17 agosto, 2014

Identidade, exposição e mídia


Estou usando este excelente texto no grupo "Clariciando a Pessoa". Com ele, estamos trabalhando os temas que dão nome a esta postagem.

Fragmentos de "Vontade de imagem e celebrização do cotidiano na tela."

"O mundano como espetáculo: como existir sem ser
visto?
[…] teatro doméstico que é a TV, no pequeno retângulo de vidro, esse pátio dos milagres onde uma imagem varre a anterior sem deixar vestígios, tudo em escala reduzida,
mesmo as emoções (Saramago, 2004).

Segundo Debord (1997), da sociedade industrial para a indústria da imagem, é construída a captura do mundano e do cotidiano das pessoas como coisas dignas de exibição, na qual receber o olhar do outro ou fazer ao modo daquele que olhamos movimenta o mercado das sensações, fazendo com que a vida
se torne espetáculo, na medida em que constitui relações sociais entre as pessoas mediadas pelas imagens.
Como aquilo que deve ser mostrado não se dá mais em prol do controle e da disciplina da sociedade, mas para o mercado da visibilidade, ser alvo do olhar do outro é o termômetro da existência: se sou visto, existo ou, como refere Freire Costa (2004, p.84), “apareça ou pereça”. Segundo este autor, na moral das sensações, o enigma não é temer ou adivinhar o que o outro quer, mas “explorar exaustivamente o corpo até torná-lo a ‘cera-mole’ prestes a encarnar qualquer ideal narcísico arbitrário inventado pela moda ou pelo entretenimento”. Diante da exigência de perfeição que se colocou no corpo em detrimento dos sentimentos, o indivíduo vive um permanente estado de insatisfação e receio quanto a sua própria imagem. Não pode se servir do seu passado para que saiba, com mais confiança e conforto, como ele deve ser para que o outro
o reconheça. Desta forma, para obter o reconhecimento imaginário da “moda-espetáculo”, acaba negociando o inegociável, ou seja, a vida ou o gozo, a identidade narcísica ou a homeostase física, o outro ou si mesmo.

Temos, aqui, um deslocamento: as estratégias privadas de existência passam a visar ao compartilhamento que se sustenta no mostrar mais do que no trocar. Sendo assim, a existência se torna o exercício da imagem nas coisas mais simples da vida, numa espécie de exibicionismo premeditado. A vida levada numa enorme
vitrine alimenta a exposição que nos tirou a possibilidade de dissimular a intimidade do olhar do outro, fazendo com que se equipare o que aparentamos ser com a identidade pessoal simplificada pelo
corporal. De tanta exposição, andamos todos perseguidos por um intruso olho que nos julga segundo a performance a ser cumprida.

Conforme Bauman (2001), este compartilhar de intimidades tende a ser o método preferido, e talvez o único que resta, de “construção da comunidade”. Ou seja, dependemos do espetáculo para confirmar que existimos e para nos orientar em meio a nossos semelhantes dos quais nos isolamos. Assim sendo, aquilo que se é não advém da multiplicidade de encontros da vida, mas de um trabalho publicitário pessoal em que a tela brilha, realça as cores, toma nossos olhos, embala nosso desejo e se oferece como alimento da vontade.
Entendemos a vontade como o embate de forças que incluem vários sentimentos: do estado de que nos afastamos, do estado para o qual tendemos e do movimento de afastar-se, bem como do tender e seu correspondente sentimento muscular (Giacóia, 2004). 

A vontade faz da sua diferença um objeto de afirmação, uma vez que a força é quem pode. É sempre pela vontade de poder que uma força entra em relação com outras e as domina ou as comanda. É por vontade de poder que uma força obedece, uma vez que é plástica e se afirma no múltiplo (Deleuze, s/da, p. 78).
Freire Costa (2004) chama atenção para o fato de que é nas variações da vontade que encontramos a nova axiologia dos padrões de normalidade. De um lado, o querer se apresenta como “mestre do corpo” e capaz de gerar transformações existenciais de toda ordem, bastando o sujeito ser suficientemente tenaz na
busca de seus objetos de desejo; por outro lado, um certo discurso acerca das causas orgânicas do comportamento humano isenta moralmente o sujeito ao identificar, nos azares genéticos, os limites
pessoais para exercer a plena vontade no domínio de seu corpo e de sua mente. Desde estas perspectivas, o sucesso é visto como mérito de uma vontade forte, mas o fracasso faz com que cada um se sinta “fisicamente doente”, estreitando sua possibilidade de relacionar a norma social ao seu sofrimento, uma vez que é no biológico que se coloca a causa de seu malogro.

Em tal contexto, o conceito nietzschiano de vontade de potência deixa de ser um princípio pelo qual a vida se projeta para além de si mesma para, ao contrário, colocar o sujeito diante de um espelho identitário, na medida em que “a tela da tv não oferece modelos a imitar, mas se oferece como espelho no qual acreditamos estar refletida nossa própria imagem” (Kehl & Bucci, 2004, p.8). Isto favorece a montagem do mundo das chamadas celebridades onde se existe para o vertiginoso exibicionismo e com a esperança
de visibilidade que dirige as escolhas de vida, seja para se “parecer com” ou “se ver em”.

A imagem outorga a si o poder de distribuir conceitos, redefinindo os ideais de felicidade em que o viver “como cada um bem entende” não é a promoção de vidas autônomas, mas o consumo das crenças que transitam no mundo das celebridades. Para Freire Costa (2004), a celebridade é a “autoridade do provisório”, em que se alia moda e tecnologia a serviço da “moral do entretenimento”. Tal moral se sustenta por pessoas que, idolatrando o momentâneo, desaparecem com ele depois de um apoteótico instante de visibilidade.
Este sucesso independe de seus talentos, uma vez que o fundamental é o potencial de entreter e, assim, não só os objetos, mas as identidades cumprem uma efêmera função de fazer de toda a vida um entretenimento."

Carmen Silveira de Oliveira & Maria Célia Detoni

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