06 janeiro, 2009

Kumari: uma deusa e três versões humanas




No Nepal, o culto à Kumari impõe a veneração de uma criança, símbolo da pureza. Escolhida aos 4 anos, ela vive reclusa, rodeada de guardiões. Mas, na adolescência, a deusa viva deve deixar seu lugar para uma nova Kumari -o que significa um retorno brutal para o mundo dos mortais.

Por Catherine Monfajon-Simpson*.

Da Marie Claire França/Tradução: Ana Ban


Quando era criança, o mundo estava a seus pés. Todos deviam se ajoelhar em sua presença. Até seus pais. Até o rei do Nepal. "As pessoas beijavam meus pés. Algumas os lavavam e depois bebiam a água, porque pensavam que era um bom remédio."

As coisas eram assim desde que ela tinha 4 anos, desde que foi escolhida para ser a Kumari, a "deusa viva".

Rashmila achava tudo aquilo normal. O inconcebível, para ela, foi um dia saber que não era mais deusa. Tinha acabado: ela estava com 12 anos, idade de sua primeira menstruação. O sangue supostamente fez ela perder sua divindade e a transformou em humana de novo.

Rashmila bateu o pé, choramingou. Tentou de tudo: gritos, silêncio. Mas, pela primeira vez, ninguém a escutava, ninguém a obedecia. Ela não era mais a Kumari, não era mais ninguém.

Para substituí-la, uma dezena de pais ofereceram suas filhinhas de 4 anos, saídas, assim como Rashmila, de uma das castas mais altas do Nepal, a dos Shakya Newar (todos antigos joalheiros). Ainda que budista, a Kumari também é venerada pelos hinduístas, duas religiões muito ligadas no Nepal.

Entre as menininhas, procura-se a pérola que possua todas as 32 qualidades exigidas: pele perfeita, sem nenhuma cicatriz; traços particularmente finos; personalidade angelical... E, depois disso tudo, o astrólogo real dá a última palavra.
Para a prova final, a criança é trancada em uma sala do templo cheia de cabeças de animais ensangüentadas: se ela se mostrar amedrontada, se chorar, não pode ser deusa. "Isso pode parecer terrorismo psicológico, mas é preciso ter certeza de que ela tem todas as qualidades exigidas para ser deusa", diz Sangita Shrestha, nepalesa hinduísta, diretora de um hotel internacional de Katmandu, preocupada com o julgamento que os ocidentais podem fazer dos costumes de seu país.

"Em nosso país, onde a mulher é normalmente pouco respeitada, o costume da Kumari impõe a todos venerar uma criança, símbolo da inocência, pureza e feminilidade. É algo muito positivo."


Hoje, Rashmila tem 20 anos. Ela foi convidada, como todas as ex-Kumaris, para ajudar no festival anual de Indra Jatra: três dias de júbilo em honra da pequena deusa viva que a sucedeu.

A multidão que invadiu a parte velha de Katmandu dá uma idéia precisa da popularidade da Kumari. As pessoas se aglomeram em todas as varandas, os degraus dos templos são inundados de saris de todas as cores. Mulheres vêm das cidadezinhas próximas com um monte de filhos parecidos, com os olhos arregalados, impacientes para ver sua princesa divina. No Nepal, todas as menininhas sonham em ser Kumari.

Precedido por uma nuvem de guardas e soldados nervosos, o rei do Nepal chega para a abertura oficial das festividades, quase passando despercebido pela multidão que não está ali por causa dele.

Quando a procissão finalmente começa a avançar pelas ruas da cidade, a Kumari é rodeada na mesma hora por uma maré humana enfurecida. Ela não se mexe, empoleirada em seu trono no topo de uma imensa carruagem antiga, que é puxada por homens que vão abrindo caminho -não se sabe como- pelas ruas abarrotadas da velha Katmandu.

A noite cai. A monção acorda, mas todo mundo ignora a chuva mesquinha, incapaz de estragar uma festa tão grandiosa. O coração de Katmandu volta a ser mágico, atemporal. Dá para esquecer o trânsito, a poluição, a miséria, as crianças que vomitam na rua, os "sherpas" que são só pele e osso e que passam o dia inteiro carregando nas costas enormes geladeiras ou televisores. Abre-se espaço para o ópio de todos os povos: o sonho. Um sonho divino, encarnado por uma menininha de uns 10 anos.

Ela está ostensivamente maquiada, os olhos alongados com pintura negra, a testa colorida de vermelho-carmim e enfeitada com um terceiro olho, "aquele que vê além de tudo e destrói o mal". Penteada com uma tiara em ouro coberta de jóias, ela parece tão kitsch quanto os budas pintados nos templos. É uma coisinha fofa que fascina de tão séria, impressionantemente indiferente. Seu olhar vazio, quase inexpressivo, parece encerrar um aborrecimento profundo...


Falsa impressão. "Ela não se aborrece nem um pouco", garante Rashmila. Se ela parece impassível, é porque está proibida de sorrir. Assim como também não pode chorar. Lógica: como acreditar em uma deusa chorona? "Eu ficava muito animada. Era uma imensa felicidade ver toda essa gente reunida para me adorar. Era o meu grande passeio do ano", afirma Rashmila.

O grande passeio de verdade, porque a Kumari tem raríssimas oportunidades de se distrair. No total, ela tem o direito de sair do palácio 13 dias por ano para comparecer a diferentes cerimônias. O resto do tempo, vive reclusa em seu palácio no coração da velha Katmandu.

É uma casa suntuosa com janelas em madeira trabalhada, construída para a deusa há 250 anos pelo último rei da dinastia Malla. Foi ele que instituiu o culto da Kumari por razões que ainda continuam confusas. Mas as regras do culto são implacáveis e imutáveis.

A Kumari não pode sair de seu palácio, nem mesmo para ir ao pátio interior. Ela cresce sem jamais sentir o mínimo raio de sol bater ou a menor gota de chuva escorrer sobre a pele. Rashmila afirma que não sofria: "Eu não me sentia prisioneira. Recebia muitas visitas, era muito amada. Mas quando olhava pela janela e via as crianças da escola vizinha brincando juntas, às vezes eu tinha vontade de brincar com elas".


A maior parte das ex-Kumari evoca lembranças muito felizes de sua vida no palácio. Principalmente Heera, que hoje tem 83 anos. Mesmo desdentada, ela conserva sua graça e seu sorriso. Ela só foi Kumari por dois anos, porque pegou rubéola e isso acabou com seu "reinado".

Para ela, são lembranças de férias extraordinárias: "De repente eu tinha um monte de coisas boas para comer, roupas muito bonitas e todo mundo achava que eu era maravilhosa. Como não ficar contente?" Mas será que ela realmente se sentia uma deusa? Ela hesita e sorri com malícia: "Não sei. Só sei que eu era uma menina mais mimada do que as outras!"

A cada manhã, a deusa viva é banhada em um clima impressionante de cerimônias e de preces que acontecem em um ambiente infestado de incenso. Ela é maquiada, coberta de jóias e finalmente colocada no alto de um trono de ouro para receber seus visitantes, todos a seus pés para ganhar a bênção que traz boa sorte. O resto do tempo, ela faz o que bem entende: dá ordens, se faz servir e assiste TV à vontade.

A Kumari recebe muitas oferendas, presentes e até dinheiro dos visitantes. Quase tudo vira em benefício para seus guardiões (todos provenientes da mesma família há gerações) porque, no dia de sua partida, a deusa deve deixar o palácio de mãos vazias.



(Palácio da deusa Kumaris em Katmandu, capital do Nepal: ela aparece na janela superior por fugazes segundos, não chega a um minuto. Foto minha)



A Kumari também se transformou em uma verdadeira atração turística - uma conivência perfeita parece ligar os guardiões aos guias turísticos de Katmandu. Como os estrangeiros não podem visitar a Kumari, os guias fazem um breve sinal com a cabeça à guardiã e a deusa aparece na janela. Ela não fica ali mais do que meio segundo, o tempo de revelar um olhar cansado.

Na seqüência, os guias pedem aos turistas que façam uma "oferenda". E, claro, todo mundo faz. Mas o dinheiro tirado deles não tem a menor importância. O que envenena o presente das ex-Kumaris não são os lucros perdidos, mas o fantasma da infância.

Miraculosamente, nenhuma ex-Kumari se transforma em uma moça caprichosa, obesa ou odiosa. O drama é que nenhuma delas foi preparada para deixar de ser deusa, para sair do palácio e pensar no futuro. Com uma hora de aula por dia, todas saem de lá sem saber ler nem escrever.


A atual Kumari ainda não sabe que vai embora daqui a um ou dois anos. Seus pais não vêem por que ela deveria saber. Eles esperam tranqüilamente que ela volte para sua casa modesta, muito orgulhosos da filha que lhes deu tanto prestígio social. Seu pai, chofer, brigou para conseguir que a filha recebesse quatro horas de instrução por dia. Ela será a primeira Kumari educada. Mas não será a última a deixar o palácio em choque psicológico.

Para Rashmila, a "vida de verdade" se transformou logo em um inferno. Em primeiro lugar, tinha medo de tudo. A rua, os carros, o trânsito que ela nunca tinha enfrentado. Antes, nas raras vezes em que saía, era carregada porque não podia encostar nem um dedo do pé no chão supostamente impuro.

Depois de oito anos fechada em seu palácio, Rashmila não sabia se locomover. "Na verdade, ela andava como um cavalo", sua irmã mais velha lembra, rindo. As pessoas a assustavam: elas não se ajoelhavam mais na frente dela; pior, falavam com ela. Rashmila ficava dura como pedra. Era incapaz de estabelecer uma relação normal com qualquer um.

De volta à sua casa, rejeitou seus pais completamente, recusando-se a chamá-los de pai e mãe. Ela tinha vivido separada deles desde os 4 anos, aquela não era mais sua família. "Eles me visitavam no palácio, mas quanto mais o tempo passava, menos eu tinha a lhes dizer; sua presença já não fazia muita diferença para mim. Eu tinha adotado a família dos meus guardiões."

Hoje, com 20 anos, Rashmila é muito bonita, muito refinada e aterrorizantemente tímida. Sua voz é quase inaudível. Para articular duas frases na seqüência, ela precisa usar de muita coragem, esforço traído por suas mãos que não param de se contorcer.

Foi sua irmã mais velha quem a ajudou a sair da depressão, ficando a seu lado o dia inteiro e mostrando que era preciso esquecer, atacar o presente. Começando pelos estudos. Com 12 anos, sem saber ler nem escrever, ela foi para a escola com crianças de 6 anos. Mas estudou sem parar e pulou uma ou duas séries por ano.

Passou no vestibular e hoje faz faculdade de ciências naturais. Para quebrar a timidez, começou a dar aulas para o maternal no ano passado. Rashmila começa a desenhar um futuro para si. Ela ainda não sonha com casamento, a lenda a condena à solidão. A sabedoria popular prega que se casar com uma ex-Kumari traz azar, que o marido morre cedo. Mesmo se ex-Kumaris tiveram casamentos felizes, a lenda persiste, sem incomodar Rashmila. O que conta para ela é conseguir conhecer pessoas, ter amigos. Enfim, ela quer mergulhar na "vida de verdade".

Anita não conseguiu se sair tão bem. Com 29 anos, ela vive dobrada sobre seu passado. Sua vida parou no dia em que Rashmila a substituiu. Ela não entendia por que precisava ir embora. "Eu continuava me sentindo a Kumari, mesmo sem a maquiagem e as jóias. Eu não tinha mudado, eu era a mesma. Achava estranho as pessoas não se ajoelharem mais na minha frente." Para ela, aquilo significava, de maneira confusa, que ela não era mais respeitada, que não era mais amada.

Como Rashmila, Anita fez esforços enormes para recuperar o nível escolar normal, mas ela não passou no vestibular repetidas vezes e acabou por abandonar qualquer perspectiva de futuro. Nada a atrai. "Eu quase nunca tenho vontade de sair", ela diz. Nem de viajar, nem de trabalhar. Anita reproduz a vida reclusa de deusa. Passa seus dias na frente da TV e, quando fala, é sempre sobre sua infância: "Foi o melhor momento da minha vida".

Esse tipo de depressão surpreende Harsha. Com 48 anos, ela não tem saudade nenhuma de sua infância de Kumari. Hoje, é enfermeira em uma maternidade. "Desde que saí do palácio da Kumari, tive vontade de trabalhar, de agir." Ela também não sabia nem ler nem escrever, mas tinha uma coragem diferente das outras. O problema para Harsha não era se adaptar ao mundo real. Era ter sido privada dele por tanto tempo: Harsha não gostou de sua infância.


"Eu me sentia prisioneira. Mas não dizia a ninguém. Passava o tempo olhando através da janela que dava para a rua, queria ver as pessoas vivendo normalmente. Hoje, no meu trabalho, poucas pessoas sabem que eu fui Kumari, quero esquecer aquele período."

Casada, mãe de dois filhos, Harsha parece equilibrada. Mas ainda dá para sentir sua timidez, traída pelo gesto comum a todas as ex-Kumaris entrevistadas: a maneira de contorcer as mãos violentamente, como se tentassem arrancar um dedo para cada sílaba que acabam de pronunciar.

Falar, comunicar-se, enfrentar a realidade: essas nunca serão as preocupações de uma outra Kumari que escolheu, adulta, um caminho inteiramente diferente das outras. Ela é conhecida pelo nome pouco elogioso de "velha Kumari", porque tem 48 anos e ainda é deusa.

Criança, ela foi Kumari da cidade de Patan. No Nepal existem diferentes Kumaris, uma para cada cidade importante, porque antes o país era dividido em reinos e cada rei tinha a sua. A Kumari de Katmandu continua sendo a mais importante, porque é reconhecida pelo rei.

"Um dia, ela disse à nossa mãe que não suportaria não ser mais Kumari, que ela queria continuar sendo deusa pelo resto da vida. E ela nunca ficou menstruada, por isso nunca precisou ir embora", conta sua irmã.

Será que sua vontade desesperada de ser deusa bloqueou sua menstruação? Nesse caso fala-se somente em milagre, porque ninguém acredita que ela possa mentir. Não somente acredita-se nela como também ela recebe numerosos e fervorosos visitantes.

Só o comitê da Kumari de Patan se aborreceu um pouco, apesar de, no começo, ter aceitado ver sua Kumari envelhecer. Ela foi informada de que a situação ficou insustentável, sob o pretexto que estava ficando muito difícil carregá-la nas festas: ela estava muito pesada.

Uma outra menininha foi eleita "deusa viva" de Patan, enquanto a velha Kumari continua tranqüilamente a exercer sua vocação em um pequeno salão obscuro com atmosfera pesada. Ali onde as pequenas Kumaris se revelam comoventes com seu fervor inocente, aquele rosto adulto, ingrato, que não exprime mais nada de tanto ter aprendido a nunca deixar transparecer sentimentos, incomoda.

"Habitualmente, quando se vai visitar os deuses nos templos, são estátuas. Mas ela está viva, é muito impressionante", afirma uma jovem nepalesa hinduísta. Ouvir tais palavras é tranqüilizador, porque quem vê a velha Kumari sai de lá se perguntando se ela ainda está realmente viva.






Um comentário:

Cerikky.. Cesar Ricardo Koefender disse...

A Kumari que eu vi quando estive no Nepal, ou, melhor, que meus olhos e minha emoção viram, era uma menina absurdamente linda que apareceu durante fugazes segundos no balcão das aparições, uma janela no andar mais alto do palácio, no centro de Katmandu, perto da darbar square.

Não sei ao certo se foi "o folclore" e os muitos comentários que ouvi dos guias de outros grupos, pois que eu os havia dipensado, ou as solicitações do pessoal do hotel, com alguns dos quais estabeleci uma bela relação de confiança, amizade e afeto, mas o certo é que fiquei muito emocionado ao ver aquela menina ostentando não apenas um olhar... mas toda uma postura, um ar, uma atitude absolutamente divina.
Foi muito impressionante.
É difícil para um ocidental acreditar numa deusa que deixa de sê-la quando menstrua, pois aí revela sua humanidade.
Lá, no entanto, ela é verdadeiramente reverenciada como um deusa viva... alguns dos devotos esperam horas por uma aparição e, quando finalmente ela aparece... eles não conseguem encará-la e abaixam os olhos!
Todo o clima de expectativa gerado e a clamor religioso é algo "que pega" a gente mesmo, pelo menos foi assim comigo.

A expressão que vi, traduzi, dos olhos dela, era de absoluta... indiferença, desejo de adoração, poder incomensurável e algo como um sentimento de "eu sou a deusa viva, a Kumari, e vocês me devem nada menos do que adoração".
Eu acho que ela realmente acreditava nisso; vivia isso!
Podemos fazer n+1 conjecturas sobre o lugar da mulher, da alienação, da exploração e do desrespeito para com os direitos humanos e para com a criança que ela era... mas... mas... mas

... os depoimentos das ex-Kumaris estão aí.
Quais são os limites e fronteiras que existem entre cultura, hábitos, tradição, religião, e etc. etc. etc.?