28 abril, 2009

Mage, wizard and mago











Palavras poéticas sobre o nada... e o tudo



Quem já viveu e criou seu mito-reconhecido (ou não) como-mito
sabe o quanto de tudo há nesse nada...
E sabe, também, de como nada nesse tudo.

Sem Nada

Na ciência exata,
na palavra abstrata,
no retalho das horas
ou no inteiro do meu corpo,
te quero.
Como meu inverso complexo
ou o sonho mais simples.
Como meu zelo concreto
ou meu oceano deserto.
Se você desiste,
eu insisto.
Se você se curva,
eu me levanto.
Se você se entrega,
eu me rebelo.


Se você duvida,
eu acredito.
Se você teme,
eu confio.
Não que eu seja melhor,
mas pra não acordar com o arrependimento
batendo em minha porta
e ainda te carregar aqui dentro
sem poder fazer nada.
Pois você vicia
e não quero cura.
Você fascina
e não tenho domínio.
Tenho apenas meus desejos,
que em segredo,
colocarei dentro de ti.

Cristian Ribas



25 abril, 2009

OS SOBREVIVENTES FALAM, por Jorge Volnovich



OS SOBREVIVENTES FALAM
Jorge Volnovich

Os mitos são analisadores da história e através dos mesmos emerge o inconsciente da humanidade. Da mesma forma, os mitos familiares designam e produzem lugares subjetivos, memórias e afetos tanto singulares quanto coletivos numa sociedade. Minha própria história está marcada por um mito: meu avô materno, intelectual e membro ativo da comunidade judaica da Argentina, escreveu um livro. Seu título era “Os sobreviventes falam”.

Desde criança escutava, nos relatos cotidianos familiares, o que achava uma verdadeira façanha e nem imaginava sequer imitá-la. Ter um avô judeu, do povo, do livro, escritor de um livro sobre os testemunhos dos sobreviventes do Holocausto, era um motivo de orgulho muito antes de haver lido o mesmo.

Devo confessar que, apenas na minha velha adolescência, tive a oportunidade de ler suas páginas, e resultaram tão traumáticas que decidi considerá-las chatas. De alguma forma, o mito superava a realidade – como todos os mitos – e ficava inscrito no desejo familiar de eternizar um vínculo que honrava a gente. Mais do que isso, o livro tornava a nossa família sobrevivente, inaugurando a onipotente idéia de que éramos capazes de sobreviver a todas as doenças, a qualquer desastre, até às guerras que tivéssemos que padecer.

Ah, doce onipotência aquela que acompanha a infância e a adolescência! Garante que sempre sobre-vivemos e não apenas podemos superar toda adversidade, mas que estamos além da vida e além da morte.

E não é o caso que o mito tenha funcionado plenamente no que a mim diz respeito!
Com efeito, como médico e psicanalista de crianças decidi, ou melhor, dizendo, o devir me levou a decidir começar a trabalhar, aproximadamente em 1995, com crianças e adolescentes objetos de maus-tratos, negligência e abuso sexual por parte dos responsáveis em protegê-los, o que envolvia, além da própria família, as instituições educativas, religiosas ou desportivas.

Comecei, então, a escutar os relatos dos meninos e das meninas, assim como dos adultos que foram crianças vítimas de maus tratos, e percebi que, em cada escansão traumática, falava um sobrevivente.

Os sobreviventes falavam para mim numa sociedade que proclamava, e ainda proclama uma forma de vida centrada na tecnologia e no gozo do consumo, como se as megalópoles fossem um gigantesco Shopping Center, enquanto seus relatos revelavam a existência de um campo de concentração e de trabalhos forçados sem esperança. Como sustenta Giorgio Agamben, existe uma vida “nua” oculta pela forma de vida pós-moderna e desta vida “nua” falavam e continuam falando para mim os sobreviventes.

O Rio de Janeiro é uma cidade de sobreviventes. Na sua memória estão inscritos o Massacre da Candelária, a Chacina de Vigário Geral, a extrema pobreza, a indigência e a mendicância, junto com os sucessivos fracassos da democracia representativa, o totalitarismo militar de 64, com seus mortos e desaparecidos, e tantos outros traumas sociais, políticos e subjetivos que, diante disso, qualquer catástrofe natural ou ambiental costuma parecer uma banalidade.

O mais importante é que todos esses “desastres” afetaram profundamente a subjetividade singular e coletiva dos cariocas. Ao mesmo tempo, a elaboração traumática dos mesmos resulta num penoso e triste percurso de exílios a outros países e “insilios” – neologismo criado por Hernan Kesselman - nos condomínios, casas, apartamentos ou comunidades fechadas, de retornos desses exílios e seus respectivos “insilios”, de tentativas frustradas e insistentes de reparar o irreparável.

Mas, caso tenha aprendido alguma coisa escutando os sobreviventes, isto é - que se sentem duplamente culpados - culpados de terem sido parte do ato que os vitimizou e culpados de terem sobrevivido ao mesmo.
Como um pêndulo em seu movimento incessante, o discurso das vítimas aponta no seu compasso o se desculpabilizar por terem sido vítimas, considerando que os agressores não apenas não sentem culpa, e caso tivessem uma outra oportunidade, atacariam de novo. No outro ápice do movimento pendular, a necessidade de se desculpabilizar por sobreviver e não haver morrido como os outros.
O Rio de Janeiro está cheio de vítimas que se sentem culpadas de terem sido vítimas e de sobreviventes que negam sua condição como tais.

Assim sendo, o pêndulo da subjetividade na nossa cidade torna-se uma tentativa permanente de esquecer e de se dissociar esquizofrenicamente, enquanto se exigem reparações impossíveis. Ou procuram-se desesperadamente culpados nos guetos impostos às minorias discriminadas e às maiorias supostamente incluídas.

Os sobreviventes falam e escutando suas palavras percebi até que ponto o esquecimento do trauma os condena a repetir ativamente os maus tratos que sofreram passivamente ou, muitas vezes, a trocar a categoria deste trauma (uma boa pancada) por uma omissão absoluta de qualquer limite às demandas dos outros. Não podemos ficar surpresos de que na nossa sociedade o autoritarismo tenha se transformado em vazio, mergulhando grande parte do nosso povo não apenas na categoria de excluídos, mas, fundamentalmente, na de esquecidos.

Os sobreviventes falam e escutando suas palavras constatei que, muito embora o autoritarismo e a ditadura violenta da paixão patriarcal tenham deixado marcas indeléveis nas mentes, nos corpos e nos corações, não são menos intensas essas marcas a respeito dos que calaram frente às feridas sofridas.
Com efeito, crianças e adultos que alguma vez o foram repetem sem cessar que o agressor é ainda mais perdoável que aquele que teria que tê-lo protegido e não o fez. Não é um erro: o inconsciente sabe que nunca o pior inimigo pode ser mais fatal que o silêncio do melhor amigo.

Os sobreviventes falam e escutando suas palavras ganha sentido para mim o significado da palavra refém.
D
e forma constante, os sobreviventes do Holocausto tentaram explicar que sempre foram reféns do nazismo e de suas próprias esperanças, ainda que não tivessem mais esperanças. Da mesma forma, toda vítima de maus tratos ou abuso sexual transmite a vivência de ter ficado numa armadilha, como refém do agressor, o que a levou a pensar que, embora sofrendo, melhor continuar suportando de forma masoquista a dor do que não achar nenhuma outra saída que não fosse a própria morte.

Podemos pensar que os cidadãos cariocas hoje são reféns de políticos, narcotraficantes, bandidos e até da culpa pela sua própria história?
Para não desmentir Foucault, os micropoderes reproduzem o caráter de refém que adotou a subjetividade singular e coletiva da cidade, que não é diferente no mundo globalizado que vivemos.

As crianças são reféns de um sistema educativo e familiar que diz que dá muito e na verdade oferece muito pouco. Os consumidores são reféns das leis do mercado. Os profissionais, em especial os que trabalham na saúde, são reféns de um Estado que os “libera” para serem autônomos e, ao mesmo tempo, os condena a viverem na precariedade.

Talvez o maior pecado cometido pelos governos atuais e passados seja precisamente não quebrar a condição de refém da nação brasileira, tanto das forças econômicas externas, quanto dos corruptores e corrompidos internos, o que explica parcialmente a cultura da precariedade na qual vivemos. Nesse sentido, sem dúvida, a maior parte dos brasileiros é campeã em sobreviver em condições precárias e ainda mais precárias... Sempre haverá espaço no Brasil para uma maior precarização da vida, dívida humana que o Estado não pode pagar com precatórios.
Os sobreviventes falam e escutando suas palavras ganha corpo e sentido o aforismo: “Não esquecer, não perdoar!” que nutriu as gerações posteriores ao Holocausto e hoje anima o discurso de várias organizações dos direitos humanos, como Tortura Nunca Mais.

Esse lema, “não esquecer, não perdoar!”, não fica restrito à procura de justiça e até de vingança inconsciente, que almeja toda sociedade contra os agressores, mas encontra sua maior potência quando ajuda a considerar sempre presentes as condições que possibilitam o surgimento do fascismo e do totalitarismo nas suas versões tupiniquins. Por isso é bom lembrar que numa cidade de sobreviventes, as leis podem ser bem mais duras, mas não conseguirão inibir os agressores, nem tornar as pessoas mais justas.

Ao mesmo tempo, quando falam os sobreviventes também é possível perceber a dignidade de seu discurso. Embora vivendo em condições precárias, alguma coisa dessa dignidade se torna corpo e merece que não seja letra morta o que chamamos “direitos humanos”. Mas quando me refiro aos direitos humanos, estou aludindo aos direitos de todos os habitantes deste planeta, não apenas aos meus direitos ou aos nossos, como bem assinala Gregório Baremblitt.

Talvez a maior dignidade do discurso dos que sabem que são sobreviventes deva-se ao fato de que não têm álibi, condição essencial, segundo Jacques Derrida, para retornar a certa condição humana perdida. A sociedade carioca, a que nega a condição traumática da história e a vida que tem que viver, fez do álibi um sinônimo de existência, considerando o cinismo que impregna as palavras dos políticos, dos intelectuais, dos profissionais, dos sindicalistas e, fundamentalmente, dos meios de comunicação.

Não falo de hipocrisia - porque em última instância os hipócritas vivem de álibis para sustentar o saber recalcado e esquecido - mas de cinismo porque, ainda sabendo o que acontece na nossa cidade, o desmentem sempre. Como Diógenes, nós, os cariocas, procuramos um discurso honesto e não conseguimos achá-lo nem em nós mesmos.

Talvez esse discurso só seja honesto, quando parte dos sobreviventes que sabendo da sua condição falam dos traumas que ninguém quer escutar.
De fato, o discurso do sobrevivente fica em oposição à razão neo-eficientista que domina nosso planeta, pela qual todo ser humano é uma sofisticada máquina eficiente, sujeito apenas às palavras de ordem com as seguintes instruções: caso não funcione corretamente, “desligue e ligue de novo”, e caso nem assim tenha jeito, “compre um outro, novinho em folha”. Com a potência performática deste tipo de discurso os cariocas devem ficar ligados ou des-ligados e muitas vezes descartados, no caso de apresentarem defeitos insalváveis.
Pelo contrário, escutar um sobrevivente significa mergulhar permanentemente no sentido trágico da existência, o que o consumo nega num universo de banalidades efêmeras.

Em cada frase, em cada silêncio existe uma dor e uma falta de reconhecimento dos outros para com essa dor, que desenvolve um universo paranóico que não permite nenhuma dissociação criativa, a menos que seja absolutamente esquizofrênica. Não é fácil suportar, no dia a dia, o falar um sobrevivente e, sem dúvida, muito menos fácil é compreendê-lo nesse pouco de heroicidade outorgado pelo saber demais sobre a morte e a vida.

É necessário, então, que um sobrevivente seja compreendido por um outro sobrevivente?

Muitos de meus amigos e colegas que entregam suas vidas e seu trabalho à proteção dos direitos de crianças e adolescentes neste país, sabem muito bem que o trauma dos sobreviventes é contagioso e costuma penetrar na carne dos que tentam dar um continente a seu discurso. Também sabem da vontade de beber o xarope do esquecimento por parte de uma sociedade ansiosa por reivindicar o pragmatismo de um corpo cheio de reais ou, pelo contrário, se identificar à figura do justiceiro por mão própria, ou promovendo leis mais duras contra os adolescentes cada vez mais novos.

Com efeito, são tantas as armadilhas cotidianas que finalmente costumamos cair nelas e, nesse sentido, devo reconhecer que, caso o inconsciente não arme ciladas, os psicanalistas são especialistas em gerá-las e cair nelas. E quando falo dos psicanalistas, faço-o não só em função de minha própria implicação, mas também pelo fato de sermos, em muitas ocasiões, responsáveis em escutar falar os sobreviventes e acabamos adocicando a crueldade do político real, numa rede interminável de fantasias familiares ou masoquismos irrestritos.

Não acreditem que falo dos psicanalistas, dos psicólogos ou dos psiquiatras apenas, mas também o faço de uma sociedade que coloca a sobrevivência como um problema de Saúde Mental!

Não é assim! Trata-se de um problema político-social-econômico e subjetivo, que nenhum tipo de hipercodificação - tipo stress pós-traumático - presente no CID-10 ou DSM-4, conseguirá resolver, a menos que pretendamos estigmatizar e enquadrar a vítima no seu nome de vítima. Aliás, a mais moderna parafernália de cura para os sobreviventes leva o nome de resiliência, uma outra palavra de ordem performática, destinada a absolver o Estado da responsabilidade para com seus cidadãos, e ao conjunto da sociedade da culpa frente à desigualdade social, criando a fantasia de que uma potência individual endopsíquica e biológica possa transformar um sobrevivente num mestre de si mesmo e dos outros.

Isto porque o problema da sobrevivência em nossa cidade, neste continente, em nosso universo, não é um problema menor que possamos atribuir às camadas pobres da população deste mundo. Muito menos de todos aqueles que se seguram na inclusão social pagando o preço enorme de serem normais e da loucura. A questão é que o discurso dos sobreviventes institui, antes de qualquer coisa, o discurso da resistência política e subjetiva aos mecanismos de captura alienantes, que tentam globalizá-los e adaptá-los através de uma tecnocracia cientificista, dentro dos códigos do stress pós-traumático. Como núcleo duro, trágico, ferida aberta à dor, o sobrevivente resiste, insiste e diz: “eu não me importo com o stress pós-traumático, muito menos com a resiliência. Nunca Mais!”.

Os sobreviventes falam: O livro que meu avô escreveu, o livro com os testemunhos dos sobreviventes do Holocausto, é como um Nunca Mais. Talvez as jovens gerações não consigam ler seu texto duro ou considerem o mesmo chato pela intensidade traumática que propõe, mas sempre seu lema será um grito de dor e de esperança.

Os sobreviventes na nossa cidade são um mito, e dia a dia percebemos que a realidade supera o mito. Sustentam essa hiper-realidade homens e mulheres em farrapos, crianças e adolescentes na rua, milhares de vozes e rostos que não se conformam com as migalhas da justiça social e da outra. Alguns estão tatuados, como os sobreviventes dos campos de concentração: são os adolescentes que, em vez de números, portam na superfície do corpo as imagens da sua identidade.

Outros têm tatuada a alma e falam de um outro mundo possível: são os loucos que, ainda em pleno século XXI, têm negada sua liberdade e continuam recolhidos em hospitais psiquiátricos, que são verdadeiros campos de concentração, como sustentava Franco Bassaglia. Ainda mais, quando o Presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro, assim como o Presidente da Associação de Psiquiatras atacam qualquer tentativa de levar adiante a reforma psiquiátrica com um discurso obscurantista, como bem assinala Eduardo Losicer num belo artigo a respeito.

Não faltam na longa listagem de excluídos todos os brasileiros estrangeiros na cidade maravilhosa, condenados a morar nos guetos desta megalópole, chamados antigamente favelas e, hoje, comunidades, como se mudando a semântica, mudasse a ideologia que anima esse confinamento.

Ainda lembro dos desenhos realizados pelas crianças numa Associação de Moradores de uma dessas comunidades, onde os foguetes espaciais e bonecas terrenas eram confundidos com desenhos da polícia, das armas e das questões da vida e da morte na favela. Esses desenhos, ratificando a condição de testemunhos de sobrevivência, como alguma vez relatou uma colega nossa, são semelhantes aos desenhos feitos pelas crianças nos campos de concentração nazista, que podemos observar na mais velha sinagoga de Praga.

Enfim, são tantas as vozes brasileiras que sustentam esta realidade mítica, que não seria suficiente apenas um trabalho deste tipo para contar todos os testemunhos de sobrevivência.

Mas como falava no início destas dolorosas palavras, meu próprio mito familiar foi criado para enaltecer. Da mesma forma, o sobrevivente é testemunha do privilégio da vida sobre a morte, da resistência aos ícones da estupidez humana, da transformação da vergonha em manifestações de dignidade.

A nós - que escutamos o discurso duro e traumático dos sobreviventes, seja nos grandes centros urbanos como nas comunidades mais afastadas e marginalizadas, sejam estes crianças, adolescentes ou adultos - a nós compete também sobreviver e saber que as palavras que nós mesmos dizemos estão carregadas dessa dimensão trágica que nos implica.

Isto é, pois, o que me foi ensinado ou o que tenho aprendido escutando os sobreviventes: a sobrevivência é um mito ativo que não está reduzido ao grito e à dor. Exige justiça e a obrigação de rejeitar a impunidade que sempre é o principal segredo do totalitarismo, como o foi antes do patriarcado e hoje o é do mercado.

Disso, falam/falamos os sobreviventes.

O Pensamento Complexo de Edgar Morin e sua Ecologia da Ação, por Angélica Sátiro



O PENSAMENTO COMPLEXO DE
Edgar Morin E SUA ECOLOGIA DA AÇÃO
por Angélica Sátiro*

A Revista Linha Direta vem realizando um interessante trabalho de intercâmbio e divulgação de idéias de pensadores contemporâneos através de sua seção HIPERTEXTO.

Preservando um espaço que vai além de uma simples entrevista, convida intelectuais inquietos e produtivos, agentes de mudança e de transformação para "dialogar" com nosso leitor. Nesse número, fomos brindados com um presente: o sorriso amável do francês Edgar Morin.

Edgar Morin (Paris, 1921) é considerado um dos maiores pensadores do século XX. É doutor honoris causa em 17 universidades de diversos países, tais como Itália, Portugal, Espanha, Dinamarca, Grécia, México, Bolívia e Brasil (em João Pessoa e Porto Alegre). Para estudar os problemas do humano e do mundo contemporâneo, passa por distintas áreas do conhecimento: ciências biológicas, ciências físicas e humanas entre outras. Tem formação pluridisciplinar, é sociólogo, antropólogo, historiador, geógrafo e filósofo, mas acima de tudo é um intelectual livre que nos propõe uma visão transdisciplinar do pensamento. Tem mais de 40 livros de Epistemologia, sociologia, política e antropologia, publicados e traduzidos em diversas línguas. Merece ser destacada sua obra de 4 volumes, intitulada El Mètode que trata da transformação das ciências e do seu impacto na sociedade contemporânea. É diretor do Centro de Estudos Transdisciplinares em Paris, (EHESS), presidente da Agência Européia de Cultura da UNESCO e presidente da Associação de Pensamento Complexo. É um apaixonado pelas artes em geral, principalmente pela literatura e pelo cinema. E gosta de ressaltar que durante a II Guerra Mundial, foi combatente voluntário da resistência francesa nos anos de I942 a 1944, lutando contra o nazismo e o stalinismo.

Nosso encontro ocorreu no cenário gótico da Universidade de Girona, na Espanha. Edgar Morin estava lá como convidado do professor José Maria Terricabras, da cátedra Ferrater Mora, a quem devemos nosso mais caloroso agradecimento por facilitar essa entrevista.

Linha Direta Qual é a educação necessária para o século XXI?

Edgar Morin Há que se fazer uma total reorganização da educação. E essa reorganização não se refere ao ato de ensinar. Refere se à luta contra os defeitos do sistema que estão cada vez maiores. Por exemplo, o ensino de disciplinas separadas e sem comunicação entre si produz uma fragmentação e uma dispersão que nos impede de ver globalmente coisas que são cada vez mais importantes no mundo. Existem problemas centrais e fundamentais que permanecem completamente ignorados ou esquecidos e que são importantes para qualquer sociedade e qualquer cultura.

Linha Direta O senhor se refere ao seu estudo sobre os sete saberes necessários para a educação do futuro?

Edgar Morin Sim, refiro me aos sete saberes necessários que implicam em ensinar a:

• Reconhecer as cegueiras do conhecimento, seus erros e ilusões.
• Assumir os princípios de um conhecimento pertinente
• Condição humana
• Identidade planetária
• Enfrentar as incertezas
• compreender
• ética do gênero humano

Linha Direta Poderia fazer um comentário mais detalhado para cada um deles?

Edgar Morin Entende se reconhecer as cegueiras do conhecimento, seus erros e ilusões, é assumir o ato de conhecer como um traduzir e não como uma foto correta da realidade. Trata se de armar nossas ates para o combate vital pela lucidez e isso o significa estar sempre buscando modos de conhecer o próprio ato de conhecer:

Por assumir os princípios de conhecimento pertinente, entende se a necessidade de ensinar os métodos que permitam apreender as relações mútuas e as influências recíprocas entre as partes e o todo se mundo complexo. Trata se de envolver uma atitude mental capaz abordar problemas globais que contextualizem suas informações parciais e locais.

Ensinar a condição humana deveria ser o objeto essencial de qualquer sistema de ensino e isso passa considerar conhecimentos que estão dispersos em várias disciplinas como as ciências naturais, as ciências humanas, a literatura e a filosofia. As gerações precisam conhecer a unidade e a diversidade do humano.

Ensinar a identidade planetária tem a ver com mostrar a complexidade da crise planetária que caracteriza o século XX. Trata se de ensinar a história da era planetária, mostrando como todas as partes do mundo necessitam ser intersolidárias, a vez que enfrentam os mesmos problemas de vida e de morte.

É preciso aprender a tentar as incertezas reveladas ao longo do século XX através da microfísica, da termodinâmica, da cosmologia, das ciências biológicas evolutivas, das neurociências e das ciências históricas. É preciso aprender a navegar no oceano das incertezas através dos arquipélagos das certezas.

Compreender é ao mesmo tempo meio e fim da comunicação humana, portanto não pode ser algo desconsiderado pela educação. E, para tanto, precisamos passar por uma reforma das mentalidades.

Por ética do gênero humano, entendo uma abordagem que considere tanto o indivíduo, quanto a sociedade e a espécie. E isso não se ensina dando lições de moral. Isso passa pela consciência que o humano vai adquirindo de si mesmo como indivíduo, como parte da sociedade e como parte da espécie humana. Isso implica conceber a humanidade como uma comunidade planetária composta de indivíduos que vivem em democracias.

Linha Direta Sua proposta é muito interessante, mas parece ir contra um movimento que tem ocorrido tanto na Espanha, quanto no Brasil. Trata se da proposta de realizar avaliações que buscam medir a quantidade de conhecimento dado por essas disciplinas fragmentadas. Com base em dados vindos dessa forma de avaliar, separam se os alunos pelo nível de informação que foram capazes de reter e se afirma uma média educacional nacional. Como o senhor vê esse tipo de iniciativa?

Edgar Morin Não sou a favor de nenhum tipo de segregação, uma vez que ao longo da vida passamos por tudo: atrasos, progressos, encontros, desencontros, crises. Esse tipo de avaliação é uma forma de segregação que não ajuda a organizar o conhecimento e suas relações entre as distintas informações. Os dados e fatos que cabem em avaliações desse tipo não são conhecimentos, representam um vazio que não reflete nenhum dos sete saberes enunciados anteriormente.

Linha Direta Um outro contra exemplo para a idéia que o senhor apresenta seria o ocorrido em I I de setembro de 2001, não é verdade?

Edgar Morin É evidente que sua pergunta é muito importante e pede um tipo de resposta que vai além do tempo que podemos dedicar a essa entrevista. Mas vou tentar resumir o que penso sobre isso. Temos ouvido falar de choque de civilizações em discursos pessimistas que revelam um maniqueísmo simétrico com direção trágica. De um lado, o fenômeno da modernização que é baseado na homogeneização geral, é um processo que suscita diversos tipos de reação nas civilizações mais antigas: Elas se aferram a seu passado, às suas raízes e à sua religião, porque têm medo de perder sua identidade. De outro lado, fracassou no mundo ocidental, a fé no progresso tecnológico e econômico como algo que nos conduzia à um mundo melhor. Já se sabe que esse progresso pode gerar inclusive o fim do mundo com uma guerra atômica.

Mas, não podemos entender as conseqüências possíveis desse momento como determinação histórica. E, portanto, não devemos aceitar a idéia da inevitabilidade da guerra.

Linha Direta Mas parece que temos outros indícios que também vão a direção contrária ao que o senhor propõe. Estamos vendo que tanto na Europa quanto em outros países do mundo, a extrema direita tem avançado de modo muito evidente. Como o senhor vê esse retorno à ideologia de extrema direita?

Edgar Morin Concordo que haja uma ressurreição de coisas do passado que deveriam ter sido esquecidas ao longo do tempo. Mas, a questão é saber se isso é algo que permanecerá minoritário e localizado ou se pode vir a assumir grandes proporções em todo mundo. Compreende se que isso ocorre em função do clima de incerteza atual e da angústia gerada por essa política do dia –a dia que não dá esperanças de melhora para seus cidadãos. A globalização e a imigração que vem principalmente da África e dos países da América do Sul têm causado na Europa um aumento da necessidade de identidade nacional. Essa identidade de pátria faz com que as relações de cooperação internacional fiquem frágeis, além é claro de dar lugar a inúmeros tipos de ações racistas. A imigração da forma como está ocorrendo tem trazido questões complexas como a marginalização, a delinqüência juvenil e o conseqüente aumento de violência urbana. Da forma como aparecem, esses são fatores que favorecem a extrema direita.

Mas volto a insistir que não são determinismos, o futuro está limpo e não se deve pensar que o perigo é inevitável. Precisamos estar em estado de vigilância para que isso não cresça, mas não em estado de alarme como se esse fosse um mal inevitável. Para contrapor a tudo isso está a educação. E é por isso que venho desenvolvendo os últimos volumes da obra . O Método. O quinto volume está dedicado à educação e no sexto volume, desenvolvo minha proposta ética de resistência à crueldade do mundo.

Linha Direta O senhor poderia nos explicar as linhas gerais dessa sua proposta ética?

Edgar Morin Falo de autoética, de sócioética, de antropo ética e de ética planetária. Isso porque vejo o indivíduo, a sociedade e a espécie como categorias interdependentes. Diante de toda a complexidade contemporânea não há como descartar alguma dessas perspectivas. O problema atual da ética não é o dever, a prescrição, a norma. Não precisamos de imperativos categóricos. Precisamos saber se o resultado de nossas ações corresponde ao que queríamos para nós mesmos, para a sociedade e para o planeta. Já sabemos que não basta ter boa vontade, uma vez que em nome dela foram cometidas inúmeras ações desastrosas. A minha ética é uma ética do bem pensar e está implícito nisso toda a minha idéia de pensamento complexo.

Linha Direta O senhor poderia apresentar uma síntese de sua teoria do pensamento complexo?

Edgar Morin Muitos me vêem como sintetizador, unificador, afirmativo e suficiente que trata de apresentar uma teoria sistemática e global. Mas, devo admitir que isso é um engano, eu não tenho uma teoria que sai do bolso afirmando: "aqui estou, podem jogar fora seus paradigmas anteriores!" Claro que essa proposta de pensamento complexo é fruto de um esforço em articular saberes dispersos, diversos e adversos. Mas a própria idéia de complexidade conduz a uma impossibilidade de unificar, uma vez que parte da incerteza admite o reconhecimento cara a cara com o indizível. A complexidade não é uma receita que eu dou, é apenas um convite para a civilização das idéias.

O pensamento complexo é a união entre a simplicidade e a complexidade. Isso implica processos como selecionar, hierarquizar, separar, reduzir e globalizar. Trata se de articular
o que está dissociado e distinguido e de distinguir o que está indissociado. Mas não é uma união superficial, uma vez que essa relação é ao mesmo tempo antagônica e complementária.

Linha Direta O senhor gostaria de enviar alguma mensagem especial para os leitores da Revista Linha Direta?

Edgar Morin Sinto me muito bem no Brasil e agradecido pelo reconhecimento que me dedicam, no mês de agosto de 2002, quando estive em São Paulo. Sempre estou em contato, porque me sinto em harmonia com os pensadores e educadores brasileiros, vejo que tratamos questões similares com enfoques similares e isso me alegra muito. Que sigamos com nossa ecologia da ação!

Linha Direta A revista agradece ao professor Josep Maria Terricabras e à cátedra Ferrater Mora da Universidade de Girona pelo apoio à realização dessa entrevista, bem como à professora Irene de Puig pela facilitação às informações. Agradece evidentemente ao entrevistado que, por sua atitude durante a entrevista, demonstrou ser coerente com as idéias que apresenta. Pedimos permissão a ele para encerrar essa entrevista citando o:

"Somos habitantes da Terra. Citamos a Holderlin e completamos sua frase dizendo: prosaica e poeticamente o homem habita a Terra. Prosaicamente (trabalhando, fixando se em objetivos práticos, tentando sobreviver) e poeticamente (cantando, sonhando, gozando, amando, admirando), habitamos a Terra.

A vida humana está tecida de prosa e poesia. A poesia não é só um gênero literário, é também um modo de viver a participação, o amor, o fervor, a comunhão, a exaltação, o rito, a festa, a embriaguez, a dança, o canto que transfiguram definitivamente a vida prosaica feita de tarefas práticas, utilitárias e técnicas. Assim, o ser humano fala duas linguagens a partir de sua língua. A primeira denota, objetiva, funda se no lógica do terceiro excluído. A segunda fala através da conotação, dos signifcados contextualizados que rodeiam cada palavra, das metáforas, das analogias, tenta traduzir emoções e sentimentos, permite expressar a alma. (...) No estado poético, o segundo estado se converte em primeiro. "

Esperamos que a entrevista inspire o leitor a seguir educando prosaica e poeticamente, lembrando que um estado pode converter se em outro.

*Angélica Sátiro é escritora, educadora e doutoranda na universidade de Barcelona. Investiga as relações entre criatividade e ética. e mail: angelsatiro@hotmail.com

A um ausente, por Drummond... e a Vida das Coisas



Nossos amores chegam e ficam
Nossos amores chegam e vão.
Nossos amores nem chegam a chegar.
Nossos amores nem chegam a partir, quando os queremos longe...
Nossos amores...


Dentre As coisas da Vida está a Vida das Coisas, ou seja, o fim, a saudade, a morte, o abandono e/ou os respectivos desejo de continuidade, permanência, vida desejada, sentimento de rejeição e abandono.
Dialógica dos afetos e das práticas sociais e amorosas.

Relacionamentos terminam, começam e se modificam: coisas da vida!
Relacionamentos terminam e terminam: vida das coisas!

Drummond, bastante dramático, acusa, com seu desejo de presença, o "irredutível outro", aquele que não se curva à sua vontade, dele, do Drummond... ou daquele a quem ela fala nessa bela poesia (ou é poema... ainda não sei as diferenças... já que não sou versado nessa arte... coisas da vida... não se pode SER versado em muitas coisas... rsrsrs)

Sobre o fim... ou... "A vida das Coisas"... tempo de duração... que tenha sido eterno enquanto durou.

A duração, ou... o tempo que é ilusão... dada as intensidades do Encontro... pode se perpetuar na lembrança... recuperada pela memória e... transformada em novas leituras: terá havido ruptura? Terá havido antecipação da hora? Terá sido isso que houve?

Desnecessário, embora nem sempre irresistível, pensar no que fiz que provocou sua ida. Partida...
Desnecessário... porque sua ida pode ter sido obra de você, sem ter nada a ver comigo. Nada a ver?

Pode um se afastar do outro sem influência desse segundo?
Perguntas que se tornam inócuas, infrutíferas... porque apontam para o inconcebível... irrecuperável.

O real se impõe, como materialidade, para além do desejo (de presença).
Sim... "você" se foi... e a dor e a saudade ficaram... no seu lugar... em mim, comigo!

Amargo consolo o da memória.
Suave alento o da lembrança!

Mas foste. E... talvez... nunca voltes.

Por isso... você é um ausente.

O que é um ausente? Se, recuperado pela memória, está aqui... sem estar?

Um ausente é aquele que foi e não está.
Ponto.

.....................






A um Ausente



Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste

(Carlos Drummond de Andrade)


24 abril, 2009

Estar bem e estar mal: uma dialógica em movimento ou desdobramento sobre a aprendizagem das esferas concêntricas





Decididamente Mestre, acho que estou sendo claro, e com a grande capacidade de síntese, própria de quem está mergulhando nos oceanos dentro de si (sem deixar de olhar para fora... e ver o céu lá em cima, o sol, as núvens e o próprio movimento da superfície do mar), e consigo passar a constatação do reconhecimento que há entre o eu e o outro. Linha de continuidade. Vivo essa experiência cotidianamente, a cada encontro com o "irredutível outro"... Minha-Nossa Alteridade!

Não se trata só de afinidades, mas daqueles sentimentos e percepções que, baseados no mergulho, dão o tom da mudança que leva à frente... para novos e insuspeitos caminhos que se abrem... na e para a vida, dentro e fora da gente.
Os espelhos que se quebram não deixam de refletir imagens, agora... fragmentadas: cacos que podem ou não se juntados.
Lembro-me muito Mestre, daquela história que nos contou acerca da batalha entre os deuses do Olimpo, razão e emoção.

(Link para essa postagem... Psicologia e Vida Livres: A História contada pelo mago-mor... sobre razão e coração: Cygnus X-1 Book II: Hemispheres Rush ... )

Novas imagens não precisam desse espelho. Podem até precisar de outros...

Reconhecer a doçura, a suavidade, a bondade e até as idiossincrasias não tão "belas" no outro, baseando-se em si próprio, é uma benção!
Somos igualmente diferentes ou diferentemente iguais.

É
Lindo
Perceber
Isso!

A vontade de desistir de tudo ou... de tudo desistir... também me atravessa, em momentos "demasiadamente humanos"... mas, quando vejo e penso: "que tudo é esse?" ... percebo que o "tudo" não passa de uma parte, um fragmento (as vezes grande), mas, ainda assim, um fragmento... um caco!

Nas intensidades desses momentos "fugazes-que-parecem-eternos", o desespero toma conta e... passa a tomar proporções de todo, sem se saber sendo parte: é o humano, demasiado humano.

Precisamos, sinto e penso, adotar outra atitude... algo como ver que podemos nos afastar dessa humanidade viciada por excessos e buscar suavidades ... felinas... caninas... lobais (uivar, porque não?)... baleísticas (kkkk... e nadar) ... voar, como as borboletas... para territórios REAIS mas não contaminados pelos sentimentos de ABSURDO que se apoderam de nós naqueles momentos.


Uma coisa recente que aprendi é: mesmo nos momentos mais difíceis, há... HÁ... MOMENTOS, COISAS, FATOS, ACONTECIMENTOS... bons e felizes... instigantes, que despertam interesse e que nos levam para ações... desejantes.

Pensamentos-sentimentos em conjunção produzem... diferenças de percepção e mudança de atitudes Mestre, tal como você nos ensinou. Estou encantado com essa magia-sem-ritos!

Tudo parece estar interconectado: opostos podem e ESTÃO juntos!

Olhar para ambos e permitir-se sentir e viver a AMBOS é o que eu estou colocando em prática... fazendo experimentações nesse sentido.... e sinto verdadeiros milagres acontecendo!

Talvez por isso o "tom" mágico... que é real...
Uma magia feita de aceitação...
Uma magia feita de revolta-que-alerta-como sinal...
Uma magia que promove mudanças...
Uma magia que se concretiza na experimentação das experiências reais-paradoxais.

Viajei?
Se não, você me acompanhou!
Se sim, você (me) acompanhou também... kkkk
Amo você Mestre!

Permissão para o amor, a doação ... para o fluir... sim, adoro isso!

Também estou no reconhecimento dos territórios de receber, do outro, o que ele tem de melhor... aceitar suas ofertas, oferendas, saberers, afetos, experiências... e o que que ele me entrega... sem que eu me sinta ou sinta que ele... deseja, espera, almeja algo em troca... embora isso possa estar presente... eventualmente!

Nesta caminhada de iniciação permanente nas Coisas da Vida e na Vida das Coisas, permito-me o passo lento-calmo (e o vigor do andar rápido, quando necessário!) e vejo que estou bem... e... aprendendo-apreendendo!
É tão bom Mestre.!

Imagino você dizendo: - Tudo é impermanente. Até isso passa.
Mas também imagino você dizendo: - Aquilo que se apre(e)ende, apre(e)ndido está!

Abraço forte-grande-leve e suave.

Seu discípulo, que já se sabe... co-criador!

(Extraído de "Cartas para o Mestre - quando das experimentações em si próprio. p. 601)



22 abril, 2009

Sentimentos de culpa, reparação e mídia, fragmentos...





Sentir-se culpado é humano
e colocar a culpa em alguém é ainda mais humano.

Que espanto essa moral judaico-cristã: sentimentos de culpa
poderiam ser colocados no lixo (comum) e/ou, quando muito,
reciclados!

Mas... para muitos, a ação que a culpa desencadeia ...
ainda é uma maneira de reparação.

(De "Palavras do mago")

..........................

Mas... para muitos, a ação que a culpa desencadeia ...
ainda é uma maneira de reparação. (???????????????)

Psicanálise: resumindo... a pessoa nessa condição... só consegue se livrar do mal estar gerado pelos sentimentos de culpa ajudando os outros, fazendo "por" eles... para se aliviar e se "redimir".

Tema polêmico, já que atravessa e analisa, exatamente, a idéia dos "bonzinhos-queridos-solidários e voluntários tão... desejados e festejados pela mídia do compromisso social.

Numa ótica (e numa ética) que utiliza a complexidade do pensamento e que se envolve com a produção coletiva, inconsciente e desejante (produção de subjetividade), pode se dizer que, para querer ajudar muito alguém, no sentido do texto acima, é preciso ter feito "muita coisa ruim" para se sentir culpado a ponto de necessitar da reparação como modo expiatório da culpa.

Por outro lado, a mesma mídia e as instituições que a sustentam e dão suporte, como, só para citar quatro delas, a religião, a família, a educação e o trabalho, exercem o seu papel de culpabilizadores, ou seja, formadores de sentimentos de culpa... processo esse que se dá mediante, é claro, todo o referencial dos prescritos da moral... noções de certo e errado, por exemplo, fortemente arraigados... geram enormes sentimentos de culpa nos desavisados e inocentes-úteis... para continuar com a propagação desse vírus destruidor da saúde mental... mas muito desejado pelos... donos do poder.

A produção social e institucional da culpa nada tem a ver com genuínos e singulares sentimentos de amor, solidariedade e acolhimento das necessidades do outro. Tem a ver, sim, com o desmedido apelo à resolução dos problemas do outro sem considerar as potências desse outro e a participação ativa que ele pode ter no processo de ... tomada de consciência e na busca de ações... que o ajudem a resolver seus conflitos.

Ora, dessa perspectiva... os sentimentos de culpa e as ações que eles desencadeiam em direção ao outro... nada mais são do que caminhos dirigidos ao próprio umbigo, ou seja... é em si próprio e tão somente em si próprio que se está pensando... quando se quer aliviar dos corrosivos sentimentos de culpa.

O que dizer, então, da crescente demanda de trabalhos voluntários? Os quais cada vez mais as pessoas aderem com ar de satisfação e sentimentos de tornarem-se úteis? Tudo isso sendo apoiado, estimulado e produzido midiaticamente?

Social e individual são imanentes ... e indissociáveis.


19 abril, 2009

Amores: dois tipos na poesia






O verbo amar

Te amei: era de longe que te olhava
e de longe me olhavas vagamente...
Ah, quanta coisa nesse tempo a gente sente,
que a alma da gente faz escrava.

Te amava: como inquieto adolescente,
tremendo ao te enlaçar, e te enlaçava
adivinhando esse mistério ardente
do mundo, em cada beijo que te dava.

Te amo: e ao te amar assim vou conjugando
os tempos todos desse amor, enquanto
segue a vida, vivendo, e eu, vou te amando...

Te amar: é mais que em verbo é a minha lei,
e é por ti que o repito no meu canto:
te amei, te amava, te amo e te amarei!

(JG de Araujo Jorge-Bazar de Ritmos- 1935)




Regulamento

Eu não juro nada
por coisa alguma,
pois que todo caminho é de incerteza.
A ordem se desarruma,
a história se desajeita,
o arranjo troca e vira a mesa.
Tampouco prometo.
Nesse jogo de regras e tratos,
rolam os dados,
mudam os fatos,
num ciclone célere, inclemente.
Só o que posso fazer é me entregar completamente
a toda causa que eu me dedicar,
a cada tempo que eu puder viver,
a cada amor que me fizer amar"

Flora Figueiredo

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Duas poesias sobre amor e amar
Duas vertentes amorosas
Dois paradigmas:
O amor romântico, arrebatador... quase paixão eterna.
O amar sentindo, movimento, entrega... racional(?)

Intensidades diferentes,
quase opostas,
para dar conta desse sentimento...
tão, tão, tão... corriqueiro, comum
e tão...
tão...
inédito!


Memória, saudade, apego e lembrança





Estes são fragmentos de uma conversa no orkut com a amiga... Ana Lia

Saudade é memória "do tido", do que houve... passado.

No entanto, como há uma hibridização e uma sobreposição entre os tempos passado, presente, futuro... o passado volta através da memória e se atualiza.. vira algo no presente... o que importa é o que se faz com isso...

Deixa ficar? reprime? deslocar? projetar? ou seja... o que o ego faz com isso... já que memória é uma função do ego.

O apego me parece ligado ao não deixar ir... o que já foi... reter... segurar teimosamente e obstinadamente... sem resignificar as lembranças que a memória proporciona, ou seja... dar novos sentidos ao passado NO PRESENTE... RE-LER!

Também vejo relação entre amor, saudade e memória... e tempo ... e espaço... não é confusão... é complexidade!

O mago diria: para perguntas simples, respostas simples e, para perguntas complexas, respostas complexas!

O que eu acredito mesmo É: não há fórmulas.

O amor, já desde Freud... é um amar a si também... no outro.... no que dele me faz ver e descobrir sobre mim... mas, ele também assume, o amor, as feições de um deixar de mim para ver,sentir o outro, naquilo que de mim ele difere... amor à diferença... aquilo que é, está... no outro... qualquer outro!

Desapegar-se não vejo como diminuição do amor ou da importância... vejo como... des-apegar... largar, soltar... você pode amar - a vida inteira - e muito, uma pessoa, por exemplo, e ser desapegado do amor em si e da pessoa... há quem chame isso de amor incondicional... (?)

A memória... vem e, com ela, o convite ao deleite do apego ao "tido"... mas, vem também, o convite ao desapego, ou seja, memória de passado que se atualiza mas que é reconhecida como passado... vem vomo convite ao resignificar... leia-se: dar novos e outros sentidos ao vivido!

Well... isso não tem fim!

O mago é um monstro-querido que vira os valores de pernas para o ar e mostra que há caminhos, muitos, mas que à cada um compete escolher, experimentar os seus...

Apesar disso ele fala nas esferas concêntricas e transpostas... unidas por razão, emoção e ação... é esse tripé que ele sugere como O caminho mais viável...

Imagine as implicações disso no cotidiano...
Juntar ao invés de separar...

Fim das guerras, de todas as guerras...

Razão aqui está sinônimo de racionalidade e não de racionalização...
Emoção aqui está como sinônimo de afetos e afecções... e não como sentimentalismo...
Ação aqui está como sinônimo de atitudes baseadas na realidade (que realidade?)... aquela que é intermediada pelo dentro e o fora; pelo "eu e o outro; pela razão e pela emoção... num contínuo movimento que pede...paradas (sujeito COM pausas)!

A pseudovisibilidade e o desejo de imagem



Na pseudovisibilidade dada pelo desejo de imagem
o que conta não é só "parecer-ser", é preciso convencer
-a si próprio - e ao outro: memórias apagadas, lembranças
esquecidas e submissão ao lugar comum.
Um sujeito assim constituído como identidade-máscara-descartável
é ilusão de realidade... de "ser-real".
A resignificação da lembrança... perde espaço!

(De "Tragédias dos modos de subjetivação atuais -
aforismos intelectivos do Mago-mor")





18 abril, 2009

Vontade de imagem e celebrização do cotidiano na tela





Vontade de imagem e celebrização do cotidiano na tela

Carmen Silveira de Oliveira
Psicóloga.

Doutora em Psicologia Clínica pela PUCSP.
Professora do Mestrado em Psicologia Clínica da Unisinos-RS. Autora do livro “Sobrevivendo no inferno: a violência juvenil na contemporaneidade”, Porto Alegre: Sulina, 2001.

Maria Célia Detoni
Psicóloga.

Psicoterapeuta. Mestre em Educação pela
UFRGS.

Resumo

Neste artigo é analisado um episódio da série “Lente Indiscreta”,
“Straight Plan for The Gay Man”, veiculado pelo canal GNT, em 2005, em que um cidadão comum se dispõe a ver sua imagem pessoal desconstruída diante de milhões de olhos que perscrutam também seus movimentos de construção de um novo corpo.

A
Aborda o interjogo entre visibilidade e intimidade presente em seriados da mídia televisiva contemporânea A partir da idéia de publicização celebrizada da existência, busca-se cartografar os movimentos dos personagens quanto aos diferentes sentidos empregados no uso da vontade de potência.

Reflete-se sobre a negação da existência
como trabalho pessoal de construir possibilidades de ser e estar no mundo, uma vez que a subjetivação vê-se capturada por mudanças que devem acontecer com velocidade, sem imprevistos e com metas previamente definidas. Neste sentido, o protagonista do programa em análise é uma metáfora do sedentarismo contemporâneo, quando os sujeitos se vêem desprovidos da condição de elaborar critérios para o cuidado de si, consumindo em suas poltronas modos de vida “new fashion” que lhes absolvem da necessidade de experimentação.

Palavras-chave: celebridade, subjetivação, vontade de potência,
contemporâneo, espetáculo.

Abstract

On this article it is analyzed an episode of the TV series “Indiscrete
lens”, “Straight Plan for the Gay Man”, aired by the channel GNT in 2005, in which an average citizen agrees to have his personal image deconstructed by the large audience that observes him in the pursuit of a new body. The series approaches an intergame among the visibility and the intimacy present nowadays on TV. From the idea of celebrated advertisement of life, this work proposes to draw the actions of the characters regarding the different senses employed on their will power. This study also reflects upon the denial of personal effort towards the possibilities of being within the world, since the subjectivity is, that way, captured by changes that happen rapidly, without counting on unexpected happenings, and with pre-defined goals. In this sense, the lead man of the show in analysis is a metaphor of the contemporary sedentarity, in which it is not expected from the individuals the condition of elaborating criteria for self care, consuming on their lazy-boys ‘new fashion’ ways of life that absolve them from the need of experimenting. Key words: celebrity, subjectivity, will power, modern life, spectacle.

Introdução


Vivemos tempos hipermodernos em que o tripé velocidade-
consumo-estética alicerça a sociedade do espetáculo ou da cultura das sensações, trazendo novas formas de reconhecimento mediados pelo narcisismo. Em tal contexto, o interjogo entre intimidade e visibilidade, como se pode observar no formato dos novos programas de televisão, não apenas vai rompendo as fronteiras entre público e privado, como cria uma nova esfera que denominamos de publicização celebrizada da existência, caracterizada não tanto pela curiosidade sobre as vidas privadas de figuras públicas como pelas confissões da intimidade dos cidadãos comuns.

Em tal cenário proliferam os seriados da mídia televisiva
que se empenham em celebrizar o cotidiano. São programas que oferecem ao telespectador imagens e scripts de pessoas em seu cotidiano ordinário. São casais esperando bebês e tendo todo o período da gravidez monitorado por câmeras, mulheres buscando homens para eventual namoro ou querendo modificar seus cônjuges, adolescentes com seus dramas, sogras que reformam a casa de seus filhos na ausência dos mesmos etc. Em comum, o que temos são intimidades traduzidas numa espécie de documentário de vidas simples, em que se alimenta a idéia de que é possível e rápido estabelecer processos de mudança nos corpos, nas moradas, nas existências de cada um. Nesta problematização, toma-se um episódio da série “Lente Indiscreta”, “Straight Plan for The Gay Man”, veiculado pelo canal GNT, em 2005. São analisados os movimentos dos personagens quanto aos diferentes sentidos empregados no uso da vontade de potência, seja como reinvenção da vida ou como reiteração de territórios pré-configurados. A potência, aqui, é entendida como multiplicidade de afetos e intensidades que imprimem diferença no corpo, abrindo o mundo em devires.

Para Deleuze (s/da), a potência é o múltiplo
que se afirma como vontade de potência, a criação da vida nas suas infinitas faces. O mundano como espetáculo: como existir sem ser visto? […] teatro doméstico que é a TV, no pequeno retângulo de vidro, esse pátio dos milagres onde uma imagem varre a anterior sem deixar vestígios, tudo em escala reduzida, mesmo as emoções (Saramago, 2004).

Segundo Debord (1997), da sociedade industrial para a
indústria da imagem, é construída a captura do mundano e do cotidiano das pessoas como coisas dignas de exibição, na qual receber o olhar do outro ou fazer ao modo daquele que olhamos movimenta o mercado das sensações, fazendo com que a vida se torne espetáculo, na medida em que constitui relações sociais entre as pessoas mediadas pelas imagens. Como aquilo que deve ser mostrado não se dá mais em prol do controle e da disciplina da sociedade, mas para o mercado da visibilidade, ser alvo do olhar do outro é o termômetro da existência: se sou visto, existo ou, como refere Freire Costa (2004, p.84), “apareça ou pereça”.

Segundo este autor, na moral das sensações,
o enigma não é temer ou adivinhar o que o outro quer, mas “explorar exaustivamente o corpo até torná-lo a ‘cera-mole’ prestes a encarnar qualquer ideal narcísico arbitrário inventado pela moda ou pelo entretenimento”. Diante da exigência de perfeição que se colocou no corpo em detrimento dos sentimentos, o indivíduo vive um permanente estado de insatisfação e receio quanto a sua própria imagem. Não pode se servir do seu passado para que saiba, com mais confiança e conforto, como ele deve ser para que o outro o reconheça. Desta forma, para obter o reconhecimento imaginário da “moda-espetáculo”, acaba negociando o inegociável, ou seja, a vida ou o gozo, a identidade narcísica ou a homeostase física, o outro ou si mesmo. Temos, aqui, um deslocamento: as estratégias privadas de existência passam a visar ao compartilhamento que se sustenta no mostrar mais do que no trocar. Sendo assim, a existência se torna o exercício da imagem nas coisas mais simples da vida, numa espécie de exibicionismo premeditado.

A vida levada numa enorme
vitrine alimenta a exposição que nos tirou a possibilidade de dissi- mular a intimidade do olhar do outro, fazendo com que se equipare o que aparentamos ser com a identidade pessoal simplificada pelo corporal. De tanta exposição, andamos todos perseguidos por um intruso olho que nos julga segundo a performance a ser cumprida. Conforme Bauman (2001), este compartilhar de intimidades tende a ser o método preferido, e talvez o único que resta, de “construção da comunidade”. Ou seja, dependemos do espetáculo para confirmar que existimos e para nos orientar em meio a nossos semelhantes dos quais nos isolamos. Assim sendo, aquilo que se é não advém da multiplicidade de encontros da vida, mas de um trabalho publicitário pessoal em que a tela brilha, realça as cores, toma nossos olhos, embala nosso desejo e se oferece como alimento da vontade. Entendemos a vontade como o embate de forças que incluem vários sentimentos: do estado de que nos afastamos, do estado para o qual tendemos e do movimento de afastar-se, bem como do tender e seu correspondente sentimento muscular (Giacóia, 2004).

A vontade faz da sua diferença um objeto de
afirmação, uma vez que a força é quem pode. É sempre pela vontade de poder que uma força entra em relação com outras e as domina ou as comanda. É por vontade de poder que uma força obedece, uma vez que é plástica e se afirma no múltiplo (Deleuze, s/da, p. 78). Freire Costa (2004) chama atenção para o fato de que é nas variações da vontade que encontramos a nova axiologia dos padrões de normalidade. De um lado, o querer se apresenta como “mestre do corpo” e capaz de gerar transformações existenciais de toda ordem, bastando o sujeito ser suficientemente tenaz na busca de seus objetos de desejo; por outro lado, um certo discurso acerca das causas orgânicas do comportamento humano isenta moralmente o sujeito ao identificar, nos azares genéticos, os limites pessoais para exercer a plena vontade no domínio de seu corpo e de sua mente. Desde estas perspectivas, o sucesso é visto como mérito de uma vontade forte, mas o fracasso faz com que cada um se sinta “fisicamente doente”, estreitando sua possibilidade de relacionar a norma social ao seu sofrimento, uma vez que é no biológico que se coloca a causa de seu malogro.

Em tal contexto, o conceito nietzschiano de vontade de potência
deixa de ser um princípio pelo qual a vida se projeta para além de si mesma para, ao contrário, colocar o sujeito diante de um espelho identitário, na medida em que “a tela da tv não oferece modelos a imitar, mas se oferece como espelho no qual acreditamos estar refletida nossa própria imagem” (Kehl & Bucci, 2004, p.8). Isto favorece a montagem do mundo das chamadas celebridades onde se existe para o vertiginoso exibicionismo e com a esperança de visibilidade que dirige as escolhas de vida, seja para se “parecer com” ou “se ver em”. A imagem outorga a si o poder de distribuir conceitos, redefinindo os ideais de felicidade em que o viver “como cada um bem entende” não é a promoção de vidas autônomas, mas o consumo das crenças que transitam no mundo das celebridades.

Para Freire
Costa (2004), a celebridade é a “autoridade do provisório”, em que se alia moda e tecnologia a serviço da “moral do entretenimento”. Tal moral se sustenta por pessoas que, idolatrando o momentâneo, desaparecem com ele depois de um apoteótico instante de visibilidade. Este sucesso independe de seus talentos, uma vez que o fundamental é o potencial de entreter e, assim, não só os objetos, mas as identidades cumprem uma efêmera função de fazer de toda a vida um entretenimento.

A vontade de semelhança
[…] o espírito, amante das vertigens puras, é inimigo das intensidades (Cioran, 1995, p.36). O que acontece, então, quando o cidadão comum se dispõe a ver sua imagem pessoal desconstruída diante de milhões de olhos, em um programa de TV cuja “lente indiscreta” irá também perscrutar seus movimentos de construção de um novo corpo? Como entender suas motivações para o compartilhamento desta intimidade através da mídia televisiva? Quais deslocamentos são produzidos nestes exercícios de vontade? O programa da GNT, da série “Lente Indiscreta”, que subsidia nossa análise, se apresenta como uma aventura de quatro homens heterossexuais que se colocam como “guias” da transfor- mação de um gay. Desde as primeiras cenas, somos transportados a um ambiente tipicamente americano e masculino.

No interior de
um apartamento, os quatro guias estão em meio à bebida, arrotos e peidos. Brincam com um carrinho de controle remoto que traz a missão de transformar Roger (que é gay, professor de ioga e garçom de lanchonete) em um atleta heterossexual. O quarteto estabelece planos de como farão para que ele pareça/apareça como alguém que não é. “Vamos dar um jeito em você”, afirmam os instrutores, o que pressupõe que o candidato entrega sua vida, seu jeito e sua casa para que esta “missão” seja cumprida, numa servidão consentida. O que se observa nestas primeiras cenas é a negação da existência como trabalho pessoal de construir possibilidades de ser e estar no mundo. “Dar um jeito em você”, enunciado do programa, equivale a dizer que não se faz necessário que os projetos de vida encontrem espaço para serem constituídos como a história do sujeito com suas referências. Assim sendo, os referenciais existenciais deixam de ser expressões singulares das condições de instauração e deslocamentos de sentido inscritos nos corpos e nas almas das pessoas, para se colocarem como modelos prontos a partir dos quais os sujeitos procuram assemelhar-se como boas cópias (Deleuze, 1998).

O tempo do futuro deixa de ser o da realização
de sonhos para se constituir em movimentos de correções do corpo num “adulto protético” (Freire Costa, 2004, p. 77). Aos poucos, somos seduzidos na contemplação das mudanças que vão sendo operadas no corpo e no cotidiano do personagem. A tela vai abrindo portas para o pátio dos milagres, com um duplo convite: você pode realizar seu desejo de mudança e, o que é melhor, sem esforços. Isto nos leva a afirmar que a celebrização do cotidiano e do homem, comum neste tipo de programa, é apenas um meio de reiterar modos capitalísticos de subjetivação em que as formas de vida são evidenciadas como mutáveis e passíveis de reforma sem -ou com muito pouca – implicação processual do sujeito em questão. Para isto, basta uma invasão consentida a que é preciso se submeter como custo, na “vida real”, de vender o vazio de uma existência que só encontra sentido no ser visto.

Neste sentido, os deslocamentos de Roger traduzem bem as
cenas contemporâneas em que identidades dissolvidas encontram alento nas “figuras-padrão que distribuem sentidos às identidades globalizadas flexíveis” ameaçadas com “o perigo de se virar um nada, caso não se consiga produzir o perfil requerido para gravitar em alguma das órbitas do mercado” (Rolnik, 2000, p. 456). É por isto que, neste programa em análise, as estratégias não são construídas por Roger, mas pelos seus “guias”, que decidem um plano de ação: mudar a aparência visual dele, aguçar seu lado masculino, fazer “bailar” seu gato de estimação, seu namorado, sua ioga, suas escolhas.

Por estar convencido de que
pode mudar artificialmente e sustentar uma aparência, o personagem recalca o passado sentimental em favor da corporeidade material. Assim, o processo do advir de Roger faz metáfora com nosso tempo, quando alguns princípios para aquisição de uma identidade-prótese são enunciados: mudar é a nova ordem, mas as mudanças devem acontecer com rapidez, sem imprevistos e com metas claras. Mesmo com a desterritorialização suscitada, subjaz aí a idéia de subjetividades regidas por uma lei transcendente que oferta modos de vida extrínsecos ao próprio processo de subjetivação de cada um. Diferentemente disto, outrar-se como tarefa implica que no lugar das imagens tomadas como um a priori a existência seja tramada por uma lei imanente ao campo das intensidades de um corpo, tendo como regra o vir a ser que será construído num infinito processo de dar expressão àquilo que força em nós um lugar. Como aquilo que brilha sem cessar na vida celebrizada não são os olhos da pessoa, nem seus feitos, mas seu visual condizente com a moda atual, sustentar o brilho de uma vida ofuscada pelo consumo existencial silencia aquilo que de mais precioso possuímos: nossa história. É na narrativa de si como um colóquio com o outro, num diálogo com escolhas e contingências neste mundo, que confere a cada um a idéia real-ficcional de sua existência.

São nossas
vivências que costuram sentidos que são construídos na correlação de forças da multiplicidade humana que configuram uma dada constelação subjetiva. Entretanto, no seriado televisivo que estamos analisando, a proposição de uma nova existência reduz a corporalidade de Roger a um design de atleta heterossexual, ou seja, a caricatura em que o sujeito é desprovido de sua própria vida, pois o novo projeto de identidade está sendo oferecido como suposta solução para seu desejo e de quem mais puder comprar. A mudança na vida de nosso personagem não acontece a partir da narrativa de si, mas através de seus guias que revistam o seu apartamento para a reconfiguração de territórios: a casa tem que refletir a solidão de um homem, as roupas devem ser largas, a geladeira vazia e muitos objetos são descartados (livros, cortina de sapos no banheiro, bichinhos de pelúcia, fotos na cabeceira, panelas grandes etc).

Ao invés de agenciamentos como dispositivos
que buscam favorecer o processo de experimentação do sujeito, são demarcados os passos a serem dados por ele em um percurso predefinido. Por outro lado, os personal men parecem animados, ao identificarem vestígios de macho no ambiente gay, como o fato de que sua casa é bagunçada e têm fios amontoados, o que lhes demonstra que “nem tudo está perdido”. Observa-se que tais iniciativas buscam circunscrever bem o que se supõe territórios distintos, de gays e heteros. Parte-se da premissa de que ambos territórios se caracterizam por uma certa homogeneidade que permitiria tomar generalizações, tanto do masculino quanto do circuito homossexual. Neste caso, americanos machos buscam imagens totalizantes do masculino como referência para pensar a mudança de um “típico” gay, mas se trata sempre da passagem de uma semelhança à outra previamente definida. No caso deste programa, busca-se a construção identitária de um heterossexual segundo a regra “masculina” de que “o importante não é competir mas vencer”.

A idéia é de que a socialização
dos homens se constitui distanciando-os da intimidade consigo e com os outros. A ausência de intimidade pode ser pensada como uma das marcas da brutalidade masculina que tem a disputa como dispositivo constitutivo de sua subjetivação. Não vacilar, aprender a humilhar o outro e a fazer pose são as primeiras lições recebidas por Roger. Dito de outra maneira, o que se pretende é agenciar o corpo como patrimônio, pois, como refere Nolasco, (2001, p.72 ), o homem é “autorizado socialmente a usar a força física para dar prova de virilidade, se predispõe a usá-la quando se vê envolvido em situações em que não se sente reconhecido como homem”. Além disto, o quarteto se divide em tarefas, enquanto Roger é levado a comprar roupas, treinar basquete, transformar a casa em habitat para atleta, incluindo uma minipista de basquete na sala e muita cerveja na geladeira. Enquanto é transportado de seu mundo existencial para o cronograma de transformações pré-agendadas, alguns ensinamentos são transmitidos, para que componha seu novo personagem, para que empreste a maior veracidade possível ao engodo da imagem. Em síntese, embora o programa sugira que Roger esteja migrando de territórios, a microfísica do migrante acaba tomando o lugar da macrogeometria do sedentário. Já não se traçam linhas mutantes, mas uma linha de abolição do singular em prol da imagem e semelhança do outro traçando um plano de existência apartado dos agenciamentos de sua vida, que são substituídos por segmentos supostamente unívocos e heterossexuais. Ou seja, a simulação deixa de ser um plano de invenção para se constituir em dissimulação e fingimento.

É por isso que nosso personagem
confessa confiante: “eu banquei o bruto quieto e não o falastrão, encarnei o atleta matador calado”. A vontade despossuída dos afetos ... somos mais artistas do que sabemos. – Nietzsche O segundo pressuposto do plano de transformações de Roger é de que na rapidez temos de escolher as ofertas do que vamos ser. Em uma cena que parece ser paradigmática disto, os cabelos de Roger dão lugar a uma cabeça raspada com o desenho de uma bola de basquete na nuca. Embora ele não goste, é dissuadido pela argumentação de que este é o símbolo de sua nova existência. Enquanto se transforma em juiz incompetente de sua própria vida a câmera acompanha a velocidade da máquina do cabeleireiro forjando o seu novo design e, ao mesmo tempo, evidenciando a fluidez da vida e das imagens na contemporaneidade.

A liquidez como marca do contemporâneo (Baumann, 2001)
tem na velocidade e na incerteza os ditames da vida instantânea que promete com seus modos e objetos efêmeros, corpos ágeis, uma eterna leveza do ser, conseguida com o preenchimento do vazio da condição humana, através da celebrização do ordinário e do enfadonho ato de estar vivo. É assim que, depois de ter sua vida tornada imagem-mídia, nada mais sabemos sobre Roger, na medida em que ele volta ao anonimato e sua narrativa sequer nos deixa o consolo da conhecida frase: “felizes para sempre”. É a produção de “eus” espetacularizados nas superfícies dos corpos e imagens numa subjetivação seriada por um duplo espelhamento: o da identificação e o da projeção de ideais. Assim, a tela tem hoje monopólio dos dispositivos de construção da sociedade, uma vez que esta tem na imagem seu paradigma. Essa dimensão imagística da televisão produz um tipo de subjetividade diferente da que se constituía na modernidade discursiva delineando verdades imagéticas centradas na exibição. É o olho que registra, o corpo que se molda e se oferece como representante da existência de cada um. Straight Plan for The Gay Man está entre estes programas que mostram uma vida encenada para o exercício exibicionista de seus participantes e o consumo voraz de seus telespectadores.

Há aí um tipo de pacto no qual o tornar-se celebridade efêmera
dignifica e justificaria qualquer tipo de desconforto ou invasão, afinal, ter imagem – independente do papel que se desempenhe – é fazer parte de uma rede de inseridos e publicamente legitimados, pois “ter uma boa imagem” seria o primeiro passo para o pertencimento social. Contudo, Roger tem como tarefa parecer outro e constrói esta semelhança a partir das orientações de seus guias transitando num espaço estriado, ou seja, sabe a priori o que deve apresentar à tela para, em seguida, sumir de nossos olhos. Já o que vemos em outros programas, tipo reality shows, é que a trajetória dos personagens se define muitas vezes pela interatividade com os telespectadores, “onde a tirania do sentimentalismo coletivo é que dita as normas” (Khel & Bucci, 2004, p. 173).

Isso significa constatar que sujeitos são transformados em atores-personagens de uma construção melodramática que se confunde com o real de cada integrante do programa, de forma que se dá um certo apagamento dos limites entre os diferentes mundos: o dos telespectadores que julgam, o dos participantes com suas histórias e objetivos e o da produção que dirige a trama no limite da telenovela, personificando categorias, como as de vilões ou super-heróis, bons e maus. O reality show interdita a realidade da vida extramuros à casa de confinamento para criar a sua própria realidade: o reality, a partir do qual se constituirá a experiência de ter o ordinário espetacularizado e transformado em passaporte para o que efetivamente interessa: ser visto. Roger também quis ser visto, mas sua passagem é rápida e sem continuidade.

No reality show há prêmios a serem conquistados. Assim,
vai ser na habilidade de construir seu ibope que a passagem por esse programa vai render mais ou menos fama e trabalho no mundo midiático. Os candidatos, em busca de sucesso, contam com o dinheiro a ser ganho e com a exposição televisiva que os farão conhecidos. Ao mesmo tempo em que precisam superar os colegas deverão conquistar a simpatia dos mesmos e do público para não serem eliminados e, assim, obterem a vitória de serem escolhidos como os mais hábeis diante desta exposição intensa. Uma verdadeira pedagogia e tecnologia de como ser aceito e parecer digno de passar a ocupar um lugar no idealizado mundo das celebridades. Nesta tarefa, cada participante encarna um misto de si e das pistas que recebe para agradar ao público. Agradar aí é a ordem, agrade e seja escolhido.

Surgem então personagens caricaturados
que aderem ao corpo de cada um como herança a ser sustentada numa única chance de prolongar a fama conseguida sobre restos identitários. São existências expostas através de personagens de si mesmos que sobrevivem a uma seqüência montada por um outro que espia-se num espelho, votando supostos destinos que reproduzem a identidade de rebanho numa escala global. Metáforas do contemporâneo, vemos destinos traçados sobre o paradoxo da valorização da variação e dos prazeres polivalentes e mutáveis que fazem o sujeito superestimar o prazer sensível, em que o importante é estar disponível ao fluxo do mercado da moda existencial. Assim, turistas da existência, andantes alheios a si mesmos perdem a potência de tecer a vida, já desprovidos da condição de elaborar critérios para o cuidado de si, consomem em suas poltronas modos de vida “new fashion” que lhes absolvem da experimentação. Andantes sedentários são os estandartes de uma vontade despossuída dos afetos, pois outrarse tornando possível nossas potências e vivências passa a pesar como uma enfadonha tarefa, tendo em vista o serviço “delivery” de como celebrizar o desejo legítimo de “ser alguém.” Roger é o típico andarilho deste universo globalizado que carrega a impotência diante da velocidade com que nos vemos desconfigurados. Já não desejamos a desterritorialização; é ela que nos abate cansados na busca de algum repouso onde possamos montar nossas rudimentares estratégias diante do desconhecido. Veloz e gulosamente, a globalização fez da aceleração e do descartável uma espécie de relação mortífera, pois nos sentimos todos embalados por um furacão de objetos, jeitos e trejeitos a consumir.

A flexibilidade nos corpos e nos objetos está em alta depois das rígidas identidades da modernidade, fazendo com que o glamour da idéia de mudança se coloque como disfarce para o desconforto e a angústia sentidos diante da liquidez dos valores. As perdas nas suas diferentes intensidades produzem desassossego e é preciso tempo para acolhimento e elaboração, a fim de que possamos fazer outro estado para nossa existência. Conforme Cioram (1995, p.73), toda escolha tem seu preço e compõe o destino, visto que qualquer movimento implica uma perda.


Nossa força, a cada instante da vida, advém de nossos esquecimentos,
mas não da perda da memória. A memória tem a honra da lembrança, mas seu oposto, o esquecimento, permite o desfecho do destino que nos coloca diante de outra possibilidade na vida, resignificando a lembrança.

Neste tipo de programa, somos convidados para que nossos
modos de existência sejam renovados de acordo com o mercado da aparência, mostrar-se ao outro que, supomos, solicita nos ver. Sujeitos turistas de si mesmos peregrinam no interior do circuito de uma dupla engrenagem: de um lado, a perda acelerada de referenciais e, de outro, a oferta de signos e comportamentos estereotipados que desconfiguram os mundos e aparentemente suprimem o vazio. Sempre em movimento, sem refúgio, perde-se a condição mínima de realizar encontros diversos, como roteiro das subjetividades, o que nos aliena da tarefa da auto-reflexão. Segundo Nietzsche (1881/2004), é no processo reflexivo que realizamos o trabalho de aprofundamento e interpretação das nossas emoções, representações, afetos e impulsos.

Sabedores de que
todo conhecimento consciente e discursivo é ficcional e perspectivo, esta tarefa passa pela crítica das supostas verdades que a consciência insiste em comunicar e que uma dada sociedade insiste em impor. Esta forma de perceber a produção de subjetividade desconhece que a desterritorialização é um meio de encontro e que a produção de uma linha é constituída de infinitas probabilidades do “e” e não do “ou”. Trata-se de conjunção e não de binariedade ou de exclusão. A desterritorialização é, pois, a conjugação do coletivo, da velocidade-movimento e da rostidade, pois o campo das probabilidades aqui não é dado por um método de sorteio onde temos uma única chance a cada vez que se combinam os heterogêneos; ao contrário, nossa geografia é composta de linhas diversas e elas não sabem necessariamente sobre qual linha delas mesmas estão e nem por onde fazer passar a linha que se está traçando.

É por isso que Deleuze (1998) diz que devemos nos servir da solidão como meio de encontro onde o deserto seja o campo da experimentação sobre nós mesmos, uma vez que esta é nossa única identidade. Nossa única chance para todas as combinações que nos habitam é tomar a vida como movimento de aprender e não como a busca do resultado de saber. Sob esta perspectiva, se faz necessário um pensamento afirmativo e não um pensamento- julgamento, uma vez que a maneira de pensar baseada no julgamento acredita em valores pretensamente superiores que devem ser seguidos e cabe à pessoa tornar-se compatível com tal verdade. Este princípio deprecia a vida e torna cada sujeito um “carregador”, impedindo a criação de novos valores. “Nada é mais oposto ao criador do que o carregador.

Criar é aligeirar, é descarregar
a vida, inventar novas possibilidades de vida. “O criador é legislador dançarino,” afirma Deleuze (s/db, p. 19).

Em síntese, nosso personagem andante de uma vida segmentarizada pelo roteiro televisivo ecoa com suas miudezas a vida de cada um: carregador e dançarino, que somos todos. Fazer a vida sem fardos pode ser exatamente o que se oferece ao homem atual que cobiça o prazer como fórmula ontológica. Tornar aque- le que busca a leveza um corpo acompanhado do pesado fardo da forma pré-pronta se apresenta como armadilha, o que já chamamos de dupla captura da vontade que vai configurar uma vida com passos ensaiados. A vontade de ser o que se é Há sempre o que há, e nunca o que deveria haver, não por ser melhor ou por ser pior, mas por ser outro.

Há sempre o que há, e nunca o que deveria
haver, não por ser melhor ou por ser pior,
mas por ser outro. Há sempre...
(Fernando Pessoa, 1986, p.97)

Como este tipo de programa na televisão parece enaltecer as possibilidades de invenção, caberia destacar um último ponto. Vimos que na trajetória de construção de um novo corpo para Roger a vontade de potência esteve capturada tanto na perspectiva de uma vontade de imagem quanto de semelhança. Propomos, então, que o “eu quero” ou “você pode” neste tipo de programa veicula a idéia de uma racionalidade do querer que começa e termina em si mesmo, como se pudéssemos, em algum momento, atender aquilo de que carece o sujeito. É assim que a mídia entra, oferecendo o objeto-imagem como resposta de todo querer, colonizando desejos e produzindo a crença de que a vontade como faculdade humana é atributo pessoal destituído do campo sociocultural.

Já não há nada a construir, o que se mostra como felicidade
é uma fluidez, um não parar, ou melhor, quando parar você terá acesso ao manual de instrução sobre o que deve ser a sua vida para ser saudável: ser igual a uma imagem que a tela traz, repete, insiste com sua presença.

Produz-se aí uma inversão no querer: já não quero aquilo que
advém da trabalhosa negociação com minha existência, mas aquilo que especularmente me está ofertado. É nesse jogo midiático, que transforma o mundano em espetáculo, que a vontade perde potência e busca configurar seu querer naquilo que monta uma imagem, uma vontade de imagem baseada na idéia de que esta possa sustentar a existência. De um lado, trata-se de uma imagem predefinida e objetalizada. De outro, a própria imagem que foi buscada é engolida por sua curta validade, ou seja, tão pequena é sua durabilidade quanto mais rápida ou esvaziada foi sua construção. Habitantes de um planeta globalizado e, esvaziados dos sentidos singulares, consomem a idéia de que se pode existir desde o que se parece ser.

Desta forma, a singularização parece não fazer o
menor sentido quando numa sociedade líquida (Baumann, 1998), a incerteza não se limita à própria sorte e aos dons de uma pessoa, mas se expande para a própria configuração do mundo e a maneira de viver nele em relação ao coletivo, destituindo aquilo que engrandece a alma, ou seja, a quantidade de insuportável que ela assume para escapar à esterilidade (Cioran, 1995).

Todavia, o conceito nietzschiano de vontade de potência desmonta
a máxima do “querer é poder”, ou, ainda, do “eu quero”. Para o autor, a vontade não é obra de um eu conhecedor de seu querer, mas o resultado de um jogo entre sentir e pensar, numa relação de obediência ao comando da força vencedora do momento. É a intensidade do afeto que comanda o querer e a sua liberdade está em poder dispor de si para o ato volitivo. Logo, o poder está sobre si, sobre a potência de afirmar o novo movimento da existência. Em contraste a tal definição, o existir embalado pela vontade de imagem, tal como o programa nos sugere ser necessário, nos torna ausentes de nossas histórias, desprovidos da condição de fazer de nossa auto-imagem uma coleção de instantâneos tecidos no tempo com uma gradual e paciente construção que resulta naquilo que somos.

Na era da existência mediada pela imagem, a
recusa de si é o que prevalece, muito embora seja travestida pelo discurso do auto-cuidado. Por outro lado, são limitados os empreendimentos para se fazer uma imagem dada, sejam eles da ordem do corpo ou da alma e, assim, o cuidado de si se apresenta reduzido ao cuidado sobre a imagem num exercício consumista infinito e evitativo do encontro com aquilo que nos tornamos. Por isto, é que Nietzsche (1888/1989) propõe que tomar a própria vida como algo que poderia se repetir é a mais difícil superação que se dá quando ao se aceitar o destino e não mais se esquivar de seu abismo para assumir a atitude do “amor fatti” que ensina: você tornou-se o que é através de erros, tentações, experiências e precisa ter coragem de sustentar suas opiniões como de atacá-las. Conforme o autor, em parte alguma é dado ao sujeito se esconder de si mesmo, por covardia ou preguiça.

Amar o que
somos compreende o exercício máximo da vontade de potência que se renova da tensão entre o plano dos afetos e os territórios a serem refundados. São os agenciamentos entre múltiplas linhas de existência e não um a priori do que se deve ser que possibilitam a vida que por si vive da multiplicidade.

Outra é a perspectiva que traz este novo tempo, a de aderir a
uma moralidade de “programas” que nos oferecem a estrada mais rápida, única e curta para a realização de nossas empreitadas, o que parece algo sedutor diante de um enorme hiato entre ter nascido humano e fazer desta humanidade um constante outramento. Desterritorializados, assustados, apressados, buscamos caminhos estriados, tal como Roger, seduzidos pela idéia de atalho e conforto, com a esperança de alcançar esplendores indizíveis.

Referências

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Recebido em 20 de outubro de 2006

Aceito em 1º de junho de 2007

Revisado em 8 de agosto de 2007


Revista Mal-estaR e subjetividade – FoRtaleza – vol. vii – Nº 2 – p. 433-450 – set/2007