06 setembro, 2014



Viver é ser outro. Nem sentir é possível
se hoje se sente como ontem se sentiu:
sentir hoje o mesmo que ontem não é
sentir – é lembrar hoje o que se sentiu
ontem, ser hoje o cadáver vivo do que
ontem foi a vida perdida.


Apagar tudo do quadro de um dia para
o outro, ser novo com cada nova
madrugada, numa revirgindade perpétua
da emoção – isto, e só isto, vale a pena
ser ou ter, para ser ou ter o que
imperfeitamente somos.


Queriam-me casado,
fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto,
o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa,
fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!





Toda a vida da alma humana é
um movimento na penumbra. Vivemos,
num lusco-fusco da consciência, nunca
certos com o que somos ou com o que
nos supomos ser. Nos melhores de nós
vive a vaidade de qualquer coisa, e há
um erro cujo ângulo não sabemos.
Somos qualquer coisa que se passa no
intervalo de um espetáculo; por vezes,
por certas portas, entrevemos o que
talvez não seja senão cenário.
Todo o mundo é confuso,
como vozes na noite.


Estas páginas, em que registro
com uma clareza que dura para elas,
agora mesmo a reli e me interrogo.
Que é isto, e para que é isto?
Quem sou quando sinto?
Que coisa morro quando sou?
Tornarmo-nos esfinges, ainda que
falsas, até chegarmos ao ponto
de já não sabermos quem somos.
Porque, de resto, nós o que somos
é esfinges falsas e não sabemos
o que somos realmente.
O único modo de estarmos de acordo
com a vida é estarmos em desacordo
com nós próprios.
O absurdo é divino.



*** Fernando Pessoa ***

- Fragmentos -

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