No límpido ar do deserto, na escuridão de uma terra sem uma
única luz em centenas de
quilômetros à volta, tinha-se a impressão de que as estrelas
desciam até quase roçar
na areia, e Gacel frequentemente estendia a mão como se
realmente pudesse tocar, com as pontas dos dedos, aquelas bruxuleantes luzes.
À porta de sua tenda, a maior e mais confortável do
acampamento, ele se detinha uns instantes para escutar. Se o vento não tinha
ainda começado a chorar, o silêncio chegava a ser tão denso que machucava os ouvidos.
Gacel amava esse silêncio.
No Saara cada homem tinha o tempo, a paz e a atmosfera
necessários para se encontrar a si mesmo, olhar para a distância ou para o seu
interior, estudar a natureza que o cercava e meditar sobre o que não conhecia
senão através dos livros sagrados. Mas lá, nas cidades, nos
povoados e inclusive nos minúsculos vilarejos berberes, não
havia paz, nem tempo,, nem espaço, e tudo era um tumulto de ruídos e problemas
alheios, com vozes e brisas de estranhos, a ponto de causar a impressão de que
era muito mais importante o que acontecia aos outros que à gente mesmo.
Não houve crepúsculo; o céu passou, quase sem transição, do
vermelho ao negro, e logo brilharam a s luzes dos lampiões.
Agradeceu, mais tarde, pela saída da lua, que iluminou o seu
caminho. À meia-noite, distinguiu a distância o prateado reflexo... um grande
lago salgado que se abria diante dele, como um mar petrificado, e do qual não
conseguia ver a outra margem.
Muitíssimos anos atrás, quando o Saara era um grande mar que
se retirou, a água ficou aprisionada em milhares de buracos semelhantes, onde
mais tarde se evaporou lentamente, amontoando no fundo uma capa de sal, que, no
seu centro, chegava a ter vários metros de expessura. Não era raro que correntes
subterrâneas de águas salitrosas os alimentássem também quando chovia. Desse
modo, perto das margens formava-se uma zona de areia úmida e salobra, pastosa,
que o sol queimava até converter em uma crosta endurecida... Essa crosta oferecia
o perigo de se rachar a qualquer momento, lançando o viajante a uma pasta que
lem,brava manteiga semiderretida e que o engolia em poucos minutos. Era mais
perigosa ainda que o traidor fesh-fesh (areia movediça), o solo arenoso, sem
apoio, onde, subitamente, homem e camelo desapareciam como se nunca tivessem
existido.
"Os tuareg espetam as estrelas com suas lanças para,
com elas, iluminar os caminhos..." Um belo ditado do deserto, ,nada mais
que uma frase, mas quem a inventou conhecia bem aquelas noites e
aquelas estrelas, e sabia também o que significava
contemplá-las horas a fio, de
tão perto.
Três coisas o fascinavam desde criança, o fogo, o mar
arrebentando contra as rochas e as estrelas em um céu sem nuvens. Olhando o
fogo, esquecia-se de pensar; olhando o mar, afundava nas lembranças da
infância; contemplando a noite, senti-se em paz consigo mesmo, com o passado, o
presente e até quase em paz com seu próprio futuro.
O eterno vento do deserto tinha varrido seus cumes durante
milhões de anos, despojando-os de todo rastro de terra, areia ou vegetação, e
sua aparência era a de uma infinita rocha nua, reluzente, castigada pelo sol e
fraturada pelas brutais diferenças de temperatura entre o dia e a noite. Os
viajantes, que em algum tempo haviam atravessado aquelas montanhas, garantiam
que nos amanheceres se ouviam vozes, gritos e lamentos, embora se tratasse, na
realidade, do estalido das pedras aquecidas, quando a temperatura baixava
bruscamente.
"As palmeiras amam ter a cabeça no fogo e os pés na
água", garantia um, velho provérbio. Diante dos olhos dele, a plena confirmação:
estendendo-se até quase se perderem de vista, levantavam seus penachos ao céu
mais de vinte mil palmeiras, sem se importarem com o calor
escaldante, porque suas raízes se afundavam firmemente na
água clara e fresca de cem mananciais e inumeráveis poços.
O calor opressivo
afundou-o em uma sonolência inquieta, num arremedo de sono, do qual despertou
sobressaltado, mas sobressaltado por aquele mesmo silêncio, aquela quietude e
aquela angustiante sensação de vazio, suando abundantemente e sentindo uma
quase dor nos ouvidos, como se o tivessem afundado, de repente, em um universo
oco, até o ponto em que murmurou algumas palavras, com o único objetivo de escutar
a si mesmo e comprovar que ainda existiam sons na terra.
Era outras a luzes, mas não outras as sombras, uma vez que
não havia objeto algum capaz de projetar a menor sombra sobre a branca planície
ilimitada. As últimas dunas morriam mansamente, como línguas sedentas ou como
longas ondas de um mar sem força sobre uma praia sem fundo, caprichosa
fronteira que a natureza se impusera sem razão aparente, sem
explicar a ninguém porque ali acabava a areia ou porque
começava a planície.
Insh"Allah!
Porque teria querido Deus, capaz de tudo imaginar, plasmar
ali, de maneira tão
flagrante, a realidade do mais absoluto dos nadas?
Tinha razão Gacel, e o vento acabava no limite mesmo das dunas,
para dar passagem a um ambiente rarefeito, onde em menos de cem metros a
temperatura aumentava quinze graus, como uma bofetada de ar quente, que impelia
o caminhante a retroceder em busca da doce proteção do mar de areia que, até aquele
momento, parecia insuportável.
O tuareg era o único povo, dentre todos os povos islâmicos,
que, embora seguindo fielmente os ensinamentos de Maomé, apregoava a igualdade
dos sexos,e as mulheres deles não apenas jamais havia coberto o rosto com um
véu - à diferença dos homens - , como gozavam de absoluta liberdade até o
momento de se casarem, sem a obrigação de prestar contas de seus atos nem aos
pais, nem ao futuro esposo, que, geralmente, era escolhido por elas, atendendo
seus sentimentos.
Eram famosas no deserto as "Festas de Solteiros"
dos tuareg, os Ahal, quando rapazes e moças se juntavam para cear à luz do
fogo, para contar histórias e tocar o amzad de uma só corda, dançando em grupos
até altas horas da madrugada.
Então as mulheres tomavam a palma das mãos dos homens que
queria e traçavam sobre ela
desenhos cujo significado só os de sua raça conheciam,
indicando o tipo de ato de amor que desejavam para aquela noite.
E, seguida, cada casal se perdia na escuridão, para buscar
nas dunas, sobre a macia areia e a
branca gandurah estendida sobre ela, a satisfação dos desejos manifestados
na palma da mão escolhida.
Para um árabe tradicional, zeloso da virgindade daquela que
haveria de ser sua esposa, ou da honra da filha, tais costumes excediam os
limites do simples escândalo, e Abdul sabia de países, como a Arábia e a Líbia,
e regiões de sua própria pátria, onde, por muitíssimo menos, se apedrejava ou
cortava a cabeça dos culpados.
"... Vejam como as lutas e as guerras a nada conduzem,
porque os mortos de uma lado com os mortos do outro se pagam..." Sempre os
ensinamentos do velho Suílem; sempre à volta a mesma história, porque a realidade
era que podiam mudar os séculos e, inclusive, as paisagens, mas os homens continuavam
sendo os mesmos, e se convertiam afinal nos únicos protagonistas da mesma tragédia
mil vezes repetida, por mais que variassem o tempo e o espaço.
Fragmentos de Tuareg, de AlbertoVázquez-Figueroa
2 comentários:
Gosto muito de seu blog e o visito rotineiramente, de forma silenciosa, e só hoje notei que nem era sua seguidora!
Agora acertei este detalhe.
Abraço!
Li o fragmento ao som da deliciosa música ‘Marco Polo’
Parece que ficou mais sedutor. A leitura desse livro me deixará maravilhada, sei disso.
Mais um pra minhas férias!
"As palmeiras amam ter a cabeça no fogo e os pés na água"
A Kaka, também, hahahahahahahahaha!
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