10 outubro, 2009

Novas figuras do caos mutações da subjetividade contemporânea, Por Suely Rolnik








In Caos e Ordem na Filosofia e nas Ciências, org. Lucia Santaella e Jorge Albuquerque Vieira. Face e Fapesp, São Paulo, 1999; pp. 206-21.

Novas figuras do caos mutações da subjetividade contemporânea*

Suely Rolnik


A palavra “caos” é das mais pronunciadas na atualidade. Tema cult de congressos, livros de divulgação científica, artigos de jornal e até programas de TV, fala-se de caos em todos os campos da cultura. Com certeza, não se trata de um mero modismo, mas de uma exigência que a realidade contemporânea vem nos colocando: enfrentar o caos, repensá-lo, reposicionar-se diante dele - mesmo que muitas vezes a insistente evocação dessa palavra vise, pelo contrário, evitar tal enfrentamento e conjurar o pavor que o caos certamente mobiliza. Que mudanças se estariam operando nas subjetividades, hoje, para levá-las a revisar seu conceito de caos e de ordem, assim como da relação entre ambos?

Primeiro, duas palavras acerca da noção de subjetividade. Todo ambiente sócio-cultural é feito de um conjunto dinâmico de universos. Tais universos afetam as subjetividades, traduzindo-se como sensações que mobilizam um investimento de desejo em diferentes graus de intensidade. Relações se estabelecem entre as várias sensações que vibram na subjetividade a cada momento, formando constelações de

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forças cambiantes. O contorno de uma subjetividade delineia-se a partir de uma composição singular de forças, um certo mapa de sensações. A cada novo universo que se incorpora, novas sensações entram em cena e um novo mapa de relações se estabelece, sem que mude necessariamente a figura através da qual a subjetividade se reconhece. Contudo, à medida em que mudanças deste tipo acumulam-se, pode tornar-se excessiva a tensão entre as duas faces da subjetividade - a sensível e a formal. Neste caso, a figura em vigor perde sentido, desestabiliza-se: um limiar de suportabilidade é ultrapassado. A subjetividade tende então a ser tomada por uma inquietude que a impele a tornar-se outra, de modo a dar consistência existencial para sua nova realidade sensível.

Neste final de século - e de milênio -, a desestabilização trabalha no atacado. A imensa diversidade e densificação de universos que se miscigenam em cada subjetividade torna suas figuras e suas linguagens obsoletas muito rapidamente, convocando-a a um esforço quase que permanente de reconfiguração. Nesse contexto, a subjetividade se descobre precária e incerta. Muda por completo o modo como é vivida a experiência da desestabilização.

Na modernidade, tal experiência era associada à doença mental, e trazia o medo de não conseguir configurar-se de acordo com o mapa absolutizado de uma ordem considerada normal: medo de ser anormal, de fracassar ou enlouquecer. As escolhas eram movidas pela exigência de se alcançar essa suposta identidade, sob pena de sucumbir à culpa.

No contemporâneo, no entanto, a experiência da desestabilização encontra-se a tal ponto intensificada que ela não mais se associa à doença; sua generalização a situa no âmbito de uma normalidade. Essa experiência tende então a ser vivida como fragilidade. O medo não é mais o de não conseguir configurar-se segundo um certo mapa, pois múltiplos são os mapas possíveis. O medo agora é de não conseguir reconfigurar-se de todo, de forma minimamente eficaz.
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Nesse processo surgem novos objetos na paisagem ambiente; outros mudam de lugar. Por exemplo, o estatuto dos remédios psiquiátricos, que passam a ter a finalidade de evitar ou remediar a fragilização e seus efeitos - o stress, a depressão, a ansiedade, etc. Hábito que se tornou comum, tomar esse tipo de remédio deixa de ser uma prática secreta, culposa e envergonhada, que marca aquele que o toma com o estigma de doente mental. Hoje, quem toma tais remédios não tem mais por que escondê-lo; pelo contrário, tal atitude denota alguém que investe na administração dos próprios processos de subjetivação, e que se mantém ao par das últimas novidades da indústria farmacêutica.

Há várias outras tecnologias que permitem lidar com o perigo de fragilização - algumas antigas, mas investidas de novas formas ou sentidos; outras inéditas. Entre as antigas, a cocaína, da qual o que se espera hoje são fugazes miragens de uma velocidade compatível com as exigências do mercado. Além da cocaína, a literatura de auto-ajuda, que pretende ensinar a exorcizar os abalos das figuras em vigência, incluindo-se nessa categoria a literatura esotérica e as terapias que prometem eliminar o desassossego (com destaque para a tão falada “neurolingüística”, programação behaviorista de última geração). Entre as tecnologias inéditas, estão os coquetéis de vitaminas, prometendo uma saúde ilimitada, vacinada contra o stress e a finitude, que os prodígios da indústra de cosméticos vêm complementar, apagando, da pele, qualquer vestígio do tempo. Por último, não podemos esquecer as tecnologias diet/light, fórmulas de uma purificação orgânica para a produção de um corpo minimalista, maximamente flexível, capaz de vestir toda espécie de identidade.

Um sintoma desse medo da perda de qualquer possibilidade de configuração é a experiência, bastante recorrente nos dias de hoje, que a psiquiatria batizou de “síndrome do pânico”. Ela acontece quando a desestabilização é levada a um tal ponto de exacerbação que se ultrapassa traumaticamente um limiar de tolerância. Produz-se então uma ameaça imaginária de descontrole das forças, que parecem
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prestes a precipitar-se em qualquer direção, promovendo um caos psíquico, moral, social, e antes de tudo orgânico. É a impressão de que o próprio corpo biológico pode de repente deixar de sustentar-se em sua organicidade e enlouquecer, levando as funções a ganharem autonomia: é o coração que dispara, correndo o risco de explodir a qualquer momento; o controle psicomotor que se perde, o que pode detonar gestos gratuitamente agressivos; o pulmão que se nega a respirar, anunciando a asfixia, etc. A solução será então a de imobilizar o corpo, que só se deslocará acompanhado. O outro torna-se um corpo-prótese, pronto para substituir as funções do corpo próprio caso sua organicidade venha a faltar, dilacerada pelas forças enfurecidas.

É essa a situação que leva o homem a transformar, mais uma vez na História, sua concepção de ordem, de caos e da relação entre ambos. A ordem tende a não mais associar-se a equilíbrio. É que a idéia de equilíbrio implica uma concepção de subjetividade reduzida à consciência e suas representações, e esse tipo de concepção passa a ser inoperante, já que não permite fazer face às importantes mudanças que se produzem no plano das sensações. A subjetividade começa então a ser apreendida como um sistema complexo, heterogenético e distante do equilíbrio, sofrendo constantes bifurcações. O par estabilidade/instabilidade tende a ser abandonado. Em seu lugar aparece a idéia de uma metaestabilidade: uma estabilidade que se faz e refaz a partir das rupturas de sentido, incorporando as composições de forças responsáveis por cada uma dessas rupturas. Circunscreve-se assim um além da consciência, âmbito que a psicanálise apontou já no final do século passado, chamando-o de “inconsciente”. No entanto, a visão psicanalítica desse âmbito, bem como de sua relação com a consciência, é tributária do par caos/ordem, entendidos como os dois pólos, respectivamente negativo e positivo, de um sistema em equilíbrio. Hoje se é levado a pensar que a inexistência de forma no caos não faz dele o âmbito do indiferenciado, como se pensava no final do século XIX, momento
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em que emerge a psicanálise: o caos possui uma trama ontológica específica, feita da multiplicidade de forças em movimento de atração e repulsa, as quais formam composições que engendrarão as figuras ordenadas da subjetividade. Em outras palavras, o caos é o âmbito das gêneses das figuras da subjetividade, ele é portador de linhas de virtualidade. Se mantivermos o nome de “inconsciente” para designá-lo, teremos que pensá-lo como um inconsciente produtivo e criador. Um inconsciente jamais determinado de uma vez por todas, e que se encontra em constante devir. Nesse tipo de visão, a ordem não se faz partindo-se de um elementar indiferenciado para um complexo diferenciado: a subjetividade não se define por uma só e mesma figura, que se estabeleceria na infância e se desenvolveria ao longo da vida. As figuras são várias; elas tomam consistência a partir de limiares caóticos que vão se produzindo, um após outro, do começo ao fim da existência.

Mais do que subjetividades, é preciso falar em processos de individuação ou de subjetivação. Tais processos são inseparáveis das linhas de virtualidade traçadas no caos, linhas que eles atualizam, correndo sempre o risco de submergir. Complexa operação de agenciamento de intensidades, que não esgota essas intensidades e seu potencial de gerar outros devires.

Faz-se necessário constituir uma teoria da subjetividade que comporte tais singularidades e sua potência de transfiguração. Isso implica deslocar-se radicalmente de um modelo identitário e representacional, que busca o equilíbrio e que, para obtê-lo, despreza as singularidades. Trata-se de apreender a subjetividade em sua dupla face: por um lado, a sedimentação estrutural e, por outro, a agitação caótica propulsora de devires, através dos quais outros e estranhos eus se perfilam, com outros contornos, outras linguagens, outras estruturas, outros territórios.

Várias são as estratégias que as subjetividades têm inventado na atualidade para defender-se do desconforto provocado por tão exacerbada desestabilização. Tais estratégias compõem, em doses variadas, as diferentes subjetividades, ou os
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diferentes momentos de uma mesma subjetividade. Elas são basicamente de três tipos.

A primeira estratégia toma como alvo de combate as identidades globalizadas flexíveis, em torno das quais as subjetividades são levadas a se reconfigurar, se quiserem inserir-se em alguma órbita do capitalismo mundializado. Como antídoto a tais identidades globalizadas flexíveis, se propõe então a afirmação de identidades locais fixas, de ordem geográfica, sexual, racial, religiosa, etc. São as minorias militantes de toda espécie.

Já a segunda estratégia toma como alvo a pulverização das identidades locais e dos antigos ideais, processo que se vive hoje num ritmo acelerado. Como antídoto a tão intenso esfacelamento, propõe-se investir identidades ideais, de ordem política, ideológica, religiosa, etc. São os românticos de direita, de centro ou de esquerda.

A terceira e última estratégia toma como alvo a própria idéia de ordem, de previsibilidade e, portanto, de escolha. Como antídoto a esta idéia, propõe-se a pulverização como bandeira de ordem. É o fascínio niilista pelo caos.

Todas essas estratégias têm em comum basear-se numa mesma concepção de caos, de ordem e da relação entre ambos; varia apenas o posicionamento de cada uma no interior dessa polaridade. O niilista estaria do lado do caos, entendido como negativo da ordem; já o romântico e as minorias, xiitas ou não, estariam do lado da ordem, associada a equilíbrio, variando apenas suas figuras.

Ora, se há um combate a ser travado, seu alvo é a própria polaridade ordem/desordem. No âmbito da subjetividade isso implica em combater o regime identitário, não em nome de uma pulverização generalizada, mas para dar lugar a um outro princípio de individuação. A subjetividade deixa de recorrer, para organizar-se, a imagens a priori, opiniões prontas, clichês. Estes tendem a ser varridos de cena, para serem substituídos pelas figuras singulares produzidas nos
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processos de criação, que trazem à existência as configurações de forças que se desenham na subjetividade.

Recolocado o problema nesses termos, enfrentar as intensas mudanças que se operam no contemporâneo, através de qualquer uma das estratégias anteriormente evocadas, pode ter o sentido conservador de resistência a embarcar nos processos de singularização. Em todas essas estratégias há uma anestesia aos efeitos disruptivos da radical disparidade entre o caos e a ordem, e essa anestesia impede de construir novos mundos, a partir da riqueza de hibridações que se fazem nas subjetividades no contemporâneo. A síndrome do pânico é uma espécie de destino extremo dessa situação: ela se apresenta quando a anestesia já não basta, tamanha a violência de movimentação de forças, e passa a ser preciso imobilizar o próprio corpo, concretamente.

É preciso resgatar a vibratibilidade do corpo, a receptividade aos efeitos do mundo na subjetividade. No entanto, conhecer as intensidades não discursivas do caos só é possível por contaminação, jamais por representação. Esse tipo de conhecimento depende de uma escuta para os movimentos que se fazem no caos, assim como de uma certa tolerância para a metaestabilidade. Conhecer deixa então de ser o exercício da busca de uma verdade - o que não quer dizer que tudo seja relativo e que não haja escolhas a fazer em função de alguma previsibilidade. Continua havendo um horizonte de previsibilidade, mas este limita-se a contextos problemáticos singulares e é sempre atravessado pelo imprevisível. O que muda é que não se trata mais de estabelecer um método de conhecimento que garanta a previsibilidade, com o qual se traça o mapa teórico de um mundo em equilíbrio, eliminando tudo o que dele distoa. Trata-se, ao contrário, de ouvir as linhas de virtualidade que se anunciam e se perguntar: como fazer para que esses conjuntos flous de intensidades ganhem consistência subjetiva? Que agenciamentos são passíveis de trazê-los à existência, recompor um mundo, relançar o processo? Há, sem dúvida, uma escolha a ser feita, mas ela não se faz em função de uma suposta
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verdade; as escolhas são múltiplas e se fazem em função do que é melhor para a expansão da vida, assumindo-se sempre o risco do engano. Uma escolha ética, que é mais da ordem da arte do que do método: o que ela visa é criar formas de existência, a favor do processo vital; todo o contrário da tentativa clássica e moderna de domar esse processo.

Dizíamos no início que o caos, hoje, circula de boca em boca, e que essa insistência em evocá-lo responderia a uma solicitação que a realidade atual vem nos colocando. De fato, o caos nunca esteve tão presente. Mas se, neste final de milênio, estamos confrontadas ao caráter precário e incerto da subjetividade, estamos certamente também - e mais do que nunca - diante de seu caráter criador.


*Texto apresentado em mesa redonda no III Congresso Internacional Latino-Americano de Semiótica. PUC- SP, São Paulo, 04/09/96.

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