04 junho, 2010

F de Fidelidade, por Gilles Deleuze




F de Fidelidade

CP: F de Fidelidade. Fidelidade não gera amizade. Tudo isso vem de um mistério muito
maior. Com o Gordo e o Magro, e Bouvard e Pecuchet. Vamos passar para a letra F.

GD: Vamos ao F.

CP: Escolhi a palavra Fidelidade. Fidelidade para falar de amizade, já que há 30 anos, é
amigo de Jean-Pierre Braunberger. E todos os dias, vocês se telefonam ou se vêem. É como
um casal. Você é fiel às suas amizades, é fiel a Félix Guattari, a Jerôme Lindon, a Elie, a
Jean-Paul Manganaro, Pierre Chevalier... Seus amigos são muito importantes para você.
François Châtelet e Michel Foucault eram seus amigos e você os homenageou como
amigos com grande fidelidade. Queria saber se a impressão de a fidelidade estar
obrigatoriamente ligada à amizade é correta? Ou será o contrário?

GD: Não há Fidelidade. É só uma questão de conveniência, já que começa com F.

CP: Sim, e o A já foi preenchido.

GD: É outra coisa. A amizade. Por que se é amigo de alguém? Para mim, é uma questão de
percepção. É o fato de... Não o fato de ter idéias em comum. O que quer dizer “ter coisas
em comum com alguém”? Vou dizer banalidades, mas é se entender sem precisar explicar.
Não é a partir de idéias em comum, mas de uma linguagem em comum, ou de uma prélinguagem
em comum. Há pessoas sobre as quais posso afirmar que não entendo nada do
que dizem, mesmo coisas simples como: “Passe-me o sal”. Não consigo entender. E há
pessoas que me falam de um assunto totalmente abstrato, sobre o qual posso não concordar,
mas entendo tudo o que dizem. Quer dizer que tenho algo a dizer-lhes e elas a mim. E não é
pela comunhão de idéias. Há um mistério aí. Há uma base indeterminada... É verdade que
há um grande mistério no fato de se ter algo a dizer a alguém, de se entender mesmo sem
comunhão de idéias, sem que se precise estar sempre voltando ao assunto. Tenho uma
hipótese: cada um de nós está apto a entender um determinado tipo de charme. Ninguém
consegue entender todos os tipos ao mesmo tempo. Há uma percepção do charme. Quando
falo de charme não quero supor absolutamente nada de homossexualidade dentro da
amizade. Nada disso. Mas um gesto, um pensamento de alguém, mesmo antes que este seja
significante, um pudor de alguém são fontes de charme que têm tanto a ver com a vida, que
vão até as raízes vitais que é assim que se torna amigo de alguém. Vejamos o exemplo de
frases! Há frases que só podem ser ditas se a pessoa que as diz for muito vulgar ou abjeta.
Seria preciso pensar em exemplos e não temos tempo. Mas cada um de nós, ao ouvir uma
frase deste nível, pensa: “O que acabei de ouvir? Que imundicie é essa?” Não pense que
pode soltar uma frase destas e tentar voltar atrás, não dá mais. O contrário também vale
para o charme. Há frases insignificantes que têm tanto charme e mostram tanta delicadeza
que, imediatamente, você acha que aquela pessoa é sua, não no sentido de propriedade, mas
é sua e você espera ser dela. Neste momento nasce a amizade. Há de fato uma questão de
percepção. Perceber algo que lhe convém, que ensina, que abre e revela alguma coisa.

CP: Decifrar signos.

GD: Exatamente. Disse muito bem. É só o que há. Alguém emite signos e a gente os recebe
ou não. Acho que todas as amizades têm esta base: ser sensível aos signos emitidos por
alguém. A partir daí, pode-se passar horas com alguém sem dizer uma palavra ou, de
preferência, dizendo coisas totalmente insignificantes. Em geral, dizendo coisas... A
amizade é cômica.

CP: Você gosta muito dos cômicos, das duplas de amigos, como Bouvard e Pecuchet,
Mercier e Camier...

GD: Sim, Jean-Pierre e eu somos uma pálida reprodução de Mercier e Camier. Eu estou
sempre cansado, não tenho boa saúde, Jean-Pierre é hipocondríaco e nossas conversas são
do tipo de Mercier e Camier. Um diz ao outro: “Como está?” O outro responde: “Uma bela
viola, sem muito bolor”. É uma frase cheia de charme. Tem de gostar de quem a diz. Ou:
“Estou como uma rolha no balanço do mar”. São boas frases. Com Félix é diferente, não
somos Mercier e Camier, estamos mais próximos de Bouvard e Pécuchet. Com tudo o que
fizemos juntos, mergulhamos em uma tentativa enciclopédica. E dizemos coisas como:
“Temos a mesma marca de chapéu!” E volta a tentativa enciclopédica, a de fazer um livro
que aborde todos os saberes. Com outro amigo, poderia ser uma réplica de o Gordo e o
Magro. Não é que se deva imitar estas grandes duplas, mas amizade é isso. Os grandes
amigos são Bouvard e Pécuchet, Camier e Mercier, o Gordo e o Magro, mesmo que estes
tenham brigado. Pouco importa. Na questão da amizade, há uma espécie de mistério. Isso
diz respeito direto à Filosofia. Porque na palavra “filosofia” existe a palavra “amigo”.
Quero dizer que o filósofo não é um sábio. Do contrário, seria cômico. Ao pé da letra, é o
“amigo da sabedoria”. O que os gregos inventaram não foi a sabedoria, mas a estranha idéia
de “amigo da sabedoria”. Afinal, o que quer dizer “amigo da sabedoria”? Esse é que é o
problema. O que é a filosofia e o que pode ser amigo da sabedoria? Quer dizer que o amigo
da sabedoria não é sábio. Há uma interpretação óbvia que é: “Ele tende à sabedoria”. Não é
por aí. O que inscreve a amizade na filosofia e que tipo de amizade? Há alguma relação
com um amigo? O que era para os gregos? O que quer dizer “amigo de”? Se interpretamos
“amigo” como aquele que “tende a”, amigo é aquele que pretende ser sábio sem ser sábio.
Mas o que quer dizer “pretender ser sábio”? Quer dizer que há outro. Nunca se é o único
pretendente. Se há um pretendente, é porque há outros, quer dizer que a moça tem vários
pretendentes.

CP: Não se é o prometido da sabedoria, é-se apenas um pretendente.

GD: Exatamente. Então, há pretendentes. E o que os gregos inventaram? Na minha opinião,
na civilização grega, eles inventaram o fenômeno dos pretendentes. Quer dizer que eles
inventaram a idéia de que havia uma rivalidade entre os homens livres em todas as áreas.
Não havia esta idéia de rivalidade entre homens livres, só na Grécia. A eloqüência. É por
isso que são tão burocráticos. É a rivalidade entre os homens livres. Então, eles se
processam mutuamente, os amigos também. O rapaz ou a moça tem pretendentes. Os
pretendentes de Penélope. Este é o fenômeno grego por excelência. Para mim, o fenômeno
grego é a rivalidade dos homens livres. Isso explica “amigo” na Filosofia. Eles pretendem,
há uma rivalidade em direção a alguma coisa. A quê? Podemos interpretar, tendo em vista
a história da Filosofia. Para alguns, a Filosofia está ligada ao mistério da amizade. Para
outros, está ligada ao mistério do noivado. E talvez seja por aí. Les fiançailles rompues [O
noivado rompido], Kierkegaard. Não há Filosofia sem este texto, sem o primeiro amor. Mas
como já dissemos, o primeiro amor é a repetição do último, talvez seja o último amor.
Talvez o casal tenha uma importância na Filosofia. Acho que só saberemos o que é a
Filosofia quando forem resolvidas as questões da noiva, do amigo, do que é o amigo, etc...
É isso que me parece interessante.

CP: E Blanchot na amizade? Havia uma idéia de...

GD: Blanchot e Mascolo são os dois homens atuais que, em relação à Filosofia, dão
importância à amizade. Mas num sentido muito especial. Eles não dizem que é preciso ter
um amigo para ser filósofo; eles consideram que a amizade é uma categoria ou uma
condição do exercício do pensamento. É isso que importa. Não é o amigo em si, mas a
amizade como categoria, como condição para pensar. Daí, a relação Mascolo-Antelme, por
exemplo. Daí, as declarações de Blanchot sobre a amizade. Eu tenho a idéia de que... Eu
adoro desconfiar do amigo. Para mim, amizade é desconfiança. Há um verso de que gosto
muito, e me impressiona muito, de um poeta alemão, sobre a hora entre cão e lobo, a hora
na qual ele se define. É a hora na qual devemos desconfiar do amigo. Há uma hora em que
se deve desconfiar até de um amigo. Eu desconfio do Jean-Pierre como da peste! Desconfio
dos meus amigos. Mas é com tanta alegria que não podem me fazer mal algum. O que quer
que façam, vou achar muita graça. Há muito entendimento e comunhão entre meus amigos.
Com a noiva é a mesma coisa. Com tudo. Mão não se deve achar que sejam acontecimentos
ou casos particulares. Quando se fala de “amizade”, “noiva perdida”, trata-se de saber em
que condições o pensamento pode ser exercido? Por exemplo, Proust considera que a
amizade é zero! Não só por conta própria, mas porque não há nada a se pensar na amizade.
Mas pode se pensar sobre o amor ciumento. Esta é a condição do pensamento.

CP: Quero fazer-lhe a última pergunta sobre seus amigos. Com Châtelet, foi outra coisa.
Mas você foi amigo de Foucault no final da guerra e estudaram juntos. Mas vocês tinham
uma amizade que não era a de uma dupla, como a que tem com Jean-Pierre ou Félix ou
com Elie, Jerôme, já que estamos falando dos outros. Vocês tinham uma amizade muito
profunda, mas parecia distante e era mais formal para quem via de fora. Que amizade era
essa, então?

GD: Ele era mais misterioso para mim e talvez porque a gente tivesse se conhecido tarde.
Foucault foi um grande arrependimento para mim. Como tinha muito respeito por ele, não
tentei... Vou dizer como eu o percebia. É um dos raros homens que, quando entrava em
uma sala, mudava toda a atmosfera. Foucault não era apenas uma pessoa, aliás, nenhum de
nós é apenas uma pessoa. Era como se outro ar entrasse. Era uma corrente de ar especial. E
as coisas mudavam. Era um fator atmosférico. Foucault tinha como que uma emanação.
Como uma emissão de raios. Alguma coisa assim. Fora isso, ele responde ao que eu dizia
há pouco, sobre não haver necessidade de falar com o amigo. Só falávamos de coisas que
nos faziam rir. Ser amigo é ver a pessoa e pensar: “O que vai nos fazer rir hoje?”. “O que
nos faz rir no meio de todas essas catástrofes?” É isso. Mas para mim, Foucault é a
lembrança de alguém que ilustra o que eu dizia sobre o charme de alguém, um gesto... Os
gestos de Foucault eram impressionantes. Tantos gestos... Pareciam gestos metálicos,
gestos de madeira seca. Eram gestos estranhos, fascinantes. Muito bonitos. As pessoas só
têm charme em sua loucura, eis o que é difícil de ser entendido. O verdadeiro charme das
pessoas é aquele em que elas perdem as estribeiras, é quando elas não sabem muito bem em
que ponto estão. Não que elas desmoronem, pois são pessoas que não desmoronam. Mas, se
não captar aquela pequena raiz, o pequeno grão de loucura da pessoa, não se pode amá-la.
Não pode amá-la. É aquele lado em que a pessoa está completamente... Aliás, todos nós
somos um pouco dementes. Se não se captar o ponto de demência de alguém... Ele pode
assustar, mas, quanto a mim, fico feliz de constatar que o ponto de demência de alguém é a
fonte de seu charme.
Ao G, pois!

GD = Gilles Deleuze


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