"Ouvi/li em algum lugar que solicitar tolerância é tão
preconceituoso quanto a discriminação. Faz muito sentido isso, pois
quem precisa tolerar já se coloca em situação superior ao outro,
inferioriza-o, como se dissesse: “olha, você é menos que eu, mas não se preocupe, magnânimo que sou, eu te tolero, ok?”
Esse
é um exemplo curioso de como uma palavra que pretende mudar paradigmas e
inverter o vetor do preconceito, acaba reforçando-o sem que seu uso
fosse nesse sentido.
A grande ambigüidade aqui
se situa numa questão de Lógica Hermenêutica. As palavras isoladas em
seus conceitos mais comuns, ou em definições estritas, não refletem os
sentidos que podem acrescentar ou até modificar seus significados. A
rigidez de definições “esquece” e impede a dinâmica da língua, dos
afetos, da ampliação horizontal e perspectiva (e não apenas vertical e
progressiva) do conhecimento e das visões de mundo. Dialogar
efetivamente, como nos ensina Habermas,
é uma questão de Agir Comunicativo. Há de se compartilhar certa
idiossincrasia ou aprendermos, via empatia, nos colocarmos na
perspectiva alheia para dialogarmos.
Porém, a
tentativa de uma ampliação horizontal ofende quem se acha detentor de
uma única verdade e do discurso hegemônico baseados em conceitos que
crêem serem metafísicos, embora não sejam. E é nessa ofensa que os
dogmáticos (embora muitos não assumidos) se policiam para “tolerar” o
semelhante. Porém ao exercer essa hipócrita tolerância, continuam
excluindo e discriminando. Todo aquele que não comunga da visão de mundo
e dos rígidos conceitos pelos quais os dogmáticos erigem seus castelos
axiomáticos e determinantes do mundo, não pode compartilhar o mundo com
eles.
Se o mundo pode ser melhor do que é, ou do
que foi, só poderá ser quando abrigarmos a diversidade para além da
mera tolerância. O grande desafio humano talvez seja aprendermos a nos
destituirmos de nossas certezas (e não de nossas verdades) e nos
abrirmos para a diversidade das verdades possíveis, procurando o
consenso prático que abrigue a complexidade intrincada da qual o próprio
mundo parece ser composto.
Pode
parecer utópico, mas que ao menos possamos perceber o quanto destituído
de sentido são certas coisas que querem nos fazer engolir como se
fossem dados reais do mundo, mas sem que consigam sequer demonstrar sua
validade sem que tenhamos que assumi-las dogmaticamente.
Há
de se tomar cuidado quando falo sobre nos destituirmos de nossas
certezas, mas não de nossas verdades. Na verdade chegará a hora de nos
destituirmos de tudo. Considero a Verdade aquilo que chegamos dentro de
um contexto de justificação compartilhado e convincente, portanto é algo
que precisa resistir até que esse contexto de justificação possa ser
questionado. Já certezas dispensam justificação compartilhada, logo não
se sustentam em nenhum contexto. Assumir uma Verdade, não é ter certeza
que ela seja verdade, é assumi-la como norte para nossas escolhas
enquanto elas justificarem esse estatuto de verdade.
Todo
ato de tolerância é uma concessão. Quando somos obrigados a tolerar de
mentiras, hipocrisias, leis e a arrogância das pessoas há uma situação
distinta a meu ver. Mas em que sentido essa distinção se dá? Não
escolhemos tolerar a hipocrisia por nos acharmos hipócritas. Escolher
tolerá-la porque nos colocamos acima dela. Não toleramos as leis porque,
necessariamente, concordamos com elas. Sentimos a necessidade de
tolerá-las justamente porque há uma prescrição punitiva a favor de seu
cumprimento. Curioso é que não gostamos de admitir isso. Achamos um ato
bonito tolerar, mas não aceitamos o corolário dele: colocarmo-nos em um
nível apartado daquilo que vemos necessidade de tolerar.
O
que trago é a discussão sobre o acolhimento do outro em sua diferença. E
isso não requer tolerância nem concessões de nossa parte; como se o
outro só pudesse ser o que é porque permitimos isso. Eu não quero
tolerar ninguém. Mas isso não significa ser intolerante: significa não
fugir à responsabilidade de buscar consensos onde for possível, mesmo
que esses nos obriguem a “flexibilizar” nosso códice de valores tão
arraigados.
Se realmente precisamos aprender a
conviver com a diferença e a respeitá-la, parece-me que o conceito de
tolerância apenas minimiza a diferença, tenta abafá-la… Parece-me um
“deixa pra lá” que é improdutivo para a pretensão de busca de consensos e
crescimento mútuo entre as pessoas, nações e grupos étnicos ou
religiosos.
Tomar a tolerância como dispensável,
contudo, não significa pregar ou ser favorável à intolerância.
Tolerância é segregação. Por que devemos tolerar? Por que não nos
conspurcarmos no que não concordamos, assumirmos provisoriamente seus
pontos de vistas, criticarmos e nos autocriticarmos? Para mim isso é
sinônimo de respeito (res-pecto, do latim: levar em conta). Quem tolera não leva o outro em conta, apenas se livra de aborrecimentos.
Esse
grande “deixa pra lá”, esse não enfrentamento, é uma eliminação da
alteridade necessária ao convívio, ao respeito mútuo, à igualdade de
direitos e à evolução coletiva. É, na verdade, uma reivindicação sem
legitimidade do direito de “permitir” a existência do outro, mas jamais
se abrir ao outro nos isolando em feudos.
Construir
um valor ético que privilegia a diversidade é abolir a intolerância,
dispensar a tolerância e aprender a dialogar. Isso nos traria como
conseqüência acolher a diversidade, abrir-se a ela, procurar entendê-la
desde sua idiossincrasia e se deixar conspurcar por referências que não
são suas, mas que podem, inclusive, serem contrárias e te mudar.
Não é um grande desafio?"
Gilberto Miranda Jr.
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