25 agosto, 2009

Da amizade como modo de vida, ou sobre o devir homossexual: Michel Foucault e Felix Guattari dialogam aqui





Nessa bela entrevista, em vermelho no final desta postagem, Michel Foucault nos mostra que A amizade como modo de vida é uma possibilidade que está colocada para além das noções amplamente difundidas das identidades de gênero.

Digo está para além porque rompe exatamente com o vício de praticar relações verticais, ou seja, aquelas em que há uma dominância instituida pelo hegemônico masculino - e seus muitos representantes - e que se perpetua estabelecendo relações de poder. Nessas relações verticais há um que manda e outro que obedece; um que sabe e outro que não sabe; um que manipula e outro que se deixa manipular; um, que geralmente é homem e, outro, que geralmente, é mulher; um que é adulto e outro que é jovem, adolescente ou criança; um que é jovem e, portanto, mais sintonizado com as ferramentas que seu tempo lhe oferece e outro que é velho e, portanto, considerado ultrapassado, obsoleto... quando não... ultrapassado em suas ferramentas!

Abordando o homossexualismo como condição não identitária, o entrevistado mostra que é possível e desejável sair dos modos de representação dominante e midiático-institucionais e buscar outras maneiras de viver a vida e o desejo, os quais não necessariamente passam pela prática de atos sexuais, nesse caso, homossexuais.

Ora, isso é o que Felix Guattari chama de devir homossexual, um fluxo de força e energia que atravessa homens e mulheres hetero e homo desejantes que estejam abertos para relações horizontais, ou seja, nesse caso, aquelas em que está fora de foco e de centro a prática da hierarquia vertical. Relações permeadas por uma "igualdade" que não é somente semelhante, mas que pruduz diferenciação no extrato e no imaginário social enquanto práticas , atitudes e ações desinstitucionalizantes, ou para usar outra palavra igualmente longa e complicada: desterritorializantes.

Vivemos em territórios imaginários, identitários e instituidos tidos como corretos, certos e inquestionáveis: desejo de absoluto e medo do novo.
Na desterritorialização promovida pelo devir homossexual, ou por qualquer outro devir, há um novo que se anuncia como quebra das práticas instituidas nas relações interpessoais... que possibilita outra inserção social, afetiva e existencial entre as pessoas: desejo de mudança que aciona o medo de perder o conhecido, estável e supostamente seguro.

Entre esses dois medos, o de ser engolfado pelo novo (e virar gay) e o de perder a estabilidade segura, produzem-se novas maneiras de viver, amar e gostar da vida e das pessoas sem a ditadura de sexualidade, sem a necessidade de definições que enclausurem o desejo de vida à uma identidade de gênero.

Guattari é muito claro em seu texto contido no Micropolítica Cartogradias do Desejo, quando fala das diferenças entre identidade e singularidade.
ele diz assim:

"Identidade e singularidade são duas coisas completamente diferentes.
A singularidade é um conceito existencial; já a identidade é um conceito
de referenciação, de circunscrição da realidade a quadros de
referência, quadros esses que podem ser imaginários.
Essa referenciação vai desembocar tanto no que os freudianos
chamam de processo de identificação, quanto nos procedimentos policiais,
no sentido da identificação do indivíduo - sua carteira, de identidade,
sua impressão digital, etc. Em outras palavras, a identidade é aquilo
que faz passar a singularidade de diferentes maneiras de existir por
um só e mesmo quadro de referência identificável. Quando vivemos
nossa existência, nós a vivemos com as palavras de uma língua que
pertence a cem milhões de pessoas;nós a vivemos com um sistema
de trocas econômicas que pertence a todo um campo social;
nós a vivemos com representações de modos de produção
totalmente serializados. No entanto, nós vamos morrer e viver
numa relação totalmente singular com esse cruzamento.
O que é verdadeiro para qualquer processo de criação
é verdadeiro para a vida." (p.68 e 68)


Ele diz ainda:

O traço comum, entre os diferentes processos de singularização
é um devir diferencial que recusa a subjetivação capitalística.
Isso se sente por um calor nas relações, por determinada maneira de desejar,
por uma afirmação positiva da criatividade, por uma vontade de amar,
por uma vontade de simplesmente viver ou sobreviver,
pela multiplicidade dessas vontades. É preciso abrir espaço para que isso aconteça.
O desejo só pode ser vivido em vetores de singularidade. (p.47)

Guattari nos diz, também que "... todas as relações são trabalhadas pelo devir homossexual." (p.73)

Assim, voltando á entrevista de Michel Foucault, podemos nos perguntar:

- O que tem a amizade haver com sexo, sexualidade?
- O que tem a amizade a ver com homossexualismo... ou heterossexualismo (sou estranho, não soa?)
- E, principalmente: o que amizade como forma de vida tem a ver com devir homossexual?

Vou me deter a responder alguns aspectos da terceira dessas perguntas.
Ainda é comum ouvirmos que "homens não choram" (alguém duvida de que isso ainda exista... basta passar alguns dias com crianças numa escola em Educação Infantil e/ou participar de uma reunião de pais, especialmente quando os próprios pais, gênero masculino, estão presentes); "você não pode ser um frouxo, um sensível, um mole" (palavras dirigidas a Tarso, pelo seu pai, na novela Global "Caminho das Índias); "não é possível haver uma amizade verdadeira entre homens e mulheres porque, inevitavelmente, eles vão acabar na cama, não tem como... evitar e, daí, estraga a relação..."

Frases como essas, de cunho sexista e identitário estão sendo ditas, repetidas... aos milhões, todos os dias.
Elas são alguns dos inimigos públicos e privados do devir... de todos os devires.
São também os inimigos invisíveis e ocultos, porque, na sua aparição-sem-questionamentos ficam e ganham força de perpetuação nos processos de subjetivação institucional midiáticos vigentes.
Isso só para falar nos exemplos mais grosseiros, corriqueiros e autoevidentes.

Também sabemos das tentativas, quase sempre infrutíferas, mas, ocasionalmente trágicas de casais gays, homens e mulheres, de constituir uma união estável-familiar-economica-instituida... exatamente nos moldes das familias "heteroxessuais"... desejos de absoluto que não dão passagem ao devir... e nem às amizades, no sentido que estou abordando aqui, porque formam... guetos, redutos, repetições... 'do mesmo'... que querem combater e modificar.
O mesmo acontece com os punks, darks, blacks e todas as tribos que não são permeadas pelos devires, nesse caso, o devir homossexual.

Ora, como pode um devir homossexual, cósmico, molecular, mulher, planta, animal, sensibilidades atípicas, ou qualquer outro, furar esse estado das coisas e instituir algo... diferente... disso?

Ora, o devir homossexual tem tudo a ver com a amizade, na medida em que ele, atravessando sujeitos abertos e desejantes de novos e diferentes modos de existência... permite outras práticas... mais horizontais e transversais, marcadamente aquelas que NÃO repetem modelos pré fabricados e automatizados por práticas viciadas e viciantes de se relacionar com a própria ( e a do outro) identidade (de gênero, espiritual, profissional, familiar, de vizinhança...)

O modo de vida homossexual ao qual se refere Foucault muito pouco ou quase nada, o que dá no mesmo, tem a ver com a prática sexual, o coito, o homoerotismo, embora eles possam estar presentes nas relações de amizade.

A amizade como modo de vida me parece ser uma possibilidade linda de simplesmente ser/estar em relação ao outro, independente do sexo desse outro, mas na dependência da eroticidade desse outro e no que ela, essa eroticidade-poética, mais do que carnal, desperta e afeta em... ambos!

Uma amizade assim constituída permite intimidades, sociabilidades, práticas profissionais, relacionamentos com "papéis sociais" completamente fora da hierarquia dominadora-dominante e institui diálogos (e não mais monólogos familiares e conjugais) desfamiliarizados e tidos como óbvios; abre espaços inéditos de questionamento, discordância e posicionamento em relação às diferenças... que, nesse caso, agora são estimuladas, desejadas e preservadas como um ninho de acolhimento do novo... novo esse que é co-produzido numa rede mutável de intensidades concreto-abstratas em cada encontro.


Esse devir homossexual está ligado à curiosidade, ao descobrimento, ao entendimento, ao aprendizado acerca de mim, do outro e da NOSSA RELAÇÃO... na contramão do controle... vertical, neurótico e instituido.

Não é lindo?

Cesar RK - Cerriky


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Abaixo o texto-entrevista de Foucauld.




Da amizade como modo de vida

De l'amitié comme mode de vie. Entrevista de Michel Foucault a R. de Ceccaty, J. Danet e J. le Bitoux, publicada no jornal Gai Pied, nº 25, abril de 1981, pp. 38-39. Tradução de wanderson flor do nascimento.


– Você tem cinquenta anos. É um leitor deste jornal que existe há dois anos. O conjunto destes discursos te parece algo de positivo?

Que o jornal exista, é algo de positivo e importante. Ao seu jornal, o que eu pediria era que, lendo, eu não tivesse que colocar a questão da minha idade. Ora, a leitura me força a colocá-la. E eu não fiquei muito contente com a maneira que fui levado a fazê-lo. Muito simplesmente, eu não teria lugar ali.

- Quem sabe o problema seja da faixa etária dos que colaboram e dos que lêem: uma maioria entre 25 e 35 anos.

É claro. Quanto mais escrito por pessoas jovens, mais diz respeito às pessoas jovens. Mas o problema não é ceder lugar a uma faixa etária de um lado a outro, mas saber o que se pode fazer em relação à quase identificação da homossexualidade com o amor entre jovens.

Outra coisa da qual é preciso desconfiar é a tendência de levar a questão da homossexualidade para o problema "Quem sou eu? Qual o segredo do meu desejo?" Quem sabe, seria melhor perguntar: "Quais relações podem ser estabelecidas, inventadas, multiplicadas, moduladas através da homossexualidade?" O problema não é descobrir em si a verdade sobre seu sexo, mas, para além disso, usar de sua sexualidade para chegar a uma multiplicidade de relações. E isso, sem dúvida é a razão pela qual a homossexualidade não é uma forma de desejo, mas algo de desejável. Temos que nos esforçar em nos tornar homossexuais e não nos obstinarmos em reconhecer que o somos. O lugar para onde caminha os desenvolvimentos do problema da homossexualidade é o problema da amizade.

- Você pensou isso aos 20 anos ou descobriu no decorrer dos anos?

Tão longe quanto me recordo, desejar rapazes é desejar relações com rapazes. E isso foi sempre, para mim, algo importante. Não forçosamente sob a forma do casal, mas como uma questão de existência: Como é possível para homens estarem juntos? Viver juntos, compartilhar seus tempos, suas refeições, seus quartos, seus lazeres, suas aflições, seu saber, suas confidências? O que é isso de estar entre homens "nus", fora das relações institucionais, de família, de profissão, de companheirismo obrigatório? É um desejo, uma inquietação, um desejo-inquietação que existe em muitas pessoas.

- Pode-se dizer que a relação com o desejo, com o prazer e a relação que alguém pode ter, seja dependente de sua idade?

Sim, muito profundamente. Entre um homem e uma mulher mais jovem, a instituição facilita as diferenças de idade, as aceita e as faz funcionar. Dois homens de idades notavelmente diferentes, que código têm para se comunicar? Estão um em frente ao outro sem armas, sem palavras convencionais, sem nada que os tranquilize sobre o sentido do movimento que os leva um para o outro. Terão que inventar de A a Z uma relação ainda sem forma que é a amizade: isto é, a soma de todas as coisas por meio das quais um e outro podem se dar prazer.
É uma das concessões que se fazem aos outros de apenas apresentar a homossexualidade sob a forma de um prazer imediato, de dois jovens que se encontram na rua, se seduzam por um olhar, que põem a mão na bunda um do outro, e devaneando por um quarto de hora. Esta é uma imagem comum da homossexualidade que perde toda a sua virtualidade inquietante por duas razões: ela responde a um cânone tranqüilizador da beleza e anula o que pode vir a inquietar no afeto, carinho, amizade, fidelidade, coleguismo, companheirismo, aos quais uma sociedade um pouco destrutiva não pode ceder espaço sem temer que se formem alianças, que se tracem linhas de força imprevistas. Penso que é isto o que torna "perturbadora" a homossexualidade: o modo de vida homossexual muito mais que o ato sexual mesmo. Imaginar um ato sexual que não esteja conforme a lei ou a natureza, não é isso que inquieta as pessoas. Mas que indivíduos comecem a se amar, e ai está o problema. A instituição é sacudida, intensidades afetivas a atravessam, ao mesmo tempo, a dominam e perturbam. Olhe o exército: ali o amor entre homens é, incessantemente, convocado e honrado. Os códigos institucionais não podem validar estas relações das intensidades múltiplas, das cores variáveis, dos movimentos imperceptíveis, das formas que se modificam. Estas relações instauram um curto-circuito e introduzem o amor onde deveria haver a lei, a regra ou o hábito.

- Você diz a todo momento: "mais que chorar por prazeres esfacelados, me interessa o que podemos fazer de nós mesmos". Poderia explicar melhor?

O ascetismo como renúncia ao prazer tem má reputação. Porém a ascese é outra coisa. É o trabalho que se faz sobre si mesmo para transformar-se ou para fazer aparecer esse si que, felizmente, não se alcança jamais. Não seria este o nosso problema hoje? Nós colocamos o ascetismo de férias. Temos que avançar sobre uma ascese homossexual que nos faria trabalhar sobre nós mesmos e inventar – não digo descobrir – uma maneira de ser, ainda improvável.

- Isso quer dizer que um jovem homossexual deveria ser muito prudente em relação à imagem homossexual e trabalhar sobre outra coisa?

Isso no que devemos trabalhar, me parece, não é tanto em liberar nossos desejos, mas em tornar a nós mesmos infinitamente mais suscetíveis a prazeres. É preciso, insisto, é preciso fazer escapar às duas fórmulas completamente feitas sobre o puro encontro sexual e sobre a fusão amorosa das identidades.

- Podem-se ver premissas de construções relacionais fortes nos EUA, sobretudo, nas cidades onde o problema da miséria sexual parece resolvido?

O que me parece certo é que nos EUA, mesmo se no fundo a miséria sexual ainda exista, o interesse pela amizade está se tornando muito importante. Não se entra simplesmente na relação para poder chegar à consumação sexual, o que se faz muito facilmente; mas aquilo para o que as pessoas são polarizadas é a amizade. Como chegar, por meio das práticas sexuais, a um sistema relacional? É possível criar um modo de vida homossexual?

Esta noção de modo de vida me parece importante. Não seria preciso introduzir uma diversificação outra que não aquela devida às classes sociais, diferenças de profissão, de níveis culturais, uma diversificação que seria também uma forma de relação e que seria "o modo de vida"? Um modo de vida pode ser partilhado por indivíduos de idade, estatuto e atividade sociais diferentes. Pode dar lugar a relações intensas que não se pareçam com nenhuma daquelas que são institucionalizadas e me parece que um modo de vida pode dar lugar a uma cultura e a uma ética. Acredito que ser gay não seja se identificar aos traços psicológicos e às máscaras visíveis do homossexual, mas buscar definir e desenvolver um modo de vida.

- Não é uma mitologia dizer: "Aí estejam, talvez, as premissas de uma socialização entre os seres, que é inter-classes, inter-idades, inter-nacionais?"

Sim, um grande mito como dizer: não haverá mais diferenças entre a homossexualidade e a heterossexualidade. Por outro lado, penso que é uma das razões pelas quais a homossexualidade se torna um problema atualmente. Acontece que a afirmação de que ser homossexual é ser um homem e que este se ama, esta busca de um modo de vida vai ao encontro desta ideologia dos movimentos de liberação sexual dos anos sessenta. Nesse sentido os "clones" bigodudos têm uma significação. É um modo de responder: "Não receiem nada, quanto mais se seja liberado, menos se amará as mulheres, menos se fundirá nesta polissexualidade onde não há mais diferença entre uns e outros." E não se trata, de modo algum, da idéia de uma grande fusão comunitária.
A homossexualidade é uma ocasião histórica de reabrir virtualidades relacionais e afetivas, não tanto pelas qualidades intrínsecas do homossexual, mas pela posição de "enviesado", em qualquer forma, as linhas diagonais que se podem traçar no tecido social, as quais permitem fazer aparecerem essas virtualidades.

- As mulheres poderiam objetar: "O que é que os homens ganham entre eles e ganham em relação às relações possíveis entre um homem e uma mulher ou entre duas mulheres?”

Há um livro que apareceu nos EUA sobre a amizade entre as mulheres (Faderman, L. Surpassing the Love of Men. New York: William Marrow, 1980). É muito bem documentado a partir de testemunhos de relações de afeição e paixão entre mulheres. No prefácio, a autora diz que ela havia partido da idéia de detectar as relações homossexuais e se deu por conta de que essas relações não somente não estavam sempre presentes, mas que não era interessante saber se se poderia chamar a isso de homossexualidade ou não. E que, deixando a relação desdobrar-se tal como ela aparece nas palavras e nos gestos, apareceriam outras coisas bastante essenciais: amores, afetos densos, maravilhosos, ensolarados ou mesmo, muito tristes, muito obscuros. Este livro mostra também em que ponto o corpo da mulher desempenhou um grande papel e os contatos entre os corpos femininos: uma mulher penteia outra mulher, ela se deixa maquiar e vestir. As mulheres teriam direito ao corpo de outras mulheres, segurar pela cintura, abraçar-se. O corpo do homem estava proibido ao homem de maneira mais drástica. Se é verdade que a vida entre mulheres era tolerada, é somente em certos períodos e a partir do séc. XIX que a vida entre homens foi, não somente tolerada, mas rigorosamente obrigatória: simplesmente durante as guerras.

Igualmente nos campos de prisioneiros. Havia soldados, jovens oficiais que passaram meses, anos juntos. Durante a guerra de 1914, os homens viviam completamente juntos, uns sobre aos outros, e, para eles isso não era nada, na medida em que a morte estava ali; e de onde finalmente a devoção de um ao outro, o serviço feito era sancionado por um jogo de vida e morte. Fora algumas frases sobre o coleguismo, sobre a fraternidade da alma, de alguns testemunhos muito parciais, o que se sabe sobre furacões afetivos, sobre essas tempestades do coração que puderam haver ali nesses momentos? E alguém pode perguntar o faz que nessas guerras absurdas, grotescas, nesses massacres infernais, que as pessoas, apesar de tudo, tenham se sustentado? Sem dúvida, um tecido afetivo. Não quero dizer que era porque eles estavam amando uns aos outros que continuavam combatendo. Mas a honra, a coragem, a dignidade, o sacrifício, sair da trincheira com o companheiro, diante do companheiro, isso implicava uma trama afetiva muito intensa. Isto não quer dizer:

"Ah, está ai a homossexualidade!" Detesto este tipo de raciocínio. Mas sem dúvida se tem ai uma das condições, não a única, que permitiu suportar essa vida infernal em que as pessoas, durante semanas, rolassem no barro, entre os cadáveres, a merda, se arrebentassem de fome; e estivessem bêbadas na manhã do ataque.
Eu queria dizer, enfim, que qualquer coisa refletida e voluntária, como uma publicação, deveria tornar possível uma cultura homossexual, isto é, possibilitar os instrumentos para relações polimorfas, variáveis, individualmente moduladas. Mas a idéia de um programa e de proposições é perigosa. Desde que um programa se apresenta, ele faz lei, é uma proibição de inventar. Deveria haver uma inventividade própria de uma situação como a nossa e que estas vontades disso que os americanos chamam de comming out, isto é, de se manifestar. O programa deve ser vazio. É preciso cavar para mostrar como as coisas foram historicamente contingentes, por tal ou qual razão inteligíveis, mas não necessárias. É preciso fazer aparecer o inteligível sob o fundo da vacuidade e negar uma necessidade; e pensar o que existe está longe de preencher todos os espaços possíveis. Fazer um verdadeiro desafio inevitável da questão: o que se pode jogar e como inventar um jogo?

- Obrigado, Michel Foucault.