"É preciso restabelecer o sonho. Não a esperança. O sonho!
Sonhar com uma vida diferente, com novas maneiras de viver e de pensar. O sonho nada tem a ver com a ilusão. A concretude da vida, sobretudo das vidas alegres, começa pela potência onírica. É preciso começar a habitar realmente este universo. É preciso que os homens acordem, não todos, é claro, mas pelo menos alguns, porque sabemos que muitos - talvez a maioria - vão continuar dormindo, pior, desejam continuar dormindo; e com ralação a estes, não os perturbemos, desejemos que seu sono seja leve, porém definitivo.
Mas para quem sonha em vigília, sim, estes compreendem a palavra invenção. Sabem que não há mundo pronto. O mundo que os homens chamam real não existe. A realidade não é algo acabado cujo peso devemos carregar. Mundo real? É preciso que o inventemos. A realidade é produção desejante, não acomodação resignante. A adaptação a uma suposta realidade já configurada é uma tendência própria daqueles que gostam de se conservar, de se preservar, de se proteger; é a inércia preferida pelos corpos impotentes, cujo desejo faliu e que precisam se garantir contra o devir, na estupidez de um modo de vida burguês.
As vidas ativas, ao contrário, não acreditam na adaptação a uma suposta unidade ou substância do real, mas na criação de multiplicidade singulares moventes, onde nenhum movimento paralisador subsiste. Elas se movem no seio da metamorfose eterna enquanto artistas sem identidade. O indivíduo deixa de ser substância; o eu pessoal é demolido; o nome próprio emerge para designar intensidades nômades.
Eu não sou eu, sou nós, sou de natureza múltipla, sou uma pluralidade de forças, uma composição de afetos diversos que tecem o corpo. Nessas condições dissolvem-se a identidade do eu e a semelhança ao tu. Não somos iguais perante qualquer lei nem tampouco semelhantes uns aos outros.
Tudo o que os cabe como artistas é afirmar nossa própria diferença e as diferenças de tudo o que nos cerca ou nos afeta. Não há uma lei transcendente à vida que ordene nosso ser ou nossa maneira de agir à qual devemos obedecer.
Tudo o que a vida e o acaso exigem de nós é que sejamos fortes, isto é, que saibamos selecionar nossos encontros e produzir, a partir de nós mesmos, os agenciamentos que nos fortaleçam para que sejamos dignos da beleza desse universo, para que possamos jogar com desenvoltura e liberdade e criar novas constelações, novos caleidoscópios, novas diferenças, novos brinquedos." (Fuganti, 1996, p. 69)
FUGANTI, Luiz Antonio. Saúde, desejo e pensamento. Saudeloucura. São Paulo: Hucitec, no. 2, p. 19-82, ago. 1990.
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