conquistador, é criador. Ou seja, a única questão do pensamento é criar e inventar – não importa como!
Então aí a gente teria – nitidamente – não uma dialética, não um confronto do pensamento com a consciência, porque o pensamento – em momento nenhum – faz confrontos. Quem faz confrontos é a consciência, que vive sob regime das opiniões. O pensamento, não! Por isso, a questão de um pensador não é apresentar opiniões – para serem debatidas; mas constituir problemas – para serem pensados. Não haveria nem possibilidade de dizer dialética entre o pensamento e a consciência… porque a oposição, a dialética – esses conceitos – eles pertencem à consciência: não pertencem ao pensamento.
Texto de Claudio Ulpiano
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Um comentário:
Não me canso de ler esse fantástico texto.
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