O estado poético nos transporta através da loucura e da sabedoria, e para além delas.
A sabedoria pode problematizar o amor e a poesia, mas o amor e a poesia podem reciprocamente problematizar a sabedoria. O itinerário aqui proposto que conteria amor, poesia, sabedoria, comportaria, em si mesmo, esta mútua problematização.
Devemos fazer tudo para desenvolver nossa racionalidade, mas é em seu próprio desenvolvimento que a racionalidade reconhece os limites da razão, e efetua o diálogo com o irracionalizável.
A partir daí, podemos assumir, mas com plena consciência, o destino antropológico do homo sapiens-demens, que implica nunca cessar de fazer dialogar em nós mesmos sabedoria e loucura, ousadia e prudência, economia e gasto, temperança e "consumação", desprendimento e apego.
Tudo isso implica endossar a tensão dialogal, que mantém permanentemente a complementaridade e o antagonismo entre amor-poesia e sabedoria-racionalidade.
Edgar Morin
Na dialética, como se sabe, o formato é a tríade tese, antítese e síntese. A síntese é a resolução, o resultado do embate entre a tese e a antítese. Desse modo, pode-se dizer que a contradição se resolve por meio de uma espécie de negociação que leva a um acordo. O choque entre os opostos é solucionado pelo surgimento de uma terceira figura. Já na dialógica não é possível chegar a uma resolução, pois as características dos contrários tornam o confronto inegociável e por isso eles precisam conviver num diálogo sem fim. Um dos critérios, talvez o mais eficaz, para fazer essa diferenciação é a duração do diálogo. Na dialética ele é temporário, tem início meio e fim. Na dialógica, precisa continuar indefinidamente.
Morin assim define a dialógica: “Unidade complexa entre duas lógicas, entidades ou instâncias complementares, concorrentes e antagonistas, que se nutrem uma da outra, completam-se, mas também se opõem e se combatem. (...) Na dialógica, os antagonismos persistem e são constitutivos das entidades ou fenômenos complexos”.
Trata-se, portanto, de opostos ao mesmo tempo antagônicos e complementares, como os princípios masculino e feminino, a razão e a emoção, ou, como escreveu Nietzsche em seu primeiro livro o apolíneo e o dionisíaco. Para esse filósofo, a cultura da Grécia clássica comportava dois pólos. O apolíneo seria o controlado, o racional, da ordem, da contenção. O dionisíaco seria o bárbaro, da paixão, do desejo incontido. Essa interação produz conflitos, mas também gera criatividade: o apolíneo precisa do dionisíaco e a recíproca é verdadeira. Ou, nas palavras de Pascal: “Nem a contradição é a marca da falsidade, nem a não-contradição é a marca da verdade”.
Em suma, a dialógica é um modo de fazer com que os paradoxos não apenas sejam admissíveis, mas de perceber as idéias novas que muitas vezes deles emergem. É o que diz Gérard Lebrun, para quem o objetivo da dialógica não é solucionar contradições, mas sim tornar pensáveis os paradoxos: “Pascal é ‘dialético’ somente na aparência e numa primeiríssima aproximação. Certamente, sua estratégia é de tal ordem que combina proposições que parecem excluir-se”.
Mas lidar com paradoxos (e não há nada mais paradoxal do que o ser humano e suas sociedades) é coisa de que não gostamos, porque nos confronta com a inevitabilidade da dúvida, da incerteza, da dificuldade de controle. Nossa cultura predominantemente cartesiana, iluminista, nos convenceu de que podemos dominar a natureza, inclusive a nossa própria. E nos forneceu incontáveis instrumentos de auto-engano para manter-nos convencidos disso, mesmo quando somos (como acontece diariamente) postos diante de evidências de que esse domínio está muito longe de ser tão completo quanto desejamos. Com efeito, não tem sido outra a função da chamada “idéia de progresso” da modernidade.
Entre ser sempre fortes ou sempre fracos, optamos ingenuamente pela primeira hipótese: queremos ser sempre fortes, controladores, racionais e “exatos”, mesmo quando tudo à nossa volta nos mostra que somos fortes e fracos — não uma coisa ou outra —, e que há momentos e circunstâncias em que é preciso aceitar o erro, a aleatoriedade e a ambigüidade. Aceitá-los e reconhecer que eles são meios de autoconhecimento, que nos ensinam a tolerância (não confundir com permissividade), a moderação (não confundir com auto-repressão) o senso de ridículo (não confundir com timidez) a firmeza de posições (não confundir com narcisismo) — enfim, a sabedoria de viver, que inclui isso tudo mas a nada disso pode ser reduzida.
Humberto Mariotti
Posts relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário