JORGE DE LIMA (1895-1953)
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E tudo haveria de ser assim, para contemplar-te sereno, ó morte,
e integrar-me nos teus mistérios e nos teus milagres.
Agora vejo os Lázaros levantarem-se
e...
18 abril, 2009
Vontade de imagem e celebrização do cotidiano na tela
Vontade de imagem e celebrização do cotidiano na tela
Carmen Silveira de Oliveira Psicóloga.
Doutora em Psicologia Clínica pela PUCSP. Professora do Mestrado em Psicologia Clínica da Unisinos-RS. Autora do livro “Sobrevivendo no inferno: a violência juvenil na contemporaneidade”, Porto Alegre: Sulina, 2001.
Maria Célia Detoni Psicóloga.
Psicoterapeuta. Mestre em Educação pela UFRGS.
Resumo
Neste artigo é analisado um episódio da série “Lente Indiscreta”, “Straight Plan for The Gay Man”, veiculado pelo canal GNT, em 2005, em que um cidadão comum se dispõe a ver sua imagem pessoal desconstruída diante de milhões de olhos que perscrutam também seus movimentos de construção de um novo corpo.
A Aborda o interjogo entre visibilidade e intimidade presente em seriados da mídia televisiva contemporânea A partir da idéia de publicização celebrizada da existência, busca-se cartografar os movimentos dos personagens quanto aos diferentes sentidos empregados no uso da vontade de potência.
Reflete-se sobre a negação da existência como trabalho pessoal de construir possibilidades de ser e estar no mundo, uma vez que a subjetivação vê-se capturada por mudanças que devem acontecer com velocidade, sem imprevistos e com metas previamente definidas. Neste sentido, o protagonista do programa em análise é uma metáfora do sedentarismo contemporâneo, quando os sujeitos se vêem desprovidos da condição de elaborar critérios para o cuidado de si, consumindo em suas poltronas modos de vida “new fashion” que lhes absolvem da necessidade de experimentação.
Palavras-chave: celebridade, subjetivação, vontade de potência, contemporâneo, espetáculo.
Abstract
On this article it is analyzed an episode of the TV series “Indiscrete lens”, “Straight Plan for the Gay Man”, aired by the channel GNT in 2005, in which an average citizen agrees to have his personal image deconstructed by the large audience that observes him in the pursuit of a new body. The series approaches an intergame among the visibility and the intimacy present nowadays on TV. From the idea of celebrated advertisement of life, this work proposes to draw the actions of the characters regarding the different senses employed on their will power. This study also reflects upon the denial of personal effort towards the possibilities of being within the world, since the subjectivity is, that way, captured by changes that happen rapidly, without counting on unexpected happenings, and with pre-defined goals. In this sense, the lead man of the show in analysis is a metaphor of the contemporary sedentarity, in which it is not expected from the individuals the condition of elaborating criteria for self care, consuming on their lazy-boys ‘new fashion’ ways of life that absolve them from the need of experimenting. Key words: celebrity, subjectivity, will power, modern life, spectacle.
Introdução
Vivemos tempos hipermodernos em que o tripé velocidade- consumo-estética alicerça a sociedade do espetáculo ou da cultura das sensações, trazendo novas formas de reconhecimento mediados pelo narcisismo. Em tal contexto, o interjogo entre intimidade e visibilidade, como se pode observar no formato dos novos programas de televisão, não apenas vai rompendo as fronteiras entre público e privado, como cria uma nova esfera que denominamos de publicização celebrizada da existência, caracterizada não tanto pela curiosidade sobre as vidas privadas de figuras públicas como pelas confissões da intimidade dos cidadãos comuns.
Em tal cenário proliferam os seriados da mídia televisiva que se empenham em celebrizar o cotidiano. São programas que oferecem ao telespectador imagens e scripts de pessoas em seu cotidiano ordinário. São casais esperando bebês e tendo todo o período da gravidez monitorado por câmeras, mulheres buscando homens para eventual namoro ou querendo modificar seus cônjuges, adolescentes com seus dramas, sogras que reformam a casa de seus filhos na ausência dos mesmos etc. Em comum, o que temos são intimidades traduzidas numa espécie de documentário de vidas simples, em que se alimenta a idéia de que é possível e rápido estabelecer processos de mudança nos corpos, nas moradas, nas existências de cada um. Nesta problematização, toma-se um episódio da série “Lente Indiscreta”, “Straight Plan for The Gay Man”, veiculado pelo canal GNT, em 2005. São analisados os movimentos dos personagens quanto aos diferentes sentidos empregados no uso da vontade de potência, seja como reinvenção da vida ou como reiteração de territórios pré-configurados. A potência, aqui, é entendida como multiplicidade de afetos e intensidades que imprimem diferença no corpo, abrindo o mundo em devires.
Para Deleuze (s/da), a potência é o múltiplo que se afirma como vontade de potência, a criação da vida nas suas infinitas faces. O mundano como espetáculo: como existir sem ser visto? […] teatro doméstico que é a TV, no pequeno retângulo de vidro, esse pátio dos milagres onde uma imagem varre a anterior sem deixar vestígios, tudo em escala reduzida, mesmo as emoções (Saramago, 2004).
Segundo Debord (1997), da sociedade industrial para a indústria da imagem, é construída a captura do mundano e do cotidiano das pessoas como coisas dignas de exibição, na qual receber o olhar do outro ou fazer ao modo daquele que olhamos movimenta o mercado das sensações, fazendo com que a vida se torne espetáculo, na medida em que constitui relações sociais entre as pessoas mediadas pelas imagens. Como aquilo que deve ser mostrado não se dá mais em prol do controle e da disciplina da sociedade, mas para o mercado da visibilidade, ser alvo do olhar do outro é o termômetro da existência: se sou visto, existo ou, como refere Freire Costa (2004, p.84), “apareça ou pereça”.
Segundo este autor, na moral das sensações, o enigma não é temer ou adivinhar o que o outro quer, mas “explorar exaustivamente o corpo até torná-lo a ‘cera-mole’ prestes a encarnar qualquer ideal narcísico arbitrário inventado pela moda ou pelo entretenimento”. Diante da exigência de perfeição que se colocou no corpo em detrimento dos sentimentos, o indivíduo vive um permanente estado de insatisfação e receio quanto a sua própria imagem. Não pode se servir do seu passado para que saiba, com mais confiança e conforto, como ele deve ser para que o outro o reconheça. Desta forma, para obter o reconhecimento imaginário da “moda-espetáculo”, acaba negociando o inegociável, ou seja, a vida ou o gozo, a identidade narcísica ou a homeostase física, o outro ou si mesmo. Temos, aqui, um deslocamento: as estratégias privadas de existência passam a visar ao compartilhamento que se sustenta no mostrar mais do que no trocar. Sendo assim, a existência se torna o exercício da imagem nas coisas mais simples da vida, numa espécie de exibicionismo premeditado.
A vida levada numa enorme vitrine alimenta a exposição que nos tirou a possibilidade de dissi- mular a intimidade do olhar do outro, fazendo com que se equipare o que aparentamos ser com a identidade pessoal simplificada pelo corporal. De tanta exposição, andamos todos perseguidos por um intruso olho que nos julga segundo a performance a ser cumprida. Conforme Bauman (2001), este compartilhar de intimidades tende a ser o método preferido, e talvez o único que resta, de “construção da comunidade”. Ou seja, dependemos do espetáculo para confirmar que existimos e para nos orientar em meio a nossos semelhantes dos quais nos isolamos. Assim sendo, aquilo que se é não advém da multiplicidade de encontros da vida, mas de um trabalho publicitário pessoal em que a tela brilha, realça as cores, toma nossos olhos, embala nosso desejo e se oferece como alimento da vontade. Entendemos a vontade como o embate de forças que incluem vários sentimentos: do estado de que nos afastamos, do estado para o qual tendemos e do movimento de afastar-se, bem como do tender e seu correspondente sentimento muscular (Giacóia, 2004).
A vontade faz da sua diferença um objeto de afirmação, uma vez que a força é quem pode. É sempre pela vontade de poder que uma força entra em relação com outras e as domina ou as comanda. É por vontade de poder que uma força obedece, uma vez que é plástica e se afirma no múltiplo (Deleuze, s/da, p. 78). Freire Costa (2004) chama atenção para o fato de que é nas variações da vontade que encontramos a nova axiologia dos padrões de normalidade. De um lado, o querer se apresenta como “mestre do corpo” e capaz de gerar transformações existenciais de toda ordem, bastando o sujeito ser suficientemente tenaz na busca de seus objetos de desejo; por outro lado, um certo discurso acerca das causas orgânicas do comportamento humano isenta moralmente o sujeito ao identificar, nos azares genéticos, os limites pessoais para exercer a plena vontade no domínio de seu corpo e de sua mente. Desde estas perspectivas, o sucesso é visto como mérito de uma vontade forte, mas o fracasso faz com que cada um se sinta “fisicamente doente”, estreitando sua possibilidade de relacionar a norma social ao seu sofrimento, uma vez que é no biológico que se coloca a causa de seu malogro.
Em tal contexto, o conceito nietzschiano de vontade de potência deixa de ser um princípio pelo qual a vida se projeta para além de si mesma para, ao contrário, colocar o sujeito diante de um espelho identitário, na medida em que “a tela da tv não oferece modelos a imitar, mas se oferece como espelho no qual acreditamos estar refletida nossa própria imagem” (Kehl & Bucci, 2004, p.8). Isto favorece a montagem do mundo das chamadas celebridades onde se existe para o vertiginoso exibicionismo e com a esperança de visibilidade que dirige as escolhas de vida, seja para se “parecer com” ou “se ver em”. A imagem outorga a si o poder de distribuir conceitos, redefinindo os ideais de felicidade em que o viver “como cada um bem entende” não é a promoção de vidas autônomas, mas o consumo das crenças que transitam no mundo das celebridades.
Para Freire Costa (2004), a celebridade é a “autoridade do provisório”, em que se alia moda e tecnologia a serviço da “moral do entretenimento”. Tal moral se sustenta por pessoas que, idolatrando o momentâneo, desaparecem com ele depois de um apoteótico instante de visibilidade. Este sucesso independe de seus talentos, uma vez que o fundamental é o potencial de entreter e, assim, não só os objetos, mas as identidades cumprem uma efêmera função de fazer de toda a vida um entretenimento.
A vontade de semelhança […] o espírito, amante das vertigens puras, é inimigo das intensidades (Cioran, 1995, p.36). O que acontece, então, quando o cidadão comum se dispõe a ver sua imagem pessoal desconstruída diante de milhões de olhos, em um programa de TV cuja “lente indiscreta” irá também perscrutar seus movimentos de construção de um novo corpo? Como entender suas motivações para o compartilhamento desta intimidade através da mídia televisiva? Quais deslocamentos são produzidos nestes exercícios de vontade? O programa da GNT, da série “Lente Indiscreta”, que subsidia nossa análise, se apresenta como uma aventura de quatro homens heterossexuais que se colocam como “guias” da transfor- mação de um gay. Desde as primeiras cenas, somos transportados a um ambiente tipicamente americano e masculino.
No interior de um apartamento, os quatro guias estão em meio à bebida, arrotos e peidos. Brincam com um carrinho de controle remoto que traz a missão de transformar Roger (que é gay, professor de ioga e garçom de lanchonete) em um atleta heterossexual. O quarteto estabelece planos de como farão para que ele pareça/apareça como alguém que não é. “Vamos dar um jeito em você”, afirmam os instrutores, o que pressupõe que o candidato entrega sua vida, seu jeito e sua casa para que esta “missão” seja cumprida, numa servidão consentida. O que se observa nestas primeiras cenas é a negação da existência como trabalho pessoal de construir possibilidades de ser e estar no mundo. “Dar um jeito em você”, enunciado do programa, equivale a dizer que não se faz necessário que os projetos de vida encontrem espaço para serem constituídos como a história do sujeito com suas referências. Assim sendo, os referenciais existenciais deixam de ser expressões singulares das condições de instauração e deslocamentos de sentido inscritos nos corpos e nas almas das pessoas, para se colocarem como modelos prontos a partir dos quais os sujeitos procuram assemelhar-se como boas cópias (Deleuze, 1998).
O tempo do futuro deixa de ser o da realização de sonhos para se constituir em movimentos de correções do corpo num “adulto protético” (Freire Costa, 2004, p. 77). Aos poucos, somos seduzidos na contemplação das mudanças que vão sendo operadas no corpo e no cotidiano do personagem. A tela vai abrindo portas para o pátio dos milagres, com um duplo convite: você pode realizar seu desejo de mudança e, o que é melhor, sem esforços. Isto nos leva a afirmar que a celebrização do cotidiano e do homem, comum neste tipo de programa, é apenas um meio de reiterar modos capitalísticos de subjetivação em que as formas de vida são evidenciadas como mutáveis e passíveis de reforma sem -ou com muito pouca – implicação processual do sujeito em questão. Para isto, basta uma invasão consentida a que é preciso se submeter como custo, na “vida real”, de vender o vazio de uma existência que só encontra sentido no ser visto.
Neste sentido, os deslocamentos de Roger traduzem bem as cenas contemporâneas em que identidades dissolvidas encontram alento nas “figuras-padrão que distribuem sentidos às identidades globalizadas flexíveis” ameaçadas com “o perigo de se virar um nada, caso não se consiga produzir o perfil requerido para gravitar em alguma das órbitas do mercado” (Rolnik, 2000, p. 456). É por isto que, neste programa em análise, as estratégias não são construídas por Roger, mas pelos seus “guias”, que decidem um plano de ação: mudar a aparência visual dele, aguçar seu lado masculino, fazer “bailar” seu gato de estimação, seu namorado, sua ioga, suas escolhas.
Por estar convencido de que pode mudar artificialmente e sustentar uma aparência, o personagem recalca o passado sentimental em favor da corporeidade material. Assim, o processo do advir de Roger faz metáfora com nosso tempo, quando alguns princípios para aquisição de uma identidade-prótese são enunciados: mudar é a nova ordem, mas as mudanças devem acontecer com rapidez, sem imprevistos e com metas claras. Mesmo com a desterritorialização suscitada, subjaz aí a idéia de subjetividades regidas por uma lei transcendente que oferta modos de vida extrínsecos ao próprio processo de subjetivação de cada um. Diferentemente disto, outrar-se como tarefa implica que no lugar das imagens tomadas como um a priori a existência seja tramada por uma lei imanente ao campo das intensidades de um corpo, tendo como regra o vir a ser que será construído num infinito processo de dar expressão àquilo que força em nós um lugar. Como aquilo que brilha sem cessar na vida celebrizada não são os olhos da pessoa, nem seus feitos, mas seu visual condizente com a moda atual, sustentar o brilho de uma vida ofuscada pelo consumo existencial silencia aquilo que de mais precioso possuímos: nossa história. É na narrativa de si como um colóquio com o outro, num diálogo com escolhas e contingências neste mundo, que confere a cada um a idéia real-ficcional de sua existência.
São nossas vivências que costuram sentidos que são construídos na correlação de forças da multiplicidade humana que configuram uma dada constelação subjetiva. Entretanto, no seriado televisivo que estamos analisando, a proposição de uma nova existência reduz a corporalidade de Roger a um design de atleta heterossexual, ou seja, a caricatura em que o sujeito é desprovido de sua própria vida, pois o novo projeto de identidade está sendo oferecido como suposta solução para seu desejo e de quem mais puder comprar. A mudança na vida de nosso personagem não acontece a partir da narrativa de si, mas através de seus guias que revistam o seu apartamento para a reconfiguração de territórios: a casa tem que refletir a solidão de um homem, as roupas devem ser largas, a geladeira vazia e muitos objetos são descartados (livros, cortina de sapos no banheiro, bichinhos de pelúcia, fotos na cabeceira, panelas grandes etc).
Ao invés de agenciamentos como dispositivos que buscam favorecer o processo de experimentação do sujeito, são demarcados os passos a serem dados por ele em um percurso predefinido. Por outro lado, os personal men parecem animados, ao identificarem vestígios de macho no ambiente gay, como o fato de que sua casa é bagunçada e têm fios amontoados, o que lhes demonstra que “nem tudo está perdido”. Observa-se que tais iniciativas buscam circunscrever bem o que se supõe territórios distintos, de gays e heteros. Parte-se da premissa de que ambos territórios se caracterizam por uma certa homogeneidade que permitiria tomar generalizações, tanto do masculino quanto do circuito homossexual. Neste caso, americanos machos buscam imagens totalizantes do masculino como referência para pensar a mudança de um “típico” gay, mas se trata sempre da passagem de uma semelhança à outra previamente definida. No caso deste programa, busca-se a construção identitária de um heterossexual segundo a regra “masculina” de que “o importante não é competir mas vencer”.
A idéia é de que a socialização dos homens se constitui distanciando-os da intimidade consigo e com os outros. A ausência de intimidade pode ser pensada como uma das marcas da brutalidade masculina que tem a disputa como dispositivo constitutivo de sua subjetivação. Não vacilar, aprender a humilhar o outro e a fazer pose são as primeiras lições recebidas por Roger. Dito de outra maneira, o que se pretende é agenciar o corpo como patrimônio, pois, como refere Nolasco, (2001, p.72 ), o homem é “autorizado socialmente a usar a força física para dar prova de virilidade, se predispõe a usá-la quando se vê envolvido em situações em que não se sente reconhecido como homem”. Além disto, o quarteto se divide em tarefas, enquanto Roger é levado a comprar roupas, treinar basquete, transformar a casa em habitat para atleta, incluindo uma minipista de basquete na sala e muita cerveja na geladeira. Enquanto é transportado de seu mundo existencial para o cronograma de transformações pré-agendadas, alguns ensinamentos são transmitidos, para que componha seu novo personagem, para que empreste a maior veracidade possível ao engodo da imagem. Em síntese, embora o programa sugira que Roger esteja migrando de territórios, a microfísica do migrante acaba tomando o lugar da macrogeometria do sedentário. Já não se traçam linhas mutantes, mas uma linha de abolição do singular em prol da imagem e semelhança do outro traçando um plano de existência apartado dos agenciamentos de sua vida, que são substituídos por segmentos supostamente unívocos e heterossexuais. Ou seja, a simulação deixa de ser um plano de invenção para se constituir em dissimulação e fingimento.
É por isso que nosso personagem confessa confiante: “eu banquei o bruto quieto e não o falastrão, encarnei o atleta matador calado”. A vontade despossuída dos afetos ... somos mais artistas do que sabemos. – Nietzsche O segundo pressuposto do plano de transformações de Roger é de que na rapidez temos de escolher as ofertas do que vamos ser. Em uma cena que parece ser paradigmática disto, os cabelos de Roger dão lugar a uma cabeça raspada com o desenho de uma bola de basquete na nuca. Embora ele não goste, é dissuadido pela argumentação de que este é o símbolo de sua nova existência. Enquanto se transforma em juiz incompetente de sua própria vida a câmera acompanha a velocidade da máquina do cabeleireiro forjando o seu novo design e, ao mesmo tempo, evidenciando a fluidez da vida e das imagens na contemporaneidade.
A liquidez como marca do contemporâneo (Baumann, 2001) tem na velocidade e na incerteza os ditames da vida instantânea que promete com seus modos e objetos efêmeros, corpos ágeis, uma eterna leveza do ser, conseguida com o preenchimento do vazio da condição humana, através da celebrização do ordinário e do enfadonho ato de estar vivo. É assim que, depois de ter sua vida tornada imagem-mídia, nada mais sabemos sobre Roger, na medida em que ele volta ao anonimato e sua narrativa sequer nos deixa o consolo da conhecida frase: “felizes para sempre”. É a produção de “eus” espetacularizados nas superfícies dos corpos e imagens numa subjetivação seriada por um duplo espelhamento: o da identificação e o da projeção de ideais. Assim, a tela tem hoje monopólio dos dispositivos de construção da sociedade, uma vez que esta tem na imagem seu paradigma. Essa dimensão imagística da televisão produz um tipo de subjetividade diferente da que se constituía na modernidade discursiva delineando verdades imagéticas centradas na exibição. É o olho que registra, o corpo que se molda e se oferece como representante da existência de cada um. Straight Plan for The Gay Man está entre estes programas que mostram uma vida encenada para o exercício exibicionista de seus participantes e o consumo voraz de seus telespectadores.
Há aí um tipo de pacto no qual o tornar-se celebridade efêmera dignifica e justificaria qualquer tipo de desconforto ou invasão, afinal, ter imagem – independente do papel que se desempenhe – é fazer parte de uma rede de inseridos e publicamente legitimados, pois “ter uma boa imagem” seria o primeiro passo para o pertencimento social. Contudo, Roger tem como tarefa parecer outro e constrói esta semelhança a partir das orientações de seus guias transitando num espaço estriado, ou seja, sabe a priori o que deve apresentar à tela para, em seguida, sumir de nossos olhos. Já o que vemos em outros programas, tipo reality shows, é que a trajetória dos personagens se define muitas vezes pela interatividade com os telespectadores, “onde a tirania do sentimentalismo coletivo é que dita as normas” (Khel & Bucci, 2004, p. 173).
Isso significa constatar que sujeitos são transformados em atores-personagens de uma construção melodramática que se confunde com o real de cada integrante do programa, de forma que se dá um certo apagamento dos limites entre os diferentes mundos: o dos telespectadores que julgam, o dos participantes com suas histórias e objetivos e o da produção que dirige a trama no limite da telenovela, personificando categorias, como as de vilões ou super-heróis, bons e maus. O reality show interdita a realidade da vida extramuros à casa de confinamento para criar a sua própria realidade: o reality, a partir do qual se constituirá a experiência de ter o ordinário espetacularizado e transformado em passaporte para o que efetivamente interessa: ser visto. Roger também quis ser visto, mas sua passagem é rápida e sem continuidade.
No reality show há prêmios a serem conquistados. Assim, vai ser na habilidade de construir seu ibope que a passagem por esse programa vai render mais ou menos fama e trabalho no mundo midiático. Os candidatos, em busca de sucesso, contam com o dinheiro a ser ganho e com a exposição televisiva que os farão conhecidos. Ao mesmo tempo em que precisam superar os colegas deverão conquistar a simpatia dos mesmos e do público para não serem eliminados e, assim, obterem a vitória de serem escolhidos como os mais hábeis diante desta exposição intensa. Uma verdadeira pedagogia e tecnologia de como ser aceito e parecer digno de passar a ocupar um lugar no idealizado mundo das celebridades. Nesta tarefa, cada participante encarna um misto de si e das pistas que recebe para agradar ao público. Agradar aí é a ordem, agrade e seja escolhido.
Surgem então personagens caricaturados que aderem ao corpo de cada um como herança a ser sustentada numa única chance de prolongar a fama conseguida sobre restos identitários. São existências expostas através de personagens de si mesmos que sobrevivem a uma seqüência montada por um outro que espia-se num espelho, votando supostos destinos que reproduzem a identidade de rebanho numa escala global. Metáforas do contemporâneo, vemos destinos traçados sobre o paradoxo da valorização da variação e dos prazeres polivalentes e mutáveis que fazem o sujeito superestimar o prazer sensível, em que o importante é estar disponível ao fluxo do mercado da moda existencial. Assim, turistas da existência, andantes alheios a si mesmos perdem a potência de tecer a vida, já desprovidos da condição de elaborar critérios para o cuidado de si, consomem em suas poltronas modos de vida “new fashion” que lhes absolvem da experimentação. Andantes sedentários são os estandartes de uma vontade despossuída dos afetos, pois outrarse tornando possível nossas potências e vivências passa a pesar como uma enfadonha tarefa, tendo em vista o serviço “delivery” de como celebrizar o desejo legítimo de “ser alguém.” Roger é o típico andarilho deste universo globalizado que carrega a impotência diante da velocidade com que nos vemos desconfigurados. Já não desejamos a desterritorialização; é ela que nos abate cansados na busca de algum repouso onde possamos montar nossas rudimentares estratégias diante do desconhecido. Veloz e gulosamente, a globalização fez da aceleração e do descartável uma espécie de relação mortífera, pois nos sentimos todos embalados por um furacão de objetos, jeitos e trejeitos a consumir.
A flexibilidade nos corpos e nos objetos está em alta depois das rígidas identidades da modernidade, fazendo com que o glamour da idéia de mudança se coloque como disfarce para o desconforto e a angústia sentidos diante da liquidez dos valores. As perdas nas suas diferentes intensidades produzem desassossego e é preciso tempo para acolhimento e elaboração, a fim de que possamos fazer outro estado para nossa existência. Conforme Cioram (1995, p.73), toda escolha tem seu preço e compõe o destino, visto que qualquer movimento implica uma perda.
Nossa força, a cada instante da vida, advém de nossos esquecimentos, mas não da perda da memória. A memória tem a honra da lembrança, mas seu oposto, o esquecimento, permite o desfecho do destino que nos coloca diante de outra possibilidade na vida, resignificando a lembrança.
Neste tipo de programa, somos convidados para que nossos modos de existência sejam renovados de acordo com o mercado da aparência, mostrar-se ao outro que, supomos, solicita nos ver. Sujeitos turistas de si mesmos peregrinam no interior do circuito de uma dupla engrenagem: de um lado, a perda acelerada de referenciais e, de outro, a oferta de signos e comportamentos estereotipados que desconfiguram os mundos e aparentemente suprimem o vazio. Sempre em movimento, sem refúgio, perde-se a condição mínima de realizar encontros diversos, como roteiro das subjetividades, o que nos aliena da tarefa da auto-reflexão. Segundo Nietzsche (1881/2004), é no processo reflexivo que realizamos o trabalho de aprofundamento e interpretação das nossas emoções, representações, afetos e impulsos.
Sabedores de que todo conhecimento consciente e discursivo é ficcional e perspectivo, esta tarefa passa pela crítica das supostas verdades que a consciência insiste em comunicar e que uma dada sociedade insiste em impor. Esta forma de perceber a produção de subjetividade desconhece que a desterritorialização é um meio de encontro e que a produção de uma linha é constituída de infinitas probabilidades do “e” e não do “ou”. Trata-se de conjunção e não de binariedade ou de exclusão. A desterritorialização é, pois, a conjugação do coletivo, da velocidade-movimento e da rostidade, pois o campo das probabilidades aqui não é dado por um método de sorteio onde temos uma única chance a cada vez que se combinam os heterogêneos; ao contrário, nossa geografia é composta de linhas diversas e elas não sabem necessariamente sobre qual linha delas mesmas estão e nem por onde fazer passar a linha que se está traçando.
É por isso que Deleuze (1998) diz que devemos nos servir da solidão como meio de encontro onde o deserto seja o campo da experimentação sobre nós mesmos, uma vez que esta é nossa única identidade. Nossa única chance para todas as combinações que nos habitam é tomar a vida como movimento de aprender e não como a busca do resultado de saber. Sob esta perspectiva, se faz necessário um pensamento afirmativo e não um pensamento- julgamento, uma vez que a maneira de pensar baseada no julgamento acredita em valores pretensamente superiores que devem ser seguidos e cabe à pessoa tornar-se compatível com tal verdade. Este princípio deprecia a vida e torna cada sujeito um “carregador”, impedindo a criação de novos valores. “Nada é mais oposto ao criador do que o carregador.
Criar é aligeirar, é descarregar a vida, inventar novas possibilidades de vida. “O criador é legislador dançarino,” afirma Deleuze (s/db, p. 19).
Em síntese, nosso personagem andante de uma vida segmentarizada pelo roteiro televisivo ecoa com suas miudezas a vida de cada um: carregador e dançarino, que somos todos. Fazer a vida sem fardos pode ser exatamente o que se oferece ao homem atual que cobiça o prazer como fórmula ontológica. Tornar aque- le que busca a leveza um corpo acompanhado do pesado fardo da forma pré-pronta se apresenta como armadilha, o que já chamamos de dupla captura da vontade que vai configurar uma vida com passos ensaiados. A vontade de ser o que se é Há sempre o que há, e nunca o que deveria haver, não por ser melhor ou por ser pior, mas por ser outro.
Há sempre o que há, e nunca o que deveria
haver, não por ser melhor ou por ser pior,
mas por ser outro. Há sempre...
(Fernando Pessoa, 1986, p.97)
Como este tipo de programa na televisão parece enaltecer as possibilidades de invenção, caberia destacar um último ponto. Vimos que na trajetória de construção de um novo corpo para Roger a vontade de potência esteve capturada tanto na perspectiva de uma vontade de imagem quanto de semelhança. Propomos, então, que o “eu quero” ou “você pode” neste tipo de programa veicula a idéia de uma racionalidade do querer que começa e termina em si mesmo, como se pudéssemos, em algum momento, atender aquilo de que carece o sujeito. É assim que a mídia entra, oferecendo o objeto-imagem como resposta de todo querer, colonizando desejos e produzindo a crença de que a vontade como faculdade humana é atributo pessoal destituído do campo sociocultural.
Já não há nada a construir, o que se mostra como felicidade é uma fluidez, um não parar, ou melhor, quando parar você terá acesso ao manual de instrução sobre o que deve ser a sua vida para ser saudável: ser igual a uma imagem que a tela traz, repete, insiste com sua presença.
Produz-se aí uma inversão no querer: já não quero aquilo que advém da trabalhosa negociação com minha existência, mas aquilo que especularmente me está ofertado. É nesse jogo midiático, que transforma o mundano em espetáculo, que a vontade perde potência e busca configurar seu querer naquilo que monta uma imagem, uma vontade de imagem baseada na idéia de que esta possa sustentar a existência. De um lado, trata-se de uma imagem predefinida e objetalizada. De outro, a própria imagem que foi buscada é engolida por sua curta validade, ou seja, tão pequena é sua durabilidade quanto mais rápida ou esvaziada foi sua construção. Habitantes de um planeta globalizado e, esvaziados dos sentidos singulares, consomem a idéia de que se pode existir desde o que se parece ser.
Desta forma, a singularização parece não fazer o menor sentido quando numa sociedade líquida (Baumann, 1998), a incerteza não se limita à própria sorte e aos dons de uma pessoa, mas se expande para a própria configuração do mundo e a maneira de viver nele em relação ao coletivo, destituindo aquilo que engrandece a alma, ou seja, a quantidade de insuportável que ela assume para escapar à esterilidade (Cioran, 1995).
Todavia, o conceito nietzschiano de vontade de potência desmonta a máxima do “querer é poder”, ou, ainda, do “eu quero”. Para o autor, a vontade não é obra de um eu conhecedor de seu querer, mas o resultado de um jogo entre sentir e pensar, numa relação de obediência ao comando da força vencedora do momento. É a intensidade do afeto que comanda o querer e a sua liberdade está em poder dispor de si para o ato volitivo. Logo, o poder está sobre si, sobre a potência de afirmar o novo movimento da existência. Em contraste a tal definição, o existir embalado pela vontade de imagem, tal como o programa nos sugere ser necessário, nos torna ausentes de nossas histórias, desprovidos da condição de fazer de nossa auto-imagem uma coleção de instantâneos tecidos no tempo com uma gradual e paciente construção que resulta naquilo que somos.
Na era da existência mediada pela imagem, a recusa de si é o que prevalece, muito embora seja travestida pelo discurso do auto-cuidado. Por outro lado, são limitados os empreendimentos para se fazer uma imagem dada, sejam eles da ordem do corpo ou da alma e, assim, o cuidado de si se apresenta reduzido ao cuidado sobre a imagem num exercício consumista infinito e evitativo do encontro com aquilo que nos tornamos. Por isto, é que Nietzsche (1888/1989) propõe que tomar a própria vida como algo que poderia se repetir é a mais difícil superação que se dá quando ao se aceitar o destino e não mais se esquivar de seu abismo para assumir a atitude do “amor fatti” que ensina: você tornou-se o que é através de erros, tentações, experiências e precisa ter coragem de sustentar suas opiniões como de atacá-las. Conforme o autor, em parte alguma é dado ao sujeito se esconder de si mesmo, por covardia ou preguiça.
Amar o que somos compreende o exercício máximo da vontade de potência que se renova da tensão entre o plano dos afetos e os territórios a serem refundados. São os agenciamentos entre múltiplas linhas de existência e não um a priori do que se deve ser que possibilitam a vida que por si vive da multiplicidade.
Outra é a perspectiva que traz este novo tempo, a de aderir a uma moralidade de “programas” que nos oferecem a estrada mais rápida, única e curta para a realização de nossas empreitadas, o que parece algo sedutor diante de um enorme hiato entre ter nascido humano e fazer desta humanidade um constante outramento. Desterritorializados, assustados, apressados, buscamos caminhos estriados, tal como Roger, seduzidos pela idéia de atalho e conforto, com a esperança de alcançar esplendores indizíveis.
Referências
Baumann, Z. (1998). O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar.
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Recebido em 20 de outubro de 2006
Aceito em 1º de junho de 2007
Revisado em 8 de agosto de 2007
Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. vii – Nº 2 – p. 433-450 – set/2007
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Um comentário:
Que maravilhoso texto dessas duas "monstras" e Mestras.
Carmem foi minha Mestra no pós em Psicologia Social e na formação no Instituto Pichon-Rivière.
Maria Célia uma parceira e interlocutora presente em muitos instantes.
A elas o meu beijo e o meu abraço... bem como agradecimento por quanto pude aprender na sua companhia.
O desejo de imagem, uma idéia muito profícua, nos atinge e transpõe a sociedade de consumo como forma de "assumirmos" identidades-prótese... com o objetivo de adquirirmos alguma visibilidade.
Na sociedade líquida e de consumo, parecer-ser é questão de ordem.
Adquirir visibilidade e ao mesmo tempo ser invisível é enlouquecedor...
Quem perde com isso são as possibilidades de saúde mental... e bem estar psíquico.
Ainda quero falar mais sobre isso... noutra hora.
Esse tema me é muito instigante e o vejo na minha prática clínica, individual e grupal... diariamente.
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