25 julho, 2010

J de Joie [Alegria], por Gilles Deleuze, ou sobre as potências, contrárias à culpa e ao poder



CP: J de Joie [Alegria]. É um conceito do qual você gosta muito, pois é um conceito de
Spinoza, que tornou a alegria um conceito de resistência e vida. “Evitemos as paixões
tristes e vivamos com alegria para ter o máximo de nossa potência; fugir da resignação, da
má-consciência, da culpa e de todos os afectos tristes que padres, juízes e psicanalistas
exploram”. Entende-se perfeitamente do que você gosta nisso tudo. Gostaria que
distinguisse a alegria da tristeza e definisse o que é a distinção de Spinoza. Você descobriu
alguma coisa no dia em que leu isso?

GD: Sim, porque são os textos mais extraordinariamente carregados de afectos em Spinoza.
Vou simplificar muito, mas quero dizer que a alegria é tudo o que consiste em preencher
uma potência. Sente alegria quando preenche, quando efetua uma de suas potências.
Voltemos aos nossos exemplos: eu conquisto, por menor que seja, um pedaço de cor. Entro
um pouco na cor.
Pode imaginar a alegria que isso representa? Preencher uma potência é isso, efetuar uma
potência. Mas o que é equívoco é a palavra “potência”. E o que é a tristeza? É quando estou
separado de uma potência da qual eu me achava capaz, estando certo ou errado.
“Eu poderia ter feito aquilo, mas as circunstâncias... não era permitido, etc.” É aí que ocorre
a tristeza. Qualquer tristeza resulta de um poder sobre mim.

CP: Você estava falando sobre a oposição alegria/tristeza.

GD: Eu dizia que efetuar algo de sua potência é sempre bom. É o que diz Spinoza. Mas isso
traz problemas. É preciso especificar que não existem potências ruins. O que é ruim não é...
O ruim é o menor grau de potência. E este grau é o poder. O que é a maldade? É impedir
alguém de fazer o que ele pode, é impedir que este alguém efetue a sua potência. Portanto,
não há potência ruim, há poderes maus. E talvez todo poder seja mau por natureza. Não,
talvez seja muito fácil dizer isso. Mas mostra bem a idéia da ... A confusão entre poder e
potência é arrasadora, porque o poder sempre separa as pessoas que lhe estão submissas,
separa-as do que elas podem fazer. Tanto que foi deste ponto que partiu Spinoza. Como
você citou: “A tristeza está ligada aos padres, aos tiranos...”

CP: Aos juízes.

GD: São pessoas que separam seus sujeitos do que eles podem, que proíbem as efetuações
de potência. Curiosamente, há pouco, você falou da reputação de anti-semitismo de
Nietzsche. Neste exemplo, vê-se esta questão muito importante. Há textos de Nietzsche que
poderiam parecer preocupantes se são lidos muito rapidamente, e não da forma como
propomos que os filósofos sejam lidos. Em todos os textos em que fala do povo judeu, o
que Nietzsche critica nele? O que fez com que, em seguida, dissessem que Nietszche era
um anti-semita. É interessante, pois o que ele repreende no povo judeu, em condições
específicas, é o fato deste povo ter inventado um personagem que não existia antes: o
padre. Eu não conheço nenhum texto de Nietzsche a respeito dos judeus na forma de um
ataque. O ataque é contra o povo que inventou o padre. Segundo ele, nas outras formações
sociais, existem feiticeiros, escribas, mas nenhum deles é a mesma coisa que o padre. Eles
inventaram uma coisa impressionante e Nietzsche, que tem grande força filosófica, não
deixou de admirar o que detesta, ele disse: “Mas é incrível ter inventado o padre. É uma
coisa prodigiosa”. Em seguida, fez a ligação direta dos judeus com os cristãos. Só não é o
mesmo tipo de padre. Os cristãos conceberam outro tipo de padre e continuaram no mesmo
caminho: com o personagem do sacerdote. Pode-se ver o quanto a filosofia é concreta. Eu
diria que Nietzsche é o primeiro filósofo a ter inventado, criado o conceito de padre. E, a
partir daí, trouxe um problema fundamental que é: em que consiste o poder sacerdotal?
Qual é a diferença entre o poder sacerdotal e o poder real? Estas são questões ainda muito
atuais. Pouco antes de sua morte, Foucault tinha encontrado a mesma coisa, só que com
seus próprios meios. Aí, poderíamos retomar tudo sobre o que é prolongar a filosofia.
Foucault também sugere um poder pastoral, um novo conceito diferente mas que, ao
mesmo tempo, se encaixa no de Nietzsche. Por aí, existe uma história do pensamento. E o
que é este poder de padre e em que está ligado à tristeza? Segundo Nietzsche, o padre se
define desta forma: ele inventou a idéia de que os homens estão num estado de dívida
infinita. Eles têm uma dívida infinita. Antes, havia histórias de dívida, mas Nietzsche
precedeu todos os etnólogos. Aliás, os etnólogos deveriam ler Nietzsche. Eles descobriram
bem depois de Nietzsche que, nas sociedades primitivas, havia permutas de dívidas. Não
funcionava tanto através da troca, como se pensava, mas por partes de dívidas: uma tribo
tinha uma dívida para com outra tribo, etc. Eram blocos de dívidas finitas: eles recebiam e
devolviam. A diferença com a troca é que havia a realidade do tempo. Era uma restituição
diferida. É importante! A dívida precede a troca. São questões filosóficas: a permuta, a
dívida, a dívida que precede a troca. É um grande conceito filosófico. Digo filosófico
porque Nietzsche disse antes dos etnólogos. Mas enquanto as dívidas têm este regime
finito, o homem pode se libertar. O padre judeu invoca, pois, em virtude de uma Aliança, a
idéia de uma dívida infinita do povo judeu para com Deus, e os cristãos retomam esta idéia
de outra forma, a idéia de dívida infinita ligada a do pecado original. O personagem do
padre é muito curioso. E cabe à Filosofia fazer o conceito. Não digo que a Filosofia seja
atéia, mas, no caso de Spinoza que já tinha esboçado uma análise do padre, do padre judeu
no Tratado Teológico-Político, pode acontecer que conceitos filosóficos sejam verdadeiros
personagens. É por isso que a Filosofia é tão concreta. Fazer o conceito do padre é como
algum artista faria o quadro ou o retrato do padre. O conceito do padre trazido por Spinoza,
por Nietzsche e, depois, por Foucault, forma uma linhagem apaixonante. Eu também
gostaria de entrar nesta linha e ver que poder pastoral é esse. Dizem que ele não funciona
mais, mas quem o substituiu? A psicanálise é um novo avatar do poder pastoral. Em que ele
se define? Os padres não são a mesma coisa que os tiranos, mas eles têm em comum o fato
de manterem-se no poder através das paixões tristes que eles inspiram aos homens. Do tipo:
“Arrependam-se em nome da dívida infinita, você é objeto da dívida infinita”. Por esse
caminho, eles têm poder! O poder é sempre um obstáculo diante da efetuação das
potências. Eu diria que todo poder é triste. Mesmo se aqueles que o detêm se alegram em
tê-lo. Mas é uma alegria triste. Sim, existem alegrias tristes. Mas a alegria é uma efetuação
das potências. Eu repito: não conheço nenhuma potência má. O tufão é uma potência.
Alegra-se na alma, mas não por derrubar casas, mas simplesmente por ser. Regozijar-se é
estar alegre pelo que somos, por ter chegado onde estamos. Não se trata da alegria de si
mesmo, isto não é alegria, não é estar satisfeito consigo mesmo. É o prazer da conquista,
como dizia Nietzsche. Mas a conquista não consiste em servir pessoas. A conquista é, para
o pintor, conquistar a cor. Isso sim é uma conquista. Neste caso, é a alegria. Mesmo que
isso não termine bem, pois nestas histórias de potência, quando se conquista uma potência,
ela pode ser potente demais para a própria pessoa e ela acaba não suportando. Van Gogh!

CP: Agora, uma pergunta subsidiária: você, que escapou da dívida infinita, por que se
queixa da manhã à noite e é um defensor do lamento e da elegia?

GD: Esta é uma pergunta pessoal. Sim, eu sempre gostei da elegia. Ela é uma das duas
fontes da poesia, uma das principais fontes da poesia. É o grande lamento. Há uma grande
história a ser feita sobre a elegia. Não sei se já foi feita, mas é muito interessante. Há o
lamento do profeta. O profetismo é inseparável do lamento. O profeta é aquele que se
lamenta e diz: “Mas por que fui escolhido por Deus? O que eu fiz para ser escolhido por
Deus?” Neste sentido, ele é o contrário do padre. Ele se queixa do que acontece com ele. O
que significa: “É grande demais para mim”. Eis o que é a queixa: “O que está acontecendo
comigo é grande demais para mim”. Aceitando, pois, o lamento, o que nem sempre se vê,
pois não é só “Ai, ai, que dor!”, mas também pode ser. Aquele que se queixa nem sempre
sabe o que está querendo dizer. A velha senhora que se queixa de seu reumatismo está, na
verdade, querendo dizer: “Que potência está se apoderando da minha perna e que é grande
demais para que eu a suporte?” Se formos procurar na História, é muito interessante, pois a
elegia é, antes de tudo, a fonte da poesia. É a única poesia latina. Na época, eu lia muito os
grandes poetas latinos Catulo, Tibúrcio e outros. São poetas prodigiosos. O que é a elegia?
Acho que é a expressão daquele que não tem mais um estatuto social, temporariamente ou
não. É por isso que é interessante. Um pobre velho se queixa. Um homem nas galés se
queixa. Não tem nada a ver com tristeza, é a reivindicação. Há uma coisa na queixa que é
impressionante. Existe uma adoração na queixa, é como uma oração. Os queixumes
populares, tudo... A queixa do profeta, a de um tema que você conhece bem, que é a queixa
do hipocondríaco. O hipocondríaco é alguém que se lamenta. E as queixas do
hipocondríaco são bonitas: “Por que tenho um fígado? Por que tenho um baço?” Não é o
“Ai, como dói!”, e sim “Por que tenho órgãos?” Por que isso, por que aquilo... O lamento é
sublime! O queixume popular, o lamento do assassino, que é cantado pelo povo... São os
excluídos sociais que estão em situação de lamento. Há um especialista húngaro chamado
Tökel, que fez um estudo sobre a elegia chinesa no qual mostra que a elegia chinesa é,
acima de tudo, animada por aquele que não tem mais estatuto social, um escravo livre. Um
escravo ainda tem um estatuto, por mais desgraçado que seja. Pode ser infeliz e espancado,
mas tem um estatuto social. Mas há períodos em que o escravo livre não tem estatuto
social, ele está fora de tudo. Deve ter sido assim para a geração dos negros na América com
a abolição da escravidão. Quando houve a abolição ou então na Rússia, não tinham previsto
um estatuto social para eles e foram excluídos. Interpretam erroneamente como se eles
quisessem voltar a ser escravos! Eles não tinham estatuto. É neste momento que nasce o
grande lamento. Mas não é pela dor, é uma espécie de canto e é por isso que é uma fonte
poética. Se eu não fosse filósofo e fosse mulher, eu gostaria de ter sido uma carpideira. A
carpideira é uma maravilha porque o lamento cresce. É toda uma arte! Além do mais, tem
um lado pérfido: não se queixe por mim, não me toque. É um pouco como as pessoas
demasiadamente polidas. Pessoas querendo ser cada vez mais polidas. Não me toque! Há
uma espécie de... A queixa é a mesma coisa: “não tenha pena de mim, disso cuido eu”. Mas
ao cuidar disso, a queixa se transforma. E voltamos à questão de algo ser grande demais
para mim. A queixa é isto. Eu bem que gostaria de todas as manhãs sentir que o que vivo é
grande demais para mim porque seria a alegria em seu estado mais puro. Mas deve-se ter a
prudência de não exibi-la, pois há quem não goste de ver pessoas alegres. Deve-se escondêla
em um tipo de lamento. Mas este lamento não é só a alegria, também é uma inquietude
louca. Efetuar uma potência, sim, mas a que preço? Será que posso morrer? Assim que se
efetua uma potência, coisas simples como um pintor que aborda uma cor, surge esse temor.
Ao pé da letra, afinal, acho que não estou fazendo Literatura quando digo que a forma
como Van Gogh entrou na cor está mais ligada à sua loucura do que fazem supor as
interpretações psicanalíticas, e que são as relações com a cor que também interferem.
Alguma coisa pode se perder, é grande demais. Aí está o lamento: é grande demais para
mim. Na felicidade ou na desgraça... Em geral, na desgraça. Mas isso é detalhe.

CP: Foi uma ótima resposta. Vamos à letra K de Kant!

GD: Aí tem menos graça.

CP: Sinto que esta vai ser rápida.


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