Saidón, Osvaldo I. (2002). Neurose na atualidade. Em: Osvaldo I. Saidón, Cínica y sociedad:
esquizoanlálisis, p. 81 – 88. Buenos Aires: Lumen. 2002. [Tradução livre da Psic. Branca
R. Chedid da equipe do Instituto Pichon-Rivière de Porto Alegre-RS].
OSVALDO SAIDON
O lugar que hoje ocupa a prática psicoterapêutica e psicanalítica vem modificando-se junto com as transformações que a representação social das diversas práticas assistenciais está padecendo. O trabalho que realizamos está marcado menos por nossos debates e mais pelas circunstâncias de época e do modo em que esta renova a representação social das diversas práticas.
Os estudos de saúde pública vêem propondo hoje o conceito de saúde – enfermidade -atenção tornando, desta forma, complexo o binômio saúde-enfermidade que se mostrava insuficiente para dar conta dos processos de adoecer tal como se manifestam na atualidade. Isto marca a importância de ter em conta o vetor atenção nos estudos epidemiológicos que sustentam qualquer programa de saúde.
Se isto é assim para as enfermidades em sua totalidade, o é muito mais para definir e propor uma epidemiologia atual no campo das neuroses e das psicoses. Assim, temas tão caros ao pensamento psicanalítico como processo, contratransferência, ou campo analítico amplia a compreensão do fenômeno da atenção e se começa a articulação para pensar e propor qualquer possível sociologia das enfermidades em geral e, claro está, da doença mental.
As práticas psicoterapêuticas e psicanalíticas têm uma contribuição importante para dar no campo da atenção, na medida em que façam de sua clínica um processo capaz de comunicar-se tanto em um registro semântico como pragmático, ao que chamaremos a “clínica tal como ela é”.
Trataremos então as questões referidas as neuroses tal como se manifestam na atualidade, desde a perspectiva da atenção, para analisar a reestruturação da economia libidinal que enfrentamos hoje em nosso trabalho psicoterapêutico.
Com pleno conhecimento ou não, a psicanálise argentina é destinatária de um processo cultural onde discussões entre técnicas, práticas e pressupostos teóricos podem alimentar o trabalho psicanalítico ou se por ao serviço da defesa ou do questionamento de interesses corporativos. Os devires da clínica real, tal como se manifestam no trabalho cotidiano nestes tempos, mostram a insuficiência das remissões a uma escola, uma ética ou uma causa, e exigem um tipo de reflexão onde seja possível a análise da implicação institucional e o modo em que esta nos afeta. Os pacientes que nos consultam se encontram com uma população de terapeutas que, como não poderia ser de outra maneira, reflete o contexto sociopolítico que a habita e, em alguns casos, não muito mais além dos instituídos culturais que a envolve e a institui.
Arriscaremos algumas generalizações, somente como um convite a pensar a questão.
Por parte de muitos terapeutas a época que vivemos, em nível da produção de subjetividade, corresponde a uma redução do entusiasmo na relação com a potência da teoria e suas ferramentas. Isto necessariamente repercute no tipo de campo transferencial que vai sendo gerado. As manifestações mais ouvidas por parte de alguns analistas são as seguintes:
“Os pacientes querem psicoterapia e não análise”.
“Ninguém está disposto a analisar-se mais de uma ou duas vezes por semana”.
“A análise tem que ser prática”.
“O método psicanalítico, tal como foi concebido, é para os próprios analistas e não para os pacientes comuns”.
A clínica tal como ela é se constitui em um exercício eclético onde convivem diferentes perspectivas de abordagem e pressupostos teóricos que funcionam em paralelo e não necessariamente de maneira contraditória. O problema se instala quando a proposta é menos a gestação de um projeto autônomo e singular do encontro clínico ali produzido, e mais uma resposta adaptadora à imprecisa demanda do paciente-cliente.
Muitas vezes se atua como estes arquitetos que, no intuito de conservar o contrato de trabalho, abandonam seu processo criador e se põem ao serviço do gosto do cliente ou da época. Não há resposta mais lógica, e ao mesmo tempo menos criativa, diante desta situação do que as que fazem os porta-vozes das corporações quando chamam ao retorno dos grandes suportes teóricos (Édipo e castração), ou aos enquadres consagrados para a formação (análise didática ou releituras dos textos fundamentais).
Se alguma ética e alguma estética sustentam a invenção freudiana, estas são contrárias a pontificar e reforçar os dogmas. As linhas duras no pensamento somente se mostram eficazes quando, como na psicanálise, alimentam “a peste” que a produção inconsciente expandiu em relação com os instituídos vigentes. O conceito de etiologia sexual em Reich ou o conceito de contratransferência em Ferenczi são bons exemplos deste tipo de intensificação.
A paixão inicial que instituiu a psicanálise não teve nada a ver com a defesa do dado. A tarefa de seleção dos falsos e dos verdadeiros pretendentes à psicanálise se fez em um ambiente de ebulição, de expressão de diferenças, onde a explosão do existente e a exploração de novos recursos se desenrolavam conjunta e ruidosamente. Na pragmática daquela época, era onde se construíam as criações teóricas e técnicas da psicanálise.
Uma pragmática é a que dá conta de como a produção de subjetividade e os novos processos de singularização, dos pacientes e terapeutas são portadores, se expressa na atualidade. É através dela como se manifestam os indicadores, tanto da obsolescência de nossos recursos como de sua potência.
Pensar a subjetividade em nossa época é um passo necessário para reformular a compreensão dos modos de produção dos processos e dispositivos terapêuticos. Isto exige a inclusão de conceitos e de idéias que, junto com os pressupostos teóricos mais consagrados da psicanálise, fazem possíveis intersecções entre as diferentes áreas do conhecimento, criando assim as condições de passagem desde um paradigma científico a um paradigma ético-estético.
Precisamos desenvolver uma percepção pática dos regimes de afetação dos elementos heterogêneos, que vão desde a análise dos lapsos e dos sonhos até o registro de mudanças de voz, as mudanças de ritmo e de velocidade que se apresentam no cotidiano da prática clínica.
Deste modo, o que se procura é promover estratégias de pensamento que possibilitem habitar o devir que a produção do inconsciente nos arrasta. A clínica, a crítica e o pensamento constituem um mesmo processo que expressa o devir de uma época, de uma história, os atrasos e as acelerações a que nos arrasta uma determinada produção de subjetividade. Em muitas situações, o homem de nosso tempo fica aterrorizado frente a estes devires, sem que possa criar seu próprio processo de singularização.
Quando falamos de devir, não nos referimos a uma evolução das idéias ou dos grandes relatos. O devir que deveríamos incluir em nossa prática clínica é molecular, tanto em sua percepção como em sua expressão. É parcial ou fragmentado e não atinge a toda a estrutura, senão que se expressa através de encontros entre partes, de insights circunstanciais. Manifesta-se através de uma disciplina da percepção do molecular e do minoritário que está, muitas vezes, recoberta por um disciplinamento molar dos grandes relatos e das grandes estruturas. Seguindo Deleuze, poderíamos dizer que o devir é uma intensificação, uma mudança de ritmo, um dialeto na própria língua, uma metamorfose a partir de um processo fragmentário.
Este processo pode ser vivido como estranho ou aterrorizante. É o trabalho da clínica que algumas vezes lhe dá a ocasião para que possa também expressar uma expansão do pensamento, uma linha de fuga para a criação de novos sentidos e para possibilitar a gestação de novos territórios existenciais.
Aqui, na realidade, um leitor avisado já se dará conta de que aspiramos nada menos que a seguir a consigna espinozista de enfrentar a moral da norma com a potência de uma ética do encontro. Esta potência tem encontrado no paradigma estético grande parte de sua fundamentação, já que tem sido a arte moderna o que tem levado adiante com mais consistência este tipo de experimentação.
No processo analítico, as interpretações e as intervenções também devem participar deste projeto de experimentação.
Não nos referimos aqui, com a palavra “experimentação”, a um festival de técnicas ou aos ensaios terapêuticos próprios dos anos sessenta e do que se chamou o movimento de potencial humano. Queremos recuperar, para nosso trabalho com o sofrimento da neurose, um postulado que hoje tem especial atualidade diante da banalidade das totalizações e a criação de novos e inconsistentes mitos salvadores.
Neste sentido, que “isso venha de onde o eu está” requer um trabalho interpretativo e de escuta que alerte sobre a recomposição do absoluto, que permanentemente retorna através de novos dogmas e palavras de ordem. Segue, mais vigente que nunca, a máxima do velho Lucrecio de que “os acontecimentos que fazem a infelicidade dos homens não podem ser separados dos mitos que os fazem possíveis”.
A análise, desde esta perspectiva, teria que recuperar o sentido laico de retirar o falso infinito que se introduz nos sentimentos e nas obras das pessoas que nos consultam, e não procurar novos mitos, ainda que tenham pressupostos teóricos mais e melhor estruturados.
Novos paradigmas, defesa dos pressupostos teóricos, defesa das causas, reformulações técnicas e revalorização das tradições têm sido mobilizados diante dos problemas que hoje a clínica estabelece. Todas estas perspectivas, de diferentes modos, têm tratado de redefinir dos desafios que se lhe apresentam ao pensamento nas relações entre o individual e o social.
Já há algum tempo, uma nova armadilha vem sendo proposta ao pensamento a partir de que o social, em lugar de gerar um campo de relação com o fora e possibilitar uma relação com os outros, produz uma inibição da expansão, convidando a uma exaltação narcisista onde o conflito entre o individual e o social fica eliminado.
Comprovamos reiteradamente esta situação na análise de vicissitudes que atravessam os pacientes em relação com as novas condições de trabalho que lhes cabe enfrentar. Diante da precarização laboral que afeta a todos os setores, inclusive a da prática psicanalítica, se tem formulado reiteradamente a questão de como recuperar o lugar de prestígio e de interesse que a psicanálise ocupava entre as diversas práticas.
Esta pergunta não é uma boa pergunta, porque nos distrai da possibilidade de tomar consciência da magnitude da transformação que se vem produzindo no tecido social em relação com o lugar do trabalho.
Estes tempos podem ser tratados como tempos de degradação da própria atividade se a deixarmos na dependência exclusiva da precariedade laboral que afeta a todos os setores diante da prepotência absoluta do mercado. No momento em que a civilização do trabalho parecia consolidar-se definitivamente, com a hegemonia do salário e a garantia do Estado social, o edifício começou a demolir-se ressurgindo a velha obsessão popular de viver a cada dia. De hoje em diante, o futuro está marcado pelo selo do aleatório.
Este aleatório pode ser vivido como a desgraça de nossa época ou também como a necessidade de re-situarmos em relação à duração, o devir, e retomar o iniludível compromisso com a invenção e a criação de novos sentidos. Quando um erro se dissipa, aparece um novo sentido.
Não se trata de buscar respostas às velhas e errôneas perguntas, senão de perguntar-nos e perguntar de outro modo, para dar lugar a heterogeneidade e a multiplicidade que habitamos. Estar atentos em nosso pensamento ao devir ou a duração nos será útil para sair da já clássica idéia de precarização que parece pressagiar todo o porvir como inevitável degradação do que até agora fomos.
Bergson diz: “Na medida em uma eternidade é entendida como primeira, o tempo aparece como degradação, distensão ou diminuição do ser. Assim, todos os seres se definem dentro de uma escala de intensidade entre uma perfeição e um nada”.
Estar atentos ao modo em que a flecha do tempo arrasta também nossa prática e seus pressupostos somente é possível enquanto abandonarmos a idéia de uma prática original, única e verdadeira, como aquilo que devemos recuperar.
Acompanhemos um pouco mais Bergson para tratar de orientar nossas questões. Há uma primeira regra em sua filosofia, que me parece poder nos introduzir magnificamente nos desafios que se apresentam ao pensamento diante das questões aqui colocadas.
Diz ele: “Aplicar a prova do verdadeiro e do falso aos mesmos problemas, denunciar os falsos problemas, reconciliar verdade e criação no nível dos problemas”.
O problema tem a solução que merece em virtude da forma como se o coloca. Dos meios e termos de que se dispõe para apresentá-lo, depende a verdade do que se apresenta e sua solução. Isto, que é demonstrável na matemática, também tem sua correspondência para a análise histórica e psicológica.
A história dos homens é a história da constituição de problemas, e a tomada de consciência desta atividade está na base da conquista da autonomia e da liberdade. A noção de problema tem sua raiz na própria vida, no impulso vital. A vida se determina essencialmente no ato de superar obstáculos, de apresentar e de resolver um problema.
A construção do organismo é por sua vez a apresentação do problema e solução. A idéia de não ser aparece quando, em lugar de captar as realidades diferentes que dão passagem umas as outras, partimos de uma realidade pré-formada, da idéia de um Ser em geral, que não tem mais remédio que opor-se ao nada. A servidão ao pré-formado está diretamente ligada a uma essencialidade no pensamento e a formulação de más perguntas.
Estas idéias podem nos servir de guia para a construção de diferentes tipos de ferramentas clínicas. Estas ferramentas formarão uma pragmática que possibilite a expansão dos processos criativos que hoje ficam embotados. Mais pelo eficientismo mass-midiático do que pela repressão própria das neuroses e seus relatos.
Neste sentido, o próprio dispositivo clínico tradicional da sessão de 50 minutos, até por certa disfuncionalidade que apresenta em relação com os modelos de mais êxito, adquire uma nova força. Instala, ainda que não se o proponha, uma grata lentidão frente à velocidade telemática que tenta impor-se.
Para finalizar, façamos um ensaio da aplicação de algumas destas idéias para pensar o que se chamam novas patologias. Não desenvolveremos a questão neste espaço, mas será fácil encontrar no relato destes pacientes características que ressoam com os problemas que afetam a prática dos próprios terapeutas.
Os chamados transtornos narcísicos, a patologia de borde, a anorexia, o ataque de pânico, os transtornos obsessivos compulsivos, têm uma característica em comum apesar de suas diferenças e dos enfoques que se possam ser dados. A maioria dos pacientes que referem este tipo de padecimento se apresenta como sujeitos onde se produziu uma progressiva perda do sentido. Em muitos casos, isto se manifesta em uma retirada libidinal que afeta sua relação com os outros e com a produção.
Esta perda ou demolição do sentido exige processos de re-singularização, alguns dos quais estão presentes no plano social através dos movimentos que tem surgido em nossa modernidade (movimentos ecológicos, movimentos anti-discriminatórios, movimentos em defesa de diversas autonomias, etc.).
No trabalho clínico, a recomposição do sentido nos mostra que estamos frente a processos de luto e de perda que nos levam necessariamente a encarar o elemento depressivo que está presente em todos estes quadros. No ataque de pânico, por exemplo, o elemento depressivo muitas vezes é tratado superficialmente através da indicação medicamentosa.
Uma estratégia clínica mais abrangente deveria encarregar-se de recompor o sentido em um sujeito escravizado a um tipo de produção de subjetividade que o aterroriza com sua velocidade e demanda de eficiência.
A característica principal do ataque de pânico, a agorafobia, serve para exemplificar o que viemos tratando. Na agorafobia, um reinvestimento do caos desafia o paciente. Pensemos na incerteza que referíamos acima. Esta embota seus sentidos e agita seu corpo com os mais diversos sintomas. O paciente enfrenta uma máquina espacial complexa onde participam de maneira heterogênea o lugar que atravessa, a circulação que sente como uma ameaça, o olhar dos transeuntes e sua própria percepção existencial de um espaço dilatado. Por outro lado, vive o tempo como uma espécie de presente ampliado onde tenta imobilizar todos seus fantasmas de demolição.
A clínica hoje tem como desafio aprender a cartografar todas estas complexas produções de subjetividade para devolver sentido aos acontecimentos e assim poder ir recuperando o deserto.
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