12 junho, 2012

O tempo, o amor entre os deuses e a aurora




O Tempo entrou em cena entre o aflorar da intenção e o ato que se seguiu.


Com o despertar; com aquilo que faz existir, impõe se também o tempo, que faz desaparecer. Aquilo que faz existir e faz desaparecer, as duas potencias impalpáveis que precedem todas as outras, às quais retornamos todos, aparecem juntas, toda manhã, na figura daquela que é "a mais bela de todas", atrás da qual se entrevê um cortejo interminável de cópias, tão belas quanto ela.
E, paralelos a elas inúmeros rostos que a observam: os mortos, os nonatos. "Foram-se os mortais que viram resplandecer a primeira Aurora. Por nós agora ela se deixa contemplar. E eis que chegam aqueles que a verão nos tempos futuros."


Mas de que outra coisa se podeia cogitar? Brahma mergulhava em si mesmo e encontrava a melancolia de quem entende demais e não sabe a quem falar. Foi isso, exatamente, o que nele se iluminou.


Por que o simples fato de vê-la, tocava-o no único ponto onde sentia não possuir resistência?


Se em toda palavra se encerra o assassínio da coisa que espera desde sempre uma reparação, desses nomes emana uma substância macia e irradiante que em vão procuraremos entre as coisas que são. E mesmo nessa substância existe o indício de alguma reparação.


Tocaram-se na ponta dos dedos. Naquele instante Brahma compreendeu o que é o contato: um estremecimento e uma revelação.


Brahma estava taciturno, oprimido. Aqueles seus filhos nascidos da mente pareciam-lhe vazios, tolos. Não entenderiam nunca o que significa, o que pode significar - na condição de perigoso, incongruente, fugidio, louco, opaco - o existir. Eram nascidos da mente, possuíam leveza e mobilidade, mas não tinham mais consistência do que fogos-fátuos. O mundo corria o risco de permanecer para sempre como um farrapo de tecido macio e vaporoso, que oscila ao vento sem existir.


É difícil suportar a beleza da vida com você.


Sati teve a sensação de que seu corpo existia pela primeira vez. Sentiu não que Shiva penetrava nela, mas que Shiva abria-se para ela, como uma vasta cavidade e a acolhia em si.


O coito de Shiva e Sati durou vinte e cinco anos, sem que Shiva vertesse nela o sêmem. Como um elefante aprisionado, Shiva não podia se mexer senão tocando o corpo de Sati. Quando falavam, brincavam.


Durante a cerimônia nupcial um brâmane me sussurrou que você me aceitara só porque é devotado a seus devotos. Mas o que significa essa devoção? Quero o conhecimento." ... "A devoção por você não me basta", disse Sati. "Você não precisa dela. Você é eu. Esse é o conhecimento. Nada mais que três palavras", disse Shiva. "E você, o que é?", perguntou Sati, com súbita doçura, estudando seu amante. "Eu sou isto", disse Shiva. "O que é isto?", insistiu Sati, como uma menina teimosa. "Isto que faz saber que estamos falando. Mas não devemos falar mais", disse Shiva, e recomeçou a desfiar, lentamente, como centenas de outras vezes, os braceletes dos pulsos de Sati.


Também essa, que era uma ferida recente, aberta, atravessava suas fibras de um extremo a outro, parecera fazer parte dele desde sempre. Cada amante ama, antes de tudo, uma ausência. A ausência vem antes da presença na ordem hierárquica. A presença é apenas um caso particular de ausência. A presença é uma alucinação com certa durabilidade. Mas isso não diminui em nada a dor.


Parvati adora não entender. Para ela, o escuro era o que atraia acima de tudo. O que a circundava ali, ao contrário, era transparente demais. ... "Já é imenso só o prazer de vê-la", pensou Shiva. "Como será o de abraçá-la?"
(Fragmentos de Ka, de Roberto Galasso)




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Um comentário:

Kátia disse...

Mais um fragmento de ‘Ka’. Gostei tanto...

Deu uma vontade ler esse livro, acessar outros mundos, outras histórias, outras culturas.
Mas sei tão pouco desses milhares de deuses hinduístas. Será que entenderei?

... "Já é imenso só o prazer de vê-la", pensou Shiva. "Como será o de abraçá-la?"
Eita, deus poderoso! Hahahahahahahahaha.

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