18 janeiro, 2010

A clínica, a arte, a vida e a criação de conceitos





Eliane Accioly Fonseca

Após milênios de cisões entre diferentes aspectos, indivisíveis, porém, como ciência e arte, sagrado e profano, corpo e mente, eu e não eu, e outros, nós ocidentais, a duras e alegres penas, vimos perseguindo e encontrando instrumentos para lidar com os impasses e ultrapassar dicotomias paralisantes, sem eliminar as contradições.

Entre os cronistas do cotidiano, contemporâneos, encontro mestres em outras maneiras de lidar com acontecimentos, problematizando-os e se preocupando em não banalizar sua complexidade, ao contrário, levando o leitor à percepção de novos e surpreendentes ângulos. Um dos recursos usados é o do autor se inserir na situação e/ou contexto que está trazendo, dizendo o que pensa, o que sente, como foi afetado pelas circunstâncias, ou seja, recorrendo às referências que brotam de sua experiência e de seu agir no mundo, em outras palavras, deixando a neutralidade, se expondo.
Não apenas a ciência é conceitual, também a arte e a vida. Em nosso cotidiano cada vez que descobrimos jeitos mais enriquecedores, ou sentimos a precisão de problematizar a rede de relações de situações que nos desafiam, em certa medida, criamos conceitos. Um conceito é para ser usado, uma ferramenta do pensamento que sustenta, temporariamente nossas ações no mundo, em qualquer dos campos que agimos. Não nasce para permanecer, mas para ser substituído por outros, podendo ser usado diferentemente em outros contextos. Quando isso ocorre, não é mais aquele conceito original, mas um outro que possa oferecer novos e diferentes recursos. Quando digo usado quero dizer, experimentado, vivido.

Na cultura ocidental (como em qualquer cultura) há saberes supostos para nos orientar (que podem desorientar, completamente!), e para me sentir garantida a eles me agarro. Quando faço isso não posso me apossar das referências, pois, em geral, estas permanecem alheias à minha experiência, não as encarno e por isso, se distanciam de mim como cenouras na frente do burrinho, não me servindo, pois não dariam conta dos desafios do momento. Paradoxalmente tenho as garantias do suposto saber, mas não as referências.
Estou em estado-de-risco quando esqueço o saber apriori, inclusive teorias e/ou conceitos encontrados por mim no passado e que me serviram em outros momentos, mas que talvez, agora não me sirvam. Quando, porém, abandono conhecimentos prévios, outro paradoxo, vou encontrando referências, me inserindo na situação e interagindo com ela. O que ocorre, entretanto, em estado-de-risco as referências vão se fazendo com a experiência e a vivência, e a bússola, assim como a posição da estrelas são criadas a cada instante. Ou não. Não há garantias.

Estado-de-risco é um conceito que procuro, na medida do possível, usar (viver) na clínica, na arte e na vida.
Ferreira Gullar diz que é “um contumaz inventor de teorias – algumas até foram levadas à sério como a Teoria do Não-Objeto; outras injustamente desconsideradas. Nem por isso desisto, tanto que uma de minhas teorias mais recentes é a de que uma das funções do artista é criar o maravilhoso (ou o surpreendente), pela simples razão de que não encontramos no mundo maravilhas em quantidade suficiente para satisfazer a fome de maravilha que habita as pessoas.(...)”. (Folha de São Paulo, E 12, 30 de Janeiro de 2005)

A “teoria do não-objeto”, me parece, surgiu em um encontro entre artistas e amigos, quando os neo-concretos buscavam conceitos que exprimissem aspectos das esculturas (inclassificáveis) de Ligia Clark. Vamos supor que o ambiente em que estavam era descontraído, sem censuras ou julgamentos, viviam um encontro onde, em estado-de-risco, podiam se arriscar. Winnicott chamou de transicional os espaços que não podem ser censurados, para que os paradoxos se preservem; levamos (ou não) para a vida adulta, os espaços transicionais. Nesses espaços estamos em estado-de-risco, e o novo pode (ou não) surgir. Não nos esqueçamos, sem garantias, porém, paradoxalmente, é quando não as temos que se pode criar. E a censura, bem sabemos, costuma estar muito em nós, podemos ser juízes horríveis para nós mesmos.

Os espaços transicionais estão entre alguém e outro alguém, entre o livro e o leitor, entre eu e o mundo, infindáveis entres. Acima mencionei que um dos recursos usados para ultrapassar as dicotomias sem suprimir as contradições, seria o autor se inserir na situação e/ou contexto que está trazendo, tornando-se não apenas parte dele, mas um de seus elementos constituintes, como um dos caracteres de um ideograma. Outro recurso poderoso seria usar espaços transicionais - como os intervalos entre a arte, a ciência e a vida, por exemplo.

Estado-de-risco é ao mesmo tempo um intervalo, um lugar, um espaço transicional, um estado de percepção e consciência, um conceito e objeto transicional. Ao mesmo tempo singular – pois cada estado-de-risco só poderia ser único, é também absolutamente plural, pelo siples motivo de encontrar-se e se disseminar na vida. Uma das perspectivas de trabalhar nos intervalos seria a inclusão da simultaneidade: muitos aspectos ocorrendo simultaneamente.
Gosto muito quando FG afirma que “uma das funções do artista é criar o maravilhoso (ou o surpreendente)”, pois, nós humanos também somos feitos de monstros, fadas, bruxas, animais fantásticos; mas para mim o surpreendente nessa afirmação de FG é que, quando criamos novas referências, experiencialmente, quando usamos e trans-criamos conceitos, quando freqüentamos o estado de risco, nos sentimos vivos.

Se não fizéssemos isso estaríamos submetidos todo o tempo a regras e referências apriori que existiram muito antes de nascermos e existirão (provavelmente) muito depois que nos formos. Assim, o surpreendente é também descobrir que não podemos criar a nós mesmo, nem ao mundo, mas podemos criar parcelas do mundo e parcelas de nós: a micro-política de Deleuze e Guattari.



Nenhum comentário: