21 janeiro, 2009

Shiva e a Dança Cósmica





"A dança de Shiva simboliza...os ciclos cósmicos de criação e destruição... e o ritmo diário de nascimento e morte, visto no misticismo indiano como a base da existência... Shiva lembra-nos que as múltiplas formas do mundo são maya - não fundamentais mas ilusórias e em permanente mudança - na medida em que segue criando-as e dissolvendo-as no fluxo incessante de sua dança...

A mão direita superior do deus segura um tambor que simboliza o som primordial da criação; a mão esquerda superior sustenta uma língua de chama, o elemento de destruição. O equilíbrio das duas mãos representa o equilíbrio dinâmico entre a criação e a destruição do mundo, acentuado ainda mais pela face calma e indiferente do dançarino no centro das duas mãos, no qual a polaridade entre criação e destruição é dissolvida e
transcendida. A segunda mão direita ergue-se num gesto que significa "não tenha medo", expressando manutenção, proteção e paz; por sua vez, a mão esquerda remanescente aponta para baixo, para o pé erguido e que simboliza a libertação da fascinação de maya. O deus é representado dançando sobre o corpo de um demônio, símbolo da ignorância do homem e que deve ser conquistado antes que seja alcançada a iluminação.

A dança de Shiva - ainda nas palavras de Coomaraswamy - é "a imagem mais clara da atividade de Deus de que se pode vangloriar qualquer arte ou religião". Como o deus é uma personificação de Brahma, sua atividade é a atividade das incontáveis manifestações de Brahman no mundo.

A dança de Shiva é o universo que dança, o fluxo incessante de energia que permeia uma variedade infinita de padrões que se fundem uns nos outros...

A física moderna mostrou que o ritmo de criação e destruição não se acha manifesto apenas na sucessão das estações e no nascimento e na morte de todas as criaturas vivas, mas também na essencia mesma da matéria inorgânica... é a base da própria existência da matéria, uma vez que todas as partícula "auto-interagem" pela emissão e absorção de partículas virtuais... ela revelou pois, que cada partícula subatômica não apenas executa uma dança de energia, mas também é uma dança de energia, um processo vibratório de criação e destruição. (Fonte: o Tao da Física, de Fritjof Capra. ps. 183-185)










Uma outra representação de Shiva relativa a um outro par de opostos começou a surgir na Índia com a invasão dos povos árias do norte. Eles possuíam uma coletânea de hinos chamados RigVedas, em sanscrito primitivo, usado quando se ofereciam os sacrifícios Arianos. Ali, Shiva conhecido como Rudra, O Terrífico, era uma divindade menor a qual os devotos se dirigiam em apenas três hinos. Sob o nome de Shiva, mais tarde, esta divindade vem a se transformar em um dos três principais Deuses do panteão hindu, depois de absorver algumas características de um Deus da Fertilidade indígena. Neste momento se configurou a trindade constituída por Vishnu, significando existência, luz, concentração e preservação. Shiva como representante de aniquilamento, trevas, dispersão e destruição. E Brahma , no centro, com eixo de equilíbrio.

Shiva depois de passar, como Rudra, por características sinistras, misteriosas e associadas às funções destrutivas, se apresenta plenamente desenvolvido, combinando características contrastantes . Como Mahakala ele é o grande deus do tempo infinito, que tudo destroi. Com um aspecto oposto, ele é Pashupati, o senhor de toda a criação. Contam que a terra estava ficando desolada e foram pedir a Vishnu que despejasse sobre a terra o rio cósmico Ganga, para restaurar toda a vida do planeta. Acontece que este rio tinha uma força torrencial que se caísse sobre a terra, destruiria tudo, a faria em pedaços. Shiva, ao saber, amparou o rio em sua cabeça, e pela água que lhe escorriam pelo seus longos cabelos negros surgiram os veios que deram origem ao Rio Ganga (Ganges) que possui exatamente esta função restauradora e purificadora.

Shiva é ainda Nilakanta , O Garganta Azul. Dizem que a serpente Vasuki espalhou sobre o universo um veneno que o ameaçava de destruição. Os Devas e Asuras que não podiam lidar com tamanho problema, recorreram a Shiva que bebeu o veneno livrando todo o universo de ser destruído.

Já como Nataraja - O Senhor da Dança, Shiva possui os dois aspectos: destruidor e criador. Na reclusão de sua morada, no alto do Monte Kailasa nos Himalaias, Shiva dança. E ao executar este ritual ele revolve toda a neve sob seus pés, e à sua volta. Assim enquanto dança ele destroi o universo. Mas a neve remexida pela dança se derrete e começa a formar um pequeno filete de água que desce as montanhas formando pequenos veios que mais abaixo se transforma numa volumosa fonte de vida que é o Rio Ganga.

Shiva é ainda Ashutosha - 'Aquele que se basta', o Senhor do Desapego. Aceita de bom grado o que lhe é oferecido valorizando desse modo, mais a intenção do que o objeto oferecido.

Como uma lembrança do que é impermanente ou da constante mudança, Shiva é Akasha - o éter, o sem forma. Os fiéis de Shiva neste estado o veneram em ritos usando uma pedra normalmente colhida no Rio Ganga ou no Rio Gandaki no Nepal, para representar a sua imagem sem forma. E transcendendo o estado de Akasha encontramos a 'consciência pura'.

Com todas estas manifestações através das formas e da não-forma, de sua dança através dos tempos, encontramos nos Svetasvattara Upanishads uma menção sobre "este Deus (que) é o artesão do Universo, o Ser Supremo. (Ele) mora eternamente no coração das criaturas". E ainda é dito que "quando não há trevas, não há nem dia nem noite, nem ser nem não-ser, então (este) é Shiva , o Absoluto, é o Imperecível".

Para que os devotos lidem com todas estas representações, é pedido a eles que adorem não os nomes e as formas, mas o dinamismo, a torrencial corrente cósmica de fugazes evoluções, que continuamente produz e aniquila as existências individuais; como gotas de uma poderosa queda d'água. O indivíduo passa a ter uma atitude, identificando sua mente com o princípio que lhe dá existência. Que o lança para dentro de um processo de crescimento, eliminando as contradições existentes em seu caminho. Assim ele se sente como parte desta força suprema. Tanto os pesares quanto as alegrias são transcendidas na entrada em um estado puro, livre de opostos.

Assim como em todo este simbolismo védico, as estruturas psicológicas contém secretamente o seu oposto, ou está de alguma forma ligado à ele. E não existe nenhum ritual, ou momento psicológico, que não se converta em seu oposto quando se toma uma posição extrema. Quanto mais tomamos uma atitude unilateral, tanto mais podemos esperar sua reversão para o seu contrário. Isto é chamado enantiodromia.

Portanto todas as nossas qualidades e características das quais mais gostamos e defendemos são as mais ameaçadas com certa perversão diabólica. Pois são exatamente elas que mais reprimem o mal.

O autoconhecimento é uma aventura que nos conduz a amplidões e profundezas inesperadas, sendo sempre muito doloroso desencadearmos perturbações difíceis de se administrar. Nossa existência individual se caracteriza por uma relação entre a alma livre, pura e perfeita, e as ilusões do mundo exterior. Mas sempre poderemos transcender à estes obstáculos temporais e a todos os nossos apegos para conseguirmos discernir a realidade aparte das camadas de ilusão que a envolvem.

Para a psicologia moderna, com este empreendimento estaremos sempre lidando com a vida e a morte da consciência comum, para dar lugar ao surgimento de uma consciência superior. Num confronto com a sombra, que apesar de sinistro e inevitável, é o que nos projeta para a individuação.

E, sempre que olho para lugares ermos do inconsciente, vejo Shiva. No topo do Monte Kailasa. Pronto para começar a sua dança.

(*) Sérgio Pereira Alves é Psicólogo Clínico Junguiano atuando na clínica particular em Belo Horizonte. Autor de vários artigos publicados em jornais e revistas especializadas.

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