JORGE DE LIMA (1895-1953)
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E tudo haveria de ser assim, para contemplar-te sereno, ó morte,
e integrar-me nos teus mistérios e nos teus milagres.
Agora vejo os Lázaros levantarem-se
e...
04 dezembro, 2008
Má consciência em Nietzsche
Compilação de textos e comentários: Amauri Ferreira
“Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem. [...] Todo o mundo interior [...] foi se expandindo e se extendendo, adquirindo profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua descarga para fora. Aqueles terríveis bastiões com que a organização do Estado se protegia dos velhos instintos de liberdade – os castigos, sobretudo, estão entre esses bastiões – fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e errante se voltassem para trás, contra o homem mesmo. A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência. [...] esse animal que querem ‘amansar’, que se fere nas barras da própria jaula, este ser carente [...] esse tolo, esse prisioneiro presa da ânsia e do desespero tornou-se o inventor da ‘má consciência’. Com ela, porém foi introduzida a maior e mais sinistra doença, da qual até hoje não se curou a humanidade, o sofrimento do homem com o homem, consigo: como resultado de uma violenta separação do seu passado animal, como que um salto e uma queda em novas situações e condições de existência, resultado de uma declaração de guerra aos velhos instintos nos quais até então se baseava sua força, seu prazer e o temor que inspirava.” Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 16.
[Interiorização das forças ativas: impedidas de serem vazadas, as forças ativas tornam-se reativas, voltando-se para dentro do próprio homem, multiplicando as dores. Esse primeiro aspecto da má consciência é uma operação efetuada através dos castigos impostos pelo Estado – castigos realizados pela vingança, pelo ódio. Através dos castigos produziu-se uma memória: a da obrigação pessoal. Somente assim o homem tornou-se domesticado, culminando no homem civilizado moderno. Diagnóstico de Nietzsche: o homem moderno degenera porque ainda não se curou da má consciência – essa sinistra doença. É através da interiorização dessas forças ativas que o homem faz uma concepção fictícia de um desejo como falta. Ora (como é evidente), separado da capacidade de afirmar a sua natureza, o homem moderno continua a ser movido por uma vontade de potência, porém, sob o signo da carência. É a potência como representação, como objetivo, como alvo, como solução para os tormentos]
“Neles [os fundadores de Estado] não nasceu a má consciência, isto é mais do que claro – mas sem eles ela não teria nascido, essa planta hedionda, ela não existiria se, sob o peso dos seus golpes de martelo, da sua violência de artistas, um enorme quantum de liberdade não tivesse sido eliminado do mundo, ou ao menos do campo da visão, e tornado como que latente. Esse instinto de liberdade tornado latente à força – já compreendemos –, esse instinto de liberdade reprimido, recuado, encarcerado no íntimo, por fim capaz de desafogar-se somente em si mesmo: isto, apenas isto, foi em seus começos a má consciência.” Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 16.
“[...] pois todo sofredor busca instintivamente uma causa para seu sofrimento; mais precisamente, um agente culpado suscetível de sofrimento – em suma, algo vivo, no qual possa sob algum pretexto descarregar os seus afetos [...] pois a descarga de afeto é para o sofredor a maior tentativa de alívio, de entorpecimento, seu involuntariamente ansiado narcótico para tormentos de qualquer espécie.” Genealogia da Moral, Terceira dissertação, 15.
[Como as forças ativas, interiorizadas, não cessam de multiplicar as dores, o sofredor precisa de um alívio, por isso quer encontrar um culpado. O sacerdote judaico realiza o ressentimento como tipo, como forma, como criação de valores, ao apontar o indivíduo “mau”, que age de modo egoísta, feliz por si mesmo, como objeto de ódio do seu rebanho impotente. Já o sacerdote cristão realiza a má consciência também como tipo - ou forma - ao interpretar a dor do sofredor como uma falta, um pecado, ou seja, o sofredor mesmo é culpado pela dor que sente]
“De fato, ele defende muito bem o seu rebanho enfermo, esse estranho pastor – ele o defende também de si mesmo [...] ele combate, de modo sagaz, duro e secreto, a anarquia e a autodissolução que a todo momento ameaçam o rebanho, no qual aquele mais perigoso dos explosivos, o ressentimento, é continuamente acumulado. Descarregar este explosivo, de modo que não faça saltar pelos ares o rebanho e o pastor, é a sua peculiar habilidade, e suprema utilidade; querendo-se resumir numa breve fórmula o valor da existência sacerdotal, pode-se dizer simplesmente: o sacerdote é aquele que muda a direção do ressentimento.” . Genealogia da Moral, Terceira dissertação, 15.
“Apenas nas mãos do sacerdote, esse verdadeiro artista em sentimentos de culpa, ele veio a tomar forma – e que forma! O ‘pecado’ – pois assim se chama a interpretação sacerdotal da ‘má consciência’ animal (da crueldade voltada para trás) – foi até agora o maior acontecimento na história da alma enferma: nele temos o mais perigoso e fatal artifício da interpretação religiosa” Genealogia da Moral, Terceira dissertação, 20.
“[...] com Paulo, o sacerdote quis mais uma vez o poder – e só podia utilizar conceitos, doutrinas, símbolos, por meio dos quais se tiranizam as multidões e se formam rebanhos”. O Anticristo, 42
“Paulo [...] contra Roma, contra o ‘mundo’, o judeu, o judeu errante par excellence... O que ele adivinhou foi o modo como poderia atear um ‘incêndio universal’ com a ajuda do pequeno movimento sectário dos cristãos, à parte do judaísmo; como com o símbolo ‘Deus na cruz’ conseguira reunir num poder imenso tudo quanto era inferior.” O Anticristo, 58.
“[...] o próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus pagando a si mesmo, Deus como o único que pode redimir o homem daquilo que para o próprio homem se tornou irredimível – o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!...” Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 21.
[O golpe de gênio do cristianismo, diz Nietzsche. Paulo de Tarso estabelece uma interpretação da crucificação de Jesus como um ato de amor... aos fracos, oprimidos, amargurados, pisoteados, enfermos. O ódio judeu dá lugar ao “amor” cristão (‘Perdoai-os Pai, pois eles não sabem o que fazem’). Mas esse “amor” é abastecido por um imenso ódio à vida, aos indivíduos fortes e saudáveis; ódio tornado explícito como nessa frase de Tomás de Aquino (que Nietzsche cita na Genealogia da Moral, primeira dissertação, 15): ‘Os abençoados no reino dos céus verão as penas dos danados, para que sua beatitude lhes dê maior satisfação’. O ‘Juízo Final’, reino dos céus e inferno como armadilhas sacerdotais que servem para capturar a massa enferma. A dor interna passa a ser espiritualizada, encontra-se até benefícios ascéticos para continuar a experimentá-la, pois, desse modo, a alma enferma será curada no ‘além’ e será finalmente feliz - é sempre por vontade de potência que essas sandices são investidas...]
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Ressentimento em Nietzsche
Compilação de textos e comentários: Amauri Ferreira
“E nenhuma chama nos devora tão rapidamente quanto os afetos do ressentimento. O aborrecimento, a suscetibilidade doentia, a impotência de vingança, o desejo, a sede de vingança, o revolver venenos em todo sentido [...] O ressentimento é o proibido em si para o doente – seu mal: infelizmente também sua mais natural inclinação.” Ecce Homo, Por que sou tão sábio, 6.
“Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência [...] para que novamente haja lugar para o novo.” Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 1.
[As marcas duráveis, no estado de “digestão”, não penetram mais em uma consciência com “portas e janelas” fechadas. O esquecimento torna-se primordial para estabelecer essa saúde psíquica]
“Mesmo o ressentimento do homem nobre, quando nele aparece, se consome e se exaure numa reação imediata, por isso não envenena: por outro lado, nem sequer aparece, em inúmeros casos em que é inevitável nos impotentes e fracos. Não conseguir levar a sério por muito tempo seus inimigos, suas desventuras, seus malfeitos inclusive – eis o indício de naturezas fortes e plenas, em que há um excesso de força plástica, modeladora, regeneradora, propiciadora do esquecimento.” Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 10.
[O deslocamento das marcas duráveis do inconsciente para a consciência é inevitável, em muitos casos. A diferença é que, para quem é ativo, as impressões alojadas na consciência não chegam a envenenar, o que não constitui um tipo ressentido. Nietzsche, ao dizer que a vida saudável é aquela que sabe esquecer, não quer negar em absoluto que certas impressões estejam na consciência (por isso ele diz “fechar temporariamente” as portas e janelas da consciência). Embora essa questão não tenha sido abordada com profundidade por ele (o filósofo Henri Bergson, por exemplo, fez uma análise profunda sobre isso na obra “Matéria e Memória”), o problema se passa no uso das impressões alojadas na consciência: se for para julgar a vida, isso é nocivo; se for para a produção do futuro, aí já é um sintoma de uma vida saudável. Essa é uma reação imediata do homem ativo; o riso, também é uma outra reação imediata ativa]
“O homem no qual esse aparelho inibidor é danificado e deixa de funcionar pode ser comparado (e não só comparado) a um dispéptico – de nada consegue ‘dar conta’...” Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 1.
[Analogia que Nietzsche faz com a assimilação psíquica (marcas duráveis no estado inconsciente) com a assimilação física (alimentos no estado de digestão, portanto, um processo inconsciente do corpo). O ressentimento estabelece-se como uma dispepsia, isto é, a ruminação constante das marcas na consciência, bloqueando as novas excitações que chegam ao nosso corpo. Tudo que é novo submete-se à marca durável alojada na consciência. A marca é re-sentida]
“Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro, um ‘não-eu’ – e este Não é seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua ação é no fundo reação.” Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 10.
[Aqui, Nietzsche utiliza a expressão “moral nobre” (como modo de vida ativo) apenas para contrapor à “moral dos escravos”, já que é evidente o sentido da palavra “moral” na filosofia de Nietzsche: sempre o lugar do “bem” e do “mal”. O ressentimento, já no seu segundo aspecto, passa a criar valores, ou seja, há uma inversão dos valores nobres pelos valores plebeus]
“[...] imaginemos ‘o inimigo’ tal como o concebe o homem do ressentimento – e precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu ‘o inimigo mau’, ‘o mau’, e isto como conceito básico, a partir do qual também elabora, como imagem equivalente, um ‘bom’ – ele mesmo!...” Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 10.
[Mau, pelo modo de valorar do ressentimento, é todo aquele que age de modo egoísta, sem pensar nas conseqüências. Portanto, mau é aquele que expressa a força que possui. Ora, tudo na natureza é um conflito de forças, de vontade de potência. Recebemos efeitos dos outros corpos sobre o nosso corpo, ou seja, inevitavelmente recebemos impressões de forças exteriores à nossa. Tudo que nos atinge é expressão de uma vontade de potência: a força do frio, do vento, do calor, da fome, da sede, etc. A impressão produzida em nós em um encontro com outra pessoa (voz, som, imagem, etc.), nada mais é do que o efeito de uma potência em choque com a nossa. Daí Nietzsche dizer que só há vontade de potência nas relações, que implicam, necessariamente, conflitos e resistências. Toda força está em relação com outra força. O tipo ressentido, já dominado por uma impressão, passa a acusar a “injustiça” da vida]
“’[...] sejamos outra coisa que não os maus, sejamos bons! E bom é todo aquele que não ultraja, que a ninguém fere, que não ataca, que não acerta contas, que remete a Deus a vingança, que se mantém na sombra como nós, os pacientes, humildes, justos’.” Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 13
[Neste trecho, Nietzsche nos diz sobre como a vingativa astúcia da impotência passa a inverter a imagem das coisas: o bom, agora, é aquele que degenera, que não efetua mais as suas forças]
“Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências, triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força [...] apenas sob a sedução da linguagem [...] a qual entende ou mal-entende que todo atuar é determinado por um atuante, um ‘sujeito’ é que pode parecer diferente.” Genealogia da Moral, Primeira dissertação, 13.
[O tipo ressentido, ou homem reativo, encontra uma maneira de impedir a ação dos homens ativos: atribuir a culpa a eles por um dano sofrido. Isso significa que o homem ativo poderia não ter agido, poderia ter escolhido livremente não efetuar a força que possui. Ora, isso é uma ficção, já que não há um substrato anterior à ação. Não há livre-arbítrio. O homem ativo, quando deixa de agir, não é porque ele “escolheu” não ser mais ativo, mas sim porque as forças ativas foram interiorizadas nele através da acusação realizada pelo homem do ressentimento. É somente assim que as forças reativas, e a moral do ressentimento, acabam triunfando: por subtração das forças ativas dos homens fortes]
“O homem ativo, violento, excessivo, está sempre bem mais próximo da justiça que o homem reativo; pois ele não necessita em absoluto avaliar seu objeto de modo falso e parcial, como faz, como tem que fazer o homem reativo.” Genealogia da Moral, Segunda dissertação, 11
[O homem ativo, por já efetuar a sua força, alegra-se com isso. Ele diz para si mesmo que é bom. Ele não precisa de um julgamento exterior que validaria a ação que efetua]
“São para mim desagradáveis as pessoas nas quais todo pendor natural se transforma em doença, em algo deformante e ignominioso - elas nos induziram a crer que os pendores e impulsos do ser humano são maus; elas são a causa de nossa grande injustiça para com a nossa natureza, para com toda natureza! Há pessoas bastantes que podem se entregar a seus impulsos com graça e despreocupação: mas não o fazem, por medo dessa imaginária ‘má essência’ da natureza!” A Gaia Ciência, 294.
[O padre (ou qualquer sistema de poder) ensina a antinatureza. Assim, os instintos são “maus” e devem ser controlados, vigiados]
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