11 outubro, 2009

A invenção da infância, por Juremir Machado da Silva





Crédito:
ARTE RODRIGO VIZZOTTO

A invenção da infância

Alguns livros marcam a gente para sempre. Do meu tempo de estudante de Antropologia, cuja rica bibliografia não esqueci, guardei especialmente duas obras: "O Grande Massacre de Gatos", de Robert Darnton, e "História Social da Criança e da Família", de Philippe Ariès. A tese de Ariès surgiu para mim, na época, como uma bomba: a infância é uma invenção recente. Outro livro, que também li naqueles dias, havia provocado um choque em mim: "O Mito do Amor Materno", de Elisabeth Badinter. Convidado a dar uma palestra em Florianópolis sobre infância e mídia, revivi tudo isso. Ariès via-se como um historiador no meio da rua, disposto a ler o passado a partir das urgências do presente. Seduziu-me.

No passado, as crianças morriam como moscas. Ariès escreveu algumas frases que me sacudiram: "Ninguém pensava em conservar o retrato de uma criança que tivesse sobrevivido e se tornado adulta ou que tivesse morrido pequena. No primeiro caso, a infância era apenas uma fase sem importância, que não fazia sentido fixar na lembrança; no segundo, o da criança morta, não se considerava que essa coisinha desaparecida tão cedo fosse digna de lembrança". Foi só no século XVII que a ideia de inocência infantil ganhou força e a nudez se tornou obrigatória nos retratos de crianças. Tudo é cultura. A história molda a natureza até a natureza reagir e tudo devorar. Ariès seguiu a construção da infância. Ele destaca que até o século XIII não havia qualquer diferença entre o vestuário dos adultos e o das crianças.

Estamos de volta ao século XIII. Cada vez mais cedo, as meninas vestem-se como pequenas adultas. Cada vez mais, as quarentonas vestem-se como adolescentes. A história, pelo jeito, é cíclica. No século XIV, os homens passaram a usar trajes curtos e até colantes. Os moralistas denunciaram a indecência dos novos tempos. Nada de novo no front. Era o começo de uma lenta evolução até o fio-dental. Até por volta de 1600, meninos e meninas brincavam de boneca. Mais um retorno. A duração da infância também é tema controvertido. Houve tempo em que acabava, no máximo, por volta dos 7 anos. Depois, tornou-se mais longa. Hoje, vivemos um interessante paradoxo: a sexualidade voltou a começar mais cedo, embora a infância e a adolescência durem cada vez mais.

No século XIX, a infância recuou. O trabalho infantil devorou o tempo de inocência dos mais pobres. Ariès anotou: "Existe, portanto, um notável sincronismo entre a classe de idade moderna e a classe social: ambas nasceram ao mesmo tempo, no fim do século XVIII, e no mesmo meio: a burguesia". Nesse lento processo de reorganização social, "a família e a escola retiraram juntas a criança da sociedade dos adultos". A escola, porém, "confinou uma infância outrora livre num regime disciplinar cada vez mais rigoroso, que nos séculos XVIII e XIX resultou no enclausuramento total no internato". Há quem sinta saudades dessa "tradição". Agora, na sociedade do lazer, é preciso que a criança seja um pequeno adulto, para consumir mais, e que o adulto seja uma eterna criança, para ter direito ao consumo sem utilidade.

Juremir Machadoda Silva | juremir@correiodopovo.com.br

Fonte: Correio do Povo 11 DE OUTUBRO DE 2009

Um comentário:

Kátia disse...

"Agora, na sociedade do lazer, é preciso que a criança seja um pequeno adulto, para consumir mais, e que o adulto seja uma eterna criança, para ter direito ao consumo sem utilidade."

Sociedade do consumo... rs rs
Tristemente, uma 'largueza' cada vez maior.

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