05 março, 2010

Edgar Morin fala sobre a confiança e a desconfiança, fé e dúvida





Pensar autonomamente 
significa refletir na sua crença 
e na sua descrença,
na sua confiança 
e na sua desconfiança.


A cultura, que deveria permitir-nos
pensar por nós mesmos, leva-nos, demasiadas vezes a pensar "culturalmente",
de forma convencional e estereotipada, e assim, sem sabermos, somos submetidos
às crenças e descrenças, às confianças e desconfianças que são de regra.

 
Devemos portanto 
desconfiar 
das nossas confianças, 
sem por isso 
nos entregarmos 
às nossas desconfianças. 

Devemos também desconfiar 
da desconfiança, quando esta 
se torna suspeita generalizada 
que contesta as certezas 
mais fiáveis.

 
O que podemos fazer é estar conscientes do nosso dispositivo
de desconfianças/confianças, tentar conhecê-lo bem,
pô-lo a cada instante à prova e compreender que, em caso
de dificuldade, devemos ser prudentes em relação a uma e a outra.

Isso significa que é necessário apreender a desconfiança em relação
à confiança/desconfiança ingênua, para que essa desconfiança crítica
suscite então novos critérios de confiança.

Não podemos privar-nos de redes de confiança/desconfiança, mas em vez de
as aplicarmos a priori a todos os acontecimentos, deveríamos, pelo contrário,
precisamente em função dos acontecimentos, submetê-los e testes
verificadores.

Não existe nenhum lugar, nenhuma situação, nenhum problema onde possamos
escapar ao problema da confiança/desconfiança.
Não podemos viver nem na confiança generalizada, que nos leva a acreditar
em tudo, nem na desconfiança generalizada, que nos leva a crer que todos
conspiram para nos enganar.

Desde logo, devemos reconhecer 
que há sempre uma aposta, 
um risco,
uma incerteza, 
em tudo o que pensamos 
e acreditamos. 


Devemos conhecer
e reconhecer nosso próprio sistema 
e rede de desconfiança/confiança
e saber examiná-lo, 
ou seja, 
ao mesmo tempo 
examinar-nos.

 
Devemos deixar de opor absolutamente confiança e desconfiança, o que nos leva
a introduzir desconfiança potencial na confiança e desconfiança potencial
na desconfiança, isto é, incerteza numa e noutra, sem no entanto a incerteza
desintegrar uma e outra.

 
Não podemos evitar a desconfiança 
- a dúvida. 

Não podemos evitar a confiança 
- a crença.

 
A palavra "crer" tem dois sentidos opostos: no contexto de um pensamento
religioso, significa não só fé, mas também certeza e pode por isso significar
fanatismo e dogmatismo. No contexto do pensamento laico significa hipótese,
possibilidade, esperança. Mas mesmo nesse contexto pode e deve significar fé,
mas nesse caso uma fé que possa dialogar com a dúvida.

Toda fé comporta a sua dúvida (recalcada, secreta, desconhecida dela própria).
Toda a dúvida comporta a sua fé (recalcada, secreta, desconhecida).
Cada um dos dois termos comporta o outro em estado recessivo.

Vemos portanto:

1. Uma má alternativa fé/dúvida: a fé só conduz ao fanatismo, a dúvida só
conduz ao niilismo. Quantos males se devem ao excesso e à insuficiência de
crença!

2. Um círculo vicioso fé-dúvida, no qual a perda da fé conduz à dúvida,
tão desesperante que restitui à fé, por sua vez tão frágil que recambia
para a dúvida, e assim sucessivamente.

Para fugir à alternativa devemos reconhecer que toda fé comporta/recalca
uma dúvida e que toda dúvida comporta/recalca uma fé. Pra fugir ao circulo
vicioso devemos tentar estabelecer uma comunicação, um diálogo, melhor,
uma RELAÇÃO entre fé e dúvida.

                 (Edgar Morin)

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