Me sentindo provocado por uma postagem no Facebook, feito por uma amiga... resolvi procurar e achei esses três belos textos de Rafael Trindade, os quais copio abaixo... na íntegra e com todas as imagens e créditos para o autor supracitado no seu blog
Razão Inadequada Uma postura inadequada é a nossa maneira de viver em uma cultura da adequação…
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Nietzsche – o além-do-homem [ou, o super-homem]
"Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo?” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 13
Por que demoramos tanto para falar do
super-homem? Bem, não é tão fácil, este conceito tão famoso de Nietzsche
(e tão mal interpretado) exige a articulação de tantos conceitos que
seria impossível começar por ele. São necessárias a noção de Eterno Retorno, como ferramenta para se chegar ao Super Homem, a ideia de amor-fati, para superar todo o ressentimento, e, claro, o conceito de Vontade de Potência.
É por isso que aconselhamos antes a
leitura destes textos, sem eles, jamais teríamos a capacidade de
entender o que significa dizer que “o homem é uma corda, atada entre o
animal e o super-homem – uma corda sobre o abismo” (Nietzsche, Assim
Falou Zaratustra, p. 13). Nietzsche matou Deus, e agora quer dar fim aos
seguidores dele:
“Grande, no homem, é ele ser uma ponte e não um objetivo: o que pode ser amado, no homem, é ser ele uma passagem e um declínio” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 13
As duas traduções mais comuns para Übermensch
são super-homem e além-do-homem; nenhuma delas é perfeita, mas as duas
trazem a ideia de superação, de alguém que se eleva, a criação de um
novo tipo. Usaremos aqui os dois nomes como sinônimos. O super-homem não
é uma forma superior de homem, mas é aquele que deixa a forma homem
para trás, se desfaz desta casca que se tornou demasiadamente apertada.
Ao desenvolver este conceito, Nietzsche
estabelece plena oposição com o europeu moderno. Este é o alvo de sua
crítica, o filósofo também o chama de último-homem, ou
homens-superiores. Zaratustra ridiculariza este homem apaixonado por sua
cultura, suas leis e seus valores cristãos (já escrevemos aqui
sobre a psicologia do homem do ressentimento). O último-homem (último
poque depois dele vem o além-do-homem) é o europeu domesticado,
obediente, anestesiado, entupido de cultura, aferrado ao seu tempo. Este
está em franco declínio, e Zaratustra ama aqueles que querem declinar,
pois é deles que nascerá o super-homem: valente, impetuoso, ativo,
vivaz.
O niilismo está em seu estágio mais
avançado: o homem não quer mais ir para além de si, não quer criar, “seu
solo ainda é rico o bastante para isso, mas um dia este solo será pobre
e manso, e nenhuma árvore alta poderá nele crescer” (Nietzsche, Assim
Falou Zaratustra, p. 18). O super-homem é aquele que vence o niilismo,
supera a forma homem, velha e desgastada, supera todos os humanismos,
toda a cultura que o prende em si mesmo, é ele quem “lança a flecha do
seu anseio por cima do homem” (Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p.
18). Já o homem do ressentimento é aquele cujas forças reativas
predominam, ele é escravo de seu tempo, não consegue ir para além da
conservação.
O homem moderno orgulha-se demais de si
próprio, está acomodado, conformado, abraça seus ídolos supersticiosos
como único meio de sobrevivência. Chegamos ao extremo da massificação e
uniformização. Também existe, claro, muito medo e insegurança, poucos
aventureiros. O valor dos valores deve ser revisto: é afundados nesta
sociedade moralista que devemos viver? Não! A afirmação do super-homem é
a negação dos valores vigentes: ousadia no lugar de segurança,
auto-disciplina ao invés e auto-piedade, esquecimento em vez de
ressentimento. Zaratustra aconselha ao homem mergulhar dentro de si para
encontrar a potência necessária para declinar, deixar esta forma velha e
empoeirada e criar novos valores. Isto fica claro nesta famosa
passagem:
Eu vos digo: é preciso ter ainda o caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante, eu vos digo: tendes ainda o caos dentro de vós” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 18
Matteo Pugliese
O além-do-homem é aquele que supera todo o ressentimento, é a criança da última das três metamorfoses,
é a inocência do devir. Todos os modelos são deixados para trás, todos
os ídolos são quebrados: só há espaço para a criação. O homem se torna
artista, dono de si; não qualquer espécie de ditador, desmentindo
qualquer vínculo com o nazismo (pobres daqueles que leram duas linhas de
Nietzsche e o acham pessimista ou próximo do nazismo, este ainda tem um
longo percurso pela frente).
O super-homem é aquele que apreendeu o verdadeiro sentido do eterno retorno: o retorno da diferença.
Há um completo domínio das forças reativas, elas obedecem ao
além-do-homem, faz-se uma herarquia. As forças que querem criar se
tornam mais fortes que as forças que querem conservar. Expressão da
diferença no lugar de conservação do igual. O ser passa a se afirmar na
diferença, o devir é o devir da potência na diferença.Os mais preocupados perguntam hoje: ‘como conservar o homem?’. Mas Zaratustra é o pimeiro e único a perguntar: ‘Como superar o homem?'” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 272
É necessário o dizer-sim do bom jogador,
amor-fati, aquele que aprendeu a jogar não pelo resultado do lance de
dados, mas pelo prazer que o jogo proporciona, independente do
resultado. A dor o cativa, o torna mais forte, ele não amaldiçoa o
sofrimento, ele o abençoa, pois é sua possibilidade de provar-se e ir
além. Todo “acaso é cozinhado em sua panela”, ele pode aproveitar-se até
mesmo da dor, é um tempero a mais na vida, é mais uma tonalidade que
ele dispõe ao pintar novos horizontes.
Mas Nietzsche nos avisa desde cedo, não
há super-homens ainda (até porque ele é muito mais uma atitude do que
uma estado de ser). Nascemos em um lodaçal onde podemos nos aprimorar e
tornarmo-nos mestres de nós mesmos, o super-homem é uma possibilidade
circunscrita que acontece esporadicamente. Quem sabe não estamos abrindo
caminho para ele? Quando a Vontade de Potência se manifesta plenamente,
podemos dizer que o além-do-homem se anuncia através de nós.
Ir para além do homem é ir para além da
forma homem pregada pelos humanismos que existem por aí, ultrapassar as
ideias fechadas, os conceitos que mais parecem prisões. O que pode o
homem? Mais nada, o melhor a fazer é ultrapassá-lo.
Após a morte de Deus, seu trono ficou
vago, e foi preenchido por toda sorte de superstições. O niilismo ainda
está presente, mas o além-do-homem atravessa todo este lodaçal como um
raio de luz que não se deixa contaminar pelo niilismo. O além-do-homem
atinge o ponto definitivo da morte de deus. Finalmente toda
transcendência é deixada de lado: deus, religião, moral, lei, castração,
verdade, ciência, humanismo, justiça, bem e mal.
A morte de deus foi anunciada, mas só com
o advento do super-homem ela se torna definitiva. Com o declínio do
último-homem, o ocaso de seus valores, o homem supera a si mesmo
superando deus e todos os valores ascéticos. Por fim, a longa e gelada
noite termina com os primeiros raios de sol, anunciando a filosofia do
meio-dia.
O homem se acha no meio de sua rota, entre animal e super-homem, e celebra seu caminho para a noite como a sua mais alta esperança; pois é o caminho para uma nova manhã./ Então aquele que declina abençoará a si mesmo por ser um que passa para lá; e o sol do seu conhecimento permanecerá no meio-dia/ ‘Mortos estão todos os deuses: agora queremos que viva o super-homem'” – Nietzsche, Assim Falou Zaratustra, p. 76
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Matteo Pugliese
A psicologia do Homem do Ressentimento
O ressentimento, a ninguém é mais prejudicial que ao próprio ressentido” – Nietzsche, Ecce Homo, §6
Nietzsche fez um diagnóstico do homem
moderno.
Seus pensamentos são essenciais para entender
o niilismo em que
vivemos e o motivo pelo qual
o animal homem é um bicho doente. Através
da interpretação do mundo pela
Vontade de Potência, Nietzsche tem condições
de responder porque o homem ressentido dominou
e como superar nosso pessimismo atual.
O ressentimento vem daquele homem que
perdeu
a capacidade de criar e de experienciar o presente.
A Vontade de
Potência é a força que se efetiva
no devir, onde está o mundo está a
verdade,
por isso as forças ativas são ativas, porque
afirmam o
presente. O tipo ressentido é aquele
que possui alguma inibição ou
bloqueio
para suas forças ativas se expressarem.
Podemos separá-los em
três níveis:
O primeiro nível de niilismo é o do homem
ressentido no exato sentido da palavra: re-sentir.
O esquecimento é uma
força ativa no homem que
o livra de perder-se no passado. A força ativa
do esquecimento é o que apaga as marcas
no homem e o permite novamente
experienciar
o devir. Mas o homem reativo não consegue
esquecer, ele
re-experiencia novamente porque
suas forças ativas não conseguem superar
suas forças
reativas, responsáveis pela criação das memórias.
Sendo
assim, este homem perde a capacidade
de metabolizar o que lhe acontece e
passa a
rememorar eventos passados. Lembrar é sempre
ruim: até mesmo
uma boa lembrança, porque
nega o aqui e agora. O homem ressentido sente
a
frustração do peso de sua bagagem. A identidade
que preocupa-se em
manter, os valores
de bem e mal, ideais são consequência da perda
do
devir pela memória hipertrofiada do homem reativo.
O segundo nível constitui a
má-consciência.
Dá-se quando a criação de ideais é usada para
maldizer o
mundo, gerando um mal-estar inerente
à condição humana. O mundo nunca
conseguirá s
atisfazer o homem cheio de ideais, por isso
este indivíduo
desaprende a amar a vida e passa
a maldizê-la. Ele não sabe exatamente
por quê,
mas o mundo é ruim e não o satisfaz. Ele não
consegue encontrar
a solução, mas o mundo parece
ter infinitos problemas. Ele não suporta
que
o tempo passe porque isso demonstra
a impermanência que o homem da
abstração
não aguenta. Este tipo de ressentimento acontece
porque as
marcas que constituem o homem
(sua memória, seus ideias, sua moral)
impedem
que a Vontade de Potência flua naturalmente.
O homem domesticado
é cruel consigo mesmo
(como animal batendo nas grades): “sofro,
portanto deve haver um culpado”. Essas forças
que se voltam contra ele
são as mesmas que o
machucam e debilitam.
Que tipos de pensamentos a doença
inspira?
A última forma de ressentimento o demonstra
com o advento da
figura do sacerdote. Somente
ele foi capaz de mudar a direção do
ressentimento,
dar-lhe sua forma final. É uma atitude cruel por
parte do
padre, mas a única capaz de salvar o
homem doente: dar sentido ao
ressentimento,
para diminuir sua dor. Como todo aquele que
sofre procura
por um sentido, o homem
reativo também procura uma resposta para s
ua
angústia. Qualquer sentido é melhor que
a falta de sentido e o mesmo
acontece com
o homem reativo: ele não sabe por quê sofre.
O padre lhe
diz então: “você sofre porque
é um pecador, se você sofre é porque é
culpado”.
A vontade está salva, há um sentido, mesmo que
seja niilista: o
homem sofre para em sua próxima
vida ser salvo. A forma e o sentido do
ressentimento,
dada pelo padre, tem efeito sedativo, mas a interpretação
não é o remédio, é uma das causas da doença.
Nietzsche
procura saídas para o homem moderno
não sufocar-se em sua própria
angústia.
Um dos remédios para o ressentimento?
A busca pelos momentos
de espontaneidade:
“Aja duas vezes antes de pensar”.
O
hiperdesenvolvimento da consciência levou
à incapacidade de sentir e
agir. O ressentido
carrega consigo todo o lixo do qual não
consegue
desvencilhar-se. Já o homem ativo tem
sempre o organismo limpo para
novas
experimentações porque se utiliza de umas
das fórmulas
desenvolvidas por Nietzsche para
a grandeza do homem: Amor-Fati.
Nietzsche – amor-fati
Minha fórmula para a grandeza no homem é amor-fati: não querer nada de outro modo, nem para diante nem para trás, nem em toda eternidade. Não meramente suportar o necessário, e menos ainda dissimulá-lo – todo idealismo é mendacidade diante do necessário -, mas amá-lo” – Nietzsche, Ecce Homo, Porque sou tão esperto, §10.
As implicações do eterno retorno
levarão inevitavelmente a outro conceito muito importante que Nietzsche
chamou de amor-fati (do latim, amor ao destino). Se tudo retorna
eternamente, e exatamente como é agora, então é imprescindível ao homem
seu destino. Se não existe nada além desta existência, há de se concluir
que apenas ela merece nosso amor.
Aprender a amar nosso destino, encontrar
beleza no necessário, esta é a grande lição de Nietzsche já no fim de
sua produção intelectual; talvez seu último grande ensinamento. Dizer
sim à vida, porque só ela que existe e somente ela traz valor em si
mesma. Esta lição serve tanto para momentos de felicidade como para
momentos de desespero. Transformar o “foi assim” em “eu quis assim” dá um sentido próprio ao que aconteceu (ver Zaratustra – Da redenção).
O controle do passado implica aceitar o
que lhe foi dado e tirado. Todos os acontecimentos se inserem numa ordem
causal da natureza, assim como você, portanto, nada poderia ter
acontecido de outra forma, nada poderia ter sido diferente, não adianta
lamentar-se. É preciso afirmar até mesmo o erro, afinal de contas, ele
não é um erro! Ele era absolutamente necessário naquele momento e só
pode ser interpretado como um erro se tomarmos formas superiores para
nos guiar (mas Deus está morto).
A exortação de apropriar-se do que
aconteceu nos torna capaz de seguir adiante. O bom e o ruim, a dor e o
prazer, são inerentes à vida, amar o que lhe acontece e acontecerá é o
primeiro passo para tornar-se quem é. “Em vez de esperar que um
poder transcendente justifique o mundo, o homem tem de dar sentido à
própria vida; em vez de aguardar que venham redimi-lo, deve amar cada
instante como ele é” (Marton, Nietzsche e a transvaloração dos valores).
“O homem é algo que deve ser superado” (Zaratustra, prólogo).
A forma homem é velha e caduca, ela vai errar sempre porque ainda está
presa em ídolos metafísicos, presa à forma. É preciso deixar a
forma-homem para trás para afirmar aquilo que passou e mais, amar aquilo
que passou, porque assim deveria ser, por toda a eternidade. Redimir o
passado, desatar os nós do ressentimento, dissolver a má-consciência,
para que mais serviria o amor-fati? Existe tarefa maior?
Devemos afirmar a vida, negando toda
calúnia, toda desvalorização, toda acusação que possa ser feita contra
ela. Mas este ensinamento foi muito mal compreendido. O amor-fati
não implica em resignação, sua lição não é de aceitação passiva, muito
menos acovardar-se. Não devemos abaixar a cabeça e aceitar, muito
menos virar a outra face (Mt 5,39). O amor-fati diz para o
indivíduo amar a vida, porque só ela existe e fora do todo não há nada.
Significa afirmar o que tinha que ser sem deixar de afirmar a vontade de potência, em si e no mundo.
E negar os negadores é uma forma de
afirmar! Por isso a luta também faz parte deste amor; não se pode apenas
entender que existem paradoxos e contradições, é necessário amá-los.
Devemos amar a luta, a revolta, a insubmissão. E que dizer “Não” seja
apenas um passo para se dizer “Sim” cada vez mais alto! Porque temos
cada vez mais vontade de dizer “Sim!”. Vontade de estar no mundo!
Vontade de amar! Amor-fati…
Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas. Amor-fati [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores, Que minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim!” – Nietzsche, Gaia Ciência, §276.
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