17 junho, 2012

Tuareg, ou sobre os desertos do deserto



No límpido ar do deserto, na escuridão de uma terra sem uma única luz em centenas de
quilômetros à volta, tinha-se a impressão de que as estrelas desciam até quase roçar
na areia, e Gacel frequentemente estendia a mão como se realmente pudesse tocar, com as pontas dos dedos, aquelas bruxuleantes luzes.

À porta de sua tenda, a maior e mais confortável do acampamento, ele se detinha uns instantes para escutar. Se o vento não tinha ainda começado a chorar, o silêncio chegava a ser tão denso que machucava os ouvidos. Gacel amava esse silêncio.

No Saara cada homem tinha o tempo, a paz e a atmosfera necessários para se encontrar a si mesmo, olhar para a distância ou para o seu interior, estudar a natureza que o cercava e meditar sobre o que não conhecia senão através dos livros sagrados. Mas lá, nas cidades, nos
povoados e inclusive nos minúsculos vilarejos berberes, não havia paz, nem tempo,, nem espaço, e tudo era um tumulto de ruídos e problemas alheios, com vozes e brisas de estranhos, a ponto de causar a impressão de que era muito mais importante o que acontecia aos outros que à gente mesmo.

Não houve crepúsculo; o céu passou, quase sem transição, do vermelho ao negro, e logo brilharam a s luzes dos lampiões.

Agradeceu, mais tarde, pela saída da lua, que iluminou o seu caminho. À meia-noite, distinguiu a distância o prateado reflexo... um grande lago salgado que se abria diante dele, como um mar petrificado, e do qual não conseguia ver a outra margem.

Muitíssimos anos atrás, quando o Saara era um grande mar que se retirou, a água ficou aprisionada em milhares de buracos semelhantes, onde mais tarde se evaporou lentamente, amontoando no fundo uma capa de sal, que, no seu centro, chegava a ter vários metros de expessura. Não era raro que correntes subterrâneas de águas salitrosas os alimentássem também quando chovia. Desse modo, perto das margens formava-se uma zona de areia úmida e salobra, pastosa, que o sol queimava até converter em uma crosta endurecida... Essa crosta oferecia o perigo de se rachar a qualquer momento, lançando o viajante a uma pasta que lem,brava manteiga semiderretida e que o engolia em poucos minutos. Era mais perigosa ainda que o traidor fesh-fesh (areia movediça), o solo arenoso, sem apoio, onde, subitamente, homem e camelo desapareciam como se nunca tivessem existido.

"Os tuareg espetam as estrelas com suas lanças para, com elas, iluminar os caminhos..." Um belo ditado do deserto, ,nada mais que uma frase, mas quem a inventou conhecia bem aquelas noites e
aquelas estrelas, e sabia também o que significava contemplá-las horas a fio, de
tão perto.

Três coisas o fascinavam desde criança, o fogo, o mar arrebentando contra as rochas e as estrelas em um céu sem nuvens. Olhando o fogo, esquecia-se de pensar; olhando o mar, afundava nas lembranças da infância; contemplando a noite, senti-se em paz consigo mesmo, com o passado, o presente e até quase em paz com seu próprio futuro.








O eterno vento do deserto tinha varrido seus cumes durante milhões de anos, despojando-os de todo rastro de terra, areia ou vegetação, e sua aparência era a de uma infinita rocha nua, reluzente, castigada pelo sol e fraturada pelas brutais diferenças de temperatura entre o dia e a noite. Os viajantes, que em algum tempo haviam atravessado aquelas montanhas, garantiam que nos amanheceres se ouviam vozes, gritos e lamentos, embora se tratasse, na realidade, do estalido das pedras aquecidas, quando a temperatura baixava bruscamente.

"As palmeiras amam ter a cabeça no fogo e os pés na água", garantia um, velho provérbio. Diante dos olhos dele, a plena confirmação: estendendo-se até quase se perderem de vista, levantavam seus penachos ao céu mais de vinte mil palmeiras, sem se importarem com o calor
escaldante, porque suas raízes se afundavam firmemente na água clara e fresca de cem mananciais e inumeráveis poços.

 O calor opressivo afundou-o em uma sonolência inquieta, num arremedo de sono, do qual despertou sobressaltado, mas sobressaltado por aquele mesmo silêncio, aquela quietude e aquela angustiante sensação de vazio, suando abundantemente e sentindo uma quase dor nos ouvidos, como se o tivessem afundado, de repente, em um universo oco, até o ponto em que murmurou algumas palavras, com o único objetivo de escutar a si mesmo e comprovar que ainda existiam sons na terra.

Era outras a luzes, mas não outras as sombras, uma vez que não havia objeto algum capaz de projetar a menor sombra sobre a branca planície ilimitada. As últimas dunas morriam mansamente, como línguas sedentas ou como longas ondas de um mar sem força sobre uma praia sem fundo, caprichosa fronteira que a natureza se impusera sem razão aparente, sem
explicar a ninguém porque ali acabava a areia ou porque começava a planície.

Insh"Allah!
Porque teria querido Deus, capaz de tudo imaginar, plasmar ali, de maneira tão
flagrante, a realidade do mais absoluto dos nadas?
Tinha razão Gacel, e o vento acabava no limite mesmo das dunas, para dar passagem a um ambiente rarefeito, onde em menos de cem metros a temperatura aumentava quinze graus, como uma bofetada de ar quente, que impelia o caminhante a retroceder em busca da doce proteção do mar de areia que, até aquele momento, parecia insuportável.

O tuareg era o único povo, dentre todos os povos islâmicos, que, embora seguindo fielmente os ensinamentos de Maomé, apregoava a igualdade dos sexos,e as mulheres deles não apenas jamais havia coberto o rosto com um véu - à diferença dos homens - , como gozavam de absoluta liberdade até o momento de se casarem, sem a obrigação de prestar contas de seus atos nem aos pais, nem ao futuro esposo, que, geralmente, era escolhido por elas, atendendo seus sentimentos.
Eram famosas no deserto as "Festas de Solteiros" dos tuareg, os Ahal, quando rapazes e moças se juntavam para cear à luz do fogo, para contar histórias e tocar o amzad de uma só corda, dançando em grupos até altas horas da madrugada.
Então as mulheres tomavam a palma das mãos dos homens que queria e traçavam sobre ela
desenhos cujo significado só os de sua raça conheciam, indicando o tipo de ato de amor que desejavam para aquela noite.
E, seguida, cada casal se perdia na escuridão, para buscar nas dunas, sobre a macia areia e a  branca gandurah estendida sobre ela, a satisfação dos desejos manifestados na palma da mão escolhida.

Para um árabe tradicional, zeloso da virgindade daquela que haveria de ser sua esposa, ou da honra da filha, tais costumes excediam os limites do simples escândalo, e Abdul sabia de países, como a Arábia e a Líbia, e regiões de sua própria pátria, onde, por muitíssimo menos, se apedrejava ou cortava a cabeça dos culpados.

"... Vejam como as lutas e as guerras a nada conduzem, porque os mortos de uma lado com os mortos do outro se pagam..." Sempre os ensinamentos do velho Suílem; sempre à volta a mesma história, porque a realidade era que podiam mudar os séculos e, inclusive, as paisagens, mas os homens continuavam sendo os mesmos, e se convertiam afinal nos únicos protagonistas da mesma tragédia mil vezes repetida, por mais que variassem o tempo e o espaço.

Fragmentos de Tuareg, de AlbertoVázquez-Figueroa

16 junho, 2012

Therion e sua magia
























 




Meu fascínio está... 
só no início!!!

Therion:

 Clavicula Nox   


 Draconian Trilogy:
The Opening /
Morning Star /
Black Diamonds


raven 
of dispersion


Deggial


7 secrets of the Sphinx


A MAGIA 
CONTINUA




13 junho, 2012

Sobre os loucos e ajuizados, por Florbela Espanca


"Afinal, quem é que tem a pretensão de não
ser louca?...
Loucos somos todos, e livre-me Deus dos
verdadeiros ajuizados,
que esses são piores que o diabo!

- Florbela Espanca -


Eu gosto dos loucos em geral
e gosto dos ajuizados no particular.
O que não suporto, mesmo, é dos certinhos,
"normais" que fazem cara de samambaia para
as afecções que a vida produz.

Gosto dos que inventam e desinventam
baseados no diálogo que fazem entre as
suas loucuras e sanidades.
Aqueles que ficam parados na linha tênue que
separa esses dois mundos e práticas me dão ojeriza,
com j e com z, tal como aprendi (na ortografia e) na vida.

A capacidade de adaptar, adequar, de forma não sectária
e sem desejo de absoluto, a sanidade e a loucura com
os meios de produção do dentro e do fora... nas relações
consigo e com o outro - qualquer outro -
configura-se como uma tarefa mágica, cheia de prazer
e descobertas que variam ao infinito
das possibilidades da vida em nós.


Cesar  R K

Florbela Espanca sobre ingratidão e maldade





Eu não sou como muita gente: 
entusiasmada até à loucura 
no princípio das afeições e depois, 
passado um mês, 
completamente desinteressada delas.

Eu sou ao contrário: o tempo passa 
e a afeição 
vai crescendo, morrendo
apenas quando a ingratidão 
e a maldade a fizerem morrer.

- Florbela Espanca -



..................................................

Acreditar que podemos passar
a vida toda
sem sofrer a ingratidão, 
até mesmo dos mais
próximos 
e queridos por nós, é uma ilusão, 
como ensina Hammed.

Eu sinto que a ingratidão pode
não matar a afeição, mas, tal como
deixa claro Florbela, no seu uso do 
gerúndio do verbo amar,
vai matando-a. 
Por vezes, até as mais belas relações 
assim se esvaziam... 
até não sobrar
nada...
quando a ingratidão se repete...
demasiado.

Ainda acho que a melhor maneira
de lidar com isso, é não criar
expectativas...
ainda que nos sintamos
no desejo dela
e as mereçamos,
a gratidão.

Importante também...
 é darmos,
a nós mesmos,
a gratidão que queremos do outro

E a maldade?

Está certo que não precisamos
"ser amigos do inimigo"
e com ele tecer relações
afetivas, mas
precaver-se e afastar a maldade
- se afastar da maldade, do outro
e da nossa própria - é condição
de bem estar e saúde.

Ou... será que algum hipotético leitor desse
breve comentário, acredita 
não haver maldade dentro de si?

LIMITES: é disso que
a maldade precisa...
ausência de território para proliferar.

Perdão?
O perdão, me parece, não tem
poder sobre a maldade... repetida.






12 junho, 2012

O tempo, o amor entre os deuses e a aurora




O Tempo entrou em cena entre o aflorar da intenção e o ato que se seguiu.


Com o despertar; com aquilo que faz existir, impõe se também o tempo, que faz desaparecer. Aquilo que faz existir e faz desaparecer, as duas potencias impalpáveis que precedem todas as outras, às quais retornamos todos, aparecem juntas, toda manhã, na figura daquela que é "a mais bela de todas", atrás da qual se entrevê um cortejo interminável de cópias, tão belas quanto ela.
E, paralelos a elas inúmeros rostos que a observam: os mortos, os nonatos. "Foram-se os mortais que viram resplandecer a primeira Aurora. Por nós agora ela se deixa contemplar. E eis que chegam aqueles que a verão nos tempos futuros."


Mas de que outra coisa se podeia cogitar? Brahma mergulhava em si mesmo e encontrava a melancolia de quem entende demais e não sabe a quem falar. Foi isso, exatamente, o que nele se iluminou.


Por que o simples fato de vê-la, tocava-o no único ponto onde sentia não possuir resistência?


Se em toda palavra se encerra o assassínio da coisa que espera desde sempre uma reparação, desses nomes emana uma substância macia e irradiante que em vão procuraremos entre as coisas que são. E mesmo nessa substância existe o indício de alguma reparação.


Tocaram-se na ponta dos dedos. Naquele instante Brahma compreendeu o que é o contato: um estremecimento e uma revelação.


Brahma estava taciturno, oprimido. Aqueles seus filhos nascidos da mente pareciam-lhe vazios, tolos. Não entenderiam nunca o que significa, o que pode significar - na condição de perigoso, incongruente, fugidio, louco, opaco - o existir. Eram nascidos da mente, possuíam leveza e mobilidade, mas não tinham mais consistência do que fogos-fátuos. O mundo corria o risco de permanecer para sempre como um farrapo de tecido macio e vaporoso, que oscila ao vento sem existir.


É difícil suportar a beleza da vida com você.


Sati teve a sensação de que seu corpo existia pela primeira vez. Sentiu não que Shiva penetrava nela, mas que Shiva abria-se para ela, como uma vasta cavidade e a acolhia em si.


O coito de Shiva e Sati durou vinte e cinco anos, sem que Shiva vertesse nela o sêmem. Como um elefante aprisionado, Shiva não podia se mexer senão tocando o corpo de Sati. Quando falavam, brincavam.


Durante a cerimônia nupcial um brâmane me sussurrou que você me aceitara só porque é devotado a seus devotos. Mas o que significa essa devoção? Quero o conhecimento." ... "A devoção por você não me basta", disse Sati. "Você não precisa dela. Você é eu. Esse é o conhecimento. Nada mais que três palavras", disse Shiva. "E você, o que é?", perguntou Sati, com súbita doçura, estudando seu amante. "Eu sou isto", disse Shiva. "O que é isto?", insistiu Sati, como uma menina teimosa. "Isto que faz saber que estamos falando. Mas não devemos falar mais", disse Shiva, e recomeçou a desfiar, lentamente, como centenas de outras vezes, os braceletes dos pulsos de Sati.


Também essa, que era uma ferida recente, aberta, atravessava suas fibras de um extremo a outro, parecera fazer parte dele desde sempre. Cada amante ama, antes de tudo, uma ausência. A ausência vem antes da presença na ordem hierárquica. A presença é apenas um caso particular de ausência. A presença é uma alucinação com certa durabilidade. Mas isso não diminui em nada a dor.


Parvati adora não entender. Para ela, o escuro era o que atraia acima de tudo. O que a circundava ali, ao contrário, era transparente demais. ... "Já é imenso só o prazer de vê-la", pensou Shiva. "Como será o de abraçá-la?"
(Fragmentos de Ka, de Roberto Galasso)




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