18 novembro, 2008

“Fale com ele” ou como tratar o corpo vibrátil em coma



O “capitalismo mundial integrado”1, em sua composição com a tecnociência, envolve uma mudança radical das formas de existência humana. Tal mudança tem exigido um esforço de elaboração em todas as áreas do conhecimento. Que questões esta situação coloca para as práticas clínicas na atualidade?


Uma idéia proposta por alguns autores contemporâneos, especialmente no entorno de Toni Negri, indica um caminho possível de resposta a esta pergunta. Segundo eles, a partir dos anos 1970 ou 80, o capitalismo vem fazendo da força de invenção sua principal fonte de valor, o motor mesmo da economia, e para isso tem mobilizado esta força por todo corpo social. Este fenômeno, pensado pelos autores do ponto de vista econômico e macropolítico, implica evidentemente uma política de subjetivação, que tem por conseqüência a aparição de novos problemas no âmbito das práticas clínicas: o destino da força de criação hoje, ao qual poderíamos agregar o destino da relação entre a força de criação e a força de resistência, estariam no cerne do que deve ser enfrentado por estas práticas na atualidade. Mas o que entender por força de criação e de resistência e seu estatuto no processo de subjetivação em geral, de modo a problematizar seu destino na subjetividade contemporânea?


As forças de criação e de resistência mobilizam-se na subjetividade em decorrência de um paradoxo irresolúvel entre dois modos de apreensão do mundo enquanto matéria – como desenho de uma forma ou como campo de forças –, os quais por sua vez dependem da ativação de diferentes potências da subjetividade em sua dimensão sensível. Conhecer o mundo como forma convoca a percepção, operada pela sensibilidade em seu exercício empírico; já conhecer o mundo como força convoca a sensação, operada pela sensibilidade em seu exercício intensivo e engendrada no encontro entre o corpo, como campo de forças, decorrentes das ondas nervosas que o percorrem, e as forças do mundo que o afetam. Vou designar este exercício intensivo do sensível por “corpo vibrátil”, para distinguí-lo do exercício empírico do sensível, pois é com ele que corremos mais facilmente o risco de confundi-lo. “Percepção” e “sensação” referem-se a potências distintas do corpo sensível: se a percepção do outro traz sua existência formal à subjetividade, existência que se traduz em representações visuais, auditivas, etc., já a sensação traz para a subjetividade a presença viva do outro, presença passível de expressão, mas não de representação. Na relação com o mundo como campo de forças, novos blocos de sensações pulsam na subjetividade-corpo na medida em que esta vai sendo afetada por novos universos; enquanto que na relação com o mundo como forma, através das representações, a subjetividade se reconhece e se orienta no espaço de sua atualidade empírica. Há entre esses dois modos de apreensão do mundo uma disparidade inelutável – um paradoxo constitutivo da sensibilidade humana. Tal paradoxo acaba por colocar as formas atuais em xeque, pois estas tornam-se um obstáculo para integrar as novas conexões que provocaram a emergência de um novo bloco de sensações. Com isso, estas formas deixam de ser condutoras de processo, esvaziam-se de vitalidade, perdem sentido. Instaura-se então na subjetividade uma crise que pressiona, causa assombro, dá vertigem.


É para responder a essa pressão que se mobiliza na subjetividade a vida enquanto potência de criação e de resistência: o assombro força a criar uma nova configuração da existência, uma nova figuração de si, do mundo e das relações entre ambos (é para isso que se mobiliza a potência de criação, o afeto artístico); o assombro força igualmente a lutar para que essa configuração se afirme na existência e inscreva-se no mapa em vigor, sem o que a vida não vinga (é para isso que se mobiliza a potência de resistência, o afeto político). É a associação do exercício destas duas potências que garante a continuidade da vida, sua expansão. As múltiplas transformações moleculares que daí resultam vão se acumulando e acabam precipitando novas formas de sociedade – uma obra aberta e em processo, cuja autoria é portanto necessariamente coletiva. O paradoxo do sensível pulsando no coração da experiência subjetiva e a vertigem que ele mobiliza são assim constitutivos do processo de individuação em seu constante devir outro: eles são o motor propulsor da construção da realidade de si e do mundo, seu disparador. Isto faz de todo e qualquer modo de subjetivação, uma configuração efêmera em equilíbrio instável.


Políticas de subjetivação variam segundo o lugar que ocupam estes dois modos de abordagem do mundo, a flexibilidade de modulação deste duplo exercício do sensível e, portanto, a relação que se estabelece com o caráter inexorável do paradoxo que há entre eles. De tais políticas depende o quanto um modo de subjetivação favorece ou constrange a processualidade da vida, sua expansão enquanto potência de diferenciação – potência que depende da força de invenção que decompõe mundos e compõe outros e, indissociavelmente, da força de resistência que garante a mudança. Como problematizar nestes termos a política de subjetivação dominante no contexto atual do capitalismo mundial integrado?

Dois aspectos se destacam e se entrechocam: por um lado, o conhecimento do mundo como campo de força tende a ser desacreditado, o que tem como efeito uma tendência à sua desativação: o corpo vibrátil encontra-se em estado de coma; por outro, intensifica-se brutalmente o paradoxo entre os blocos virtuais de sensações e as formas de vida atuais, o que intensifica igualmente a vertigem e a mobilização das forças de criação e de resistência que ela provoca.

Muitas são as causas da intensificação dessa dissonância. Para ficar apenas em duas das mais evidentes, destaca-se o fato de que a existência urbana e globalizada que instaura-se com o capitalismo, implica que os mundos a que está exposta a subjetividade em qualquer ponto do planeta multiplicam-se cada vez mais e variam numa velocidade cada vez mais estonteante, ou seja a subjetividade é continuamente afetada por um turbilhão de forças de toda espécie; destaca-se ainda o fato de que a necessidade de estarem sendo constantemente criadas novas esferas de mercado – necessidade inerente à lógica capitalista –, implica que tenham que ser produzidas novas formas de vida que lhe dêem consistência existencial, e que outras sejam varridas de cena, junto com setores inteiros da economia que se desativam. A associação destes dois fatores, entre outros, reduz o prazo de validade das formas em uso, as quais tornam-se obsoletas antes mesmo que se tenha tido tempo de absorvê-las; além disso, tal associação impõe a obrigação de reformatar-se instantaneamete, antes mesmo que se tenha tido tempo de inteirar-se das sensações que a mudança suscita e muito mais rapidamente que o tempo de uma germinação que esse processo implica para que uma nova forma ganhe corpo. Vive-se em estado de vertigem permanente, à beira da exasperação, o que faz com que as forças de invenção e de resistência sejam muito freqüentemente convocadas.


Voltemos para a idéia de Negri e cia. segundo a qual é principalmente da força de invenção que o capitalismo contemporâneo extrai mais-valia e de que esta força vem sendo por ele mobilizada por todo o campo social. Esse insight nos permite constatar que o capital libertou a força de criação da arte como esfera autônoma onde ela se encontrava confinada, exatamente nas mesmas décadas de 70 e 80: a criação hoje não só deixou de ser maldita mas passou a ser intensificada e paparicada como nunca. Ter o nome associado à arte agrega valor de glamour, o que por sua vez aumenta o poder de sedução e de reconhecimento, visando geralmente o aumento do poder de competitividade no mercado.


Ora, o fato desta intensificação e disseminação do exercício da força de criação no contemporâneo se acompanhar de uma dissociação das sensações que o convocam tem graves conseqüências. É que se as sensações são a presença viva no corpo das forças da alteridade, presença que gera mundos larvares que pedem passagem e que acabam levando necessariamente à falência as formas de existência vigentes, o acesso ao corpo vibrátil é indispensável para que se invente formas através das quais tais mundos larvares ganhem corpo e a vida possa continuar fluindo, formas por cuja afirmação a potência de resistência deverá lutar.


Do lado da potência de invenção, é o acesso ao corpo vibrátil que orienta seu exercício de modo a dar consistência existencial ao processo de emancipação que se faz necessário, se entendermos a arte como o exercício de rastreamento das mutações que se operam nas sensações, as quais indicam o que está pedindo um novo sentido, novos recortes e novas regras, orientando assim o ato de sua criação. Do lado da potência de resistência, é também esse acesso o que situa por quais configurações de mundo se deve lutar, se entendermos a política como o exercício da polêmica acerca das configurações da vida em sociedade, seus recortes e as regras que as sustentam. A obstrução do acesso às sensações, como é o caso em nossa atualidade, interrompe o processo, provoca um divórcio entre as potências de criação e de resistência, e as separa do objetivo para o qual elas são convocadas: a perseverança da vida. Surdas ao que pede a vida para continuar a se expandir, o exercício destas potências, quando mobilizado, trava seu fluxo, e no limite pode até colocá-la em risco.


O destino da potência de criação, dissociada do acesso ao corpo vibrátil e separada do afeto político é formar um manancial de força de trabalho de invenção “livre” – liberdade, aqui, consistindo em estar inteiramente disponível para ser instrumentalizada pelo mercado, ou seja para ser cafetinada pelo capital capital, e corresponde a um estado de impotência para apropriar-se desta força e investi-la. É precisamente esta força de invenção ao mesmo tempo intensificada e dissociada que o capitalismo contemporâneo descobriu como um manancial inteiramente virgem para explorar e dele extrair mais valia, fenômeno que Toni Negri e cia. detectaram e circunscreveram.


Quanto ao destino da potência de resistência, sua clivagem do corpo vibrátil impede de reconhecer aquilo que a convoca: a crueldade inerente à vida, sua condição trágica, que se impõe como necessidade em função do paradoxo entre aqueles dois modos de apreensão sensível do mundo. Quando a disparidade atinge um limiar, a crueldade tem que se exercer para que se desfaça um mundo que já não tem sentido e possa completar-se o processo de germinação de um novo mundo – a crueldade é precisamente este caráter inexorável do movimento vital, sua violência “positiva ou ativa”. Ora, uma subjetividade cujo corpo vibrátil está em coma, não tem como reconhecer a crueldade da vida como causa de seu assombro: estando restrita ao conhecimento do mundo como forma e, portanto, ao mapa da forma vigente com suas figuras e seus conflitos de interesse, para encontrar uma explicação e aliviar-se, a subjetividade projeta no outro a causa de seu assombro, atribuindo-lhe a autoria da crueldade. O assombro se transforma em medo e desamparo. Mobilizada pela experiência da crueldade, mas passada pelo crivo desta interpretação, a força de resistência ao invés se dirigir-se à afirmação e defesa das novas formas de vida que se fazem necessárias, será dirigida “contra” o outro. Tal força é então capturada pela matriz dialética, como luta entre opostos, subjetividades reificadas em figuras identitárias, cuja luta gira exclusivamente em torno do poder, cada um reivindicando para si o lugar do bem e fixando o outro no lugar do mal, contra o qual deverá ser investida a força de resistência. Neste tipo de exercício da política, que se transforma em luta entre o bem e o mal, seja qual for o lado vencedor, em termos de política de desejo, o resultado é um só. Quem vence é a força do conservadorismo, fruto do temor à crueldade: resistência negativa que denega o germe de diferença que pede passagem e breca a criação de uma forma de vida na qual o germe ganhe corpo e se atualize. Portanto, quem perde é a vida cujo fluxo fica travado, quando ela não é concreta e irreversivelmente interrompida pelo extermínio, em nome de uma configuração de mundo tomada como a verdade, configuração que, por supô-la absoluta, se quer conservar. É o mundo do consenso: mundo fusional sem alteridade, sem resistência, sem criação – em suma, sem vida. Assim completa-se a estratégia de denegação da crueldade: a produção imaginária de um mundo idealizado, sem paradoxo – e, portanto, sem turbulência, sem sofrimento e sem o esforço conjugado de criação e de resistência –, alucinação que se projeta no futuro. É esta a política de desejo que está na base dos fundamentalismos de toda espécie, sejam eles de direita, de esquerda ou de centro.


Esta lógica da resistência reativa é hegemônica em nossa contemporaneidade: a violência tende a ser sempre reduzida à sua versão negativa, concepção amplamente propagada pela capitalismo mundial integrado que dela se utiliza para cultivar o medo e o desamparo e, com isso, alimentar o modo de subjetivação que lhe dá consistência existencial. A mídia é o principal veículo desta propagação, cujas estratégias tem se tornado cada vez mais sutis, mais hábeis e mais eficientes. No Brasil, esta micropolítica do capitalismo instalou-se com a ditadura militar e de lá para cá só vem se refinando e intensificando.


Como liberar a vida destas dinâmicas que a sufocam? Se as dinâmicas em questão referem-se ao funcionamento do desejo e correspondem a políticas de subjetivação não há como desmontá-las se não se interfere nesse âmbito. Aqui, entra em jogo o exercício da clínica, de um ponto de vista em que suas fronteiras com a arte e a política tornam-se indiscerníveis, ou seja as potências de curar, criar e resistir tornam-se indissociáveis. Que problemas na subjetividade estariam colocando as duas nefastas dissociações que se operam no mundo contemporâneo: entre a força de resistência e a força de criação, de um lado, e de outro, entre estas forças e as sensações que as convocam, dissociações resultantes do estado de coma em que se encontra o corpo vibrátil? Em outras palavras, que “sintomas” estariam se configurando como soluções de compromisso para estes problemas e que, enquanto tal, os velam e ao mesmo tempo os revelam?


Antes de responder a esta pergunta, cabe assinalar que estamos nos referindo a sintomas de uma civilização, a do capitalismo mundial integrado, com ramificações por toda a trama da existência humana, da política à economia passando pela cultura e, evidentemente, pelos modos de subjetivação. Este é um ponto de vista distinto daquele construído pela psiquiatria e amplamente estimulado pela indústria farmacológica, que consiste em reduzir tais sintomas a quadros nosológicos de uma psicopatologia ou de uma neuropatologia, perdendo de vista tanto a complexa trama civilizatória em que eles se inserem, quanto a complexa trama de cada subjetividade em que se apresentam. Isto posto, rastreemos os sintomas mais recorrentes: a síndrome do pânico, as depressões inespecíficas e a exaustão sem fim, o tão divulgado “stress” cuja manifestação mais extrema é curiosamente chamada de “burn out”. Eu diria que cada um deles corresponde à experiência traumática de uma das etapas do processo que se desencadeia na subjetividade motivado por aquela dupla dissociação, própria da política de subjetivação dominante no contemporâneo.


A “síndrome do pânico” seria a experiência traumática do assombro perante a crueldade da vida que destrói formas de existir, crueldade que na contemporaneidade se faz presente numa freqüência incomparável com qualquer outro período da história do Ocidente ou qualquer outra civilização. O que desencadearia esta síndrome é o fato de que, clivado do corpo vibrátil, o indivíduo vive a destruição recorrente de modos de existência como ameaça de destruição de si mesmo, a tal ponto que parece atingir o próprio organismo. O fulano em pânico imagina que seu coração está prestes a explodir, ou sua respiração prestes a parar, etc. – uma ameaça imaginária produzida pelo medo e desamparo, os quais neste caso atingem um tal grau de intensidade, que instalam a subjetividade num verdadeiro estado de pânico, ultrapassando o limite do tolerável e tornando-se traumáticos. Para não sucumbir, a estratégia mais comumente adotada é feita da associação entre duas atitudes. A primeira consiste em não sair de casa para não expor-se aos outros, forças que invadem a subjetividade e ameaçam destruí-la; não mover-se para se manter congelado no lugar até então ocupado e manter congelado o próprio espaço tal como formatado no presente. A segunda atitude, complementar à primeira, consiste em escolher um determinado outro, a quem se atribui a qualidade de “bom”, para fazer dele uma espécie de extensão simbiótica de si mesmo, hospedeiro que funciona como pele/escudo protetor que garante o fechamento do corpo a todos os demais outros, potencialmente “maus”, e a permanência intacta da forma de existência atual. Parasitar este outro escolhido é a garantia imaginária de amparo, sem a qual a ameaça é tão aterrorizadora, e tamanho é o desamparo que a ameaça provoca, que tem-se a impressão de que se está prestes a morrer .


Já as “depressões inespecíficas”, distintas por exemplo da melancolia, pois não se acompanham de auto-desqualificação, seriam desencadeadas pela experiência traumática do esvaziamento de sentido. A subjetividade, neste caso, teria resistido ao assombro que o esvaziamento de sentido provoca, evitando portanto transformá-lo em medo e desamparo e projetar sua causa no outro, mas ela teria ficado no vazio. Ficar no vazio produz descrença no mundo, o que impede o desejo de encantar-se e portanto de conectar-se. Com isso, há um achatamento do futuro, já que ele não pode ser imaginado. A subjetividade atola no tédio, suspensa nesta espécie de limbo cinzento de uma vida que perdeu seu relevo e sua graça.


Por fim, a terceira sintomatologia, a exaustão sem fim (o tal “stress”), seria própria de uma subjetividade que não sucumbiu à vertigem diante da crueldade da vida, nem ao esvaziamento de sentido, e mantém em atividade as forças de criação e resistência que esta situação mobiliza. No entanto, por estarem dissociadas do corpo vibrátil e entre si, estas forças teriam perdido o ritmo. É que o ritmo é dado pelo processo de atualização de novos blocos de sensações em novas formas de existência, processo que uma vez realizado é seguido de repouso, ao mesmo tempo em que novos blocos de sensações já estão se formando, até que uma nova crise se instale e volte a desencadear um processo de atualização, e assim sucessivamente, como as noites sucedem os dias. Com o corpo vibrátil em coma que implica aquela dupla dissociação, as forças passam a funcionar sem ritmo, frenética e ilimitadamente, numa espécie de agitação estéril movida à ansiedade, que muitas vezes acelera-se mais ainda através de sua turbinagem com aditivos químicos – sejam eles produzidos e comercializados legalmente pela indústria farmacológica ou ilegalmente pelo narcotráfico. Subjetividades com esse sintoma são as favoritas para a cafetinagem do capital. São como as galinhas cultivadas em granjas high tech em que se elimina, pela luz, a sucessão dos dias e das noites, de forma que, desparametradas, elas produzam ovos ininterruptamente... Até que elas “burn out”, se queimem num curto-circuito irreversível de sua energia vital.


Diante disso tudo, como definir hoje o exercício da potência clínica? O que pode a clínica contra este estado de coma do corpo vibrátil, que promove interrupções da vida enquanto força de criação e de resistência, e que tanto nos sufoca?


Aqui caberia evocar Guattari novamente. Curiosamente, para pensar a problemática que se coloca para a clínica hoje, começamos e terminamos com Guattari, talvez porque ele tenha sido um dos pensadores que melhor prepararam o terreno para estarmos nos colocando este tipo de indagação; dos que mais corajosamente se debruçaram sobre o modo de subjetivação dominante no capitalismo contemporâneo e suas implicações para a clínica. Em algum momento há vinte e um anos atrás, momento registrado no livro que fizemos em parceria, Guattari sugeriu o seguinte: “Uma análise deveria dar simplesmente um ‘plus’ de virtuosidade, como um pianista, para certas dificuldades. Isto é, mais disponibilidade, mais humor, mais abertura para pular de uma escala de referência para outra.”


Fica a pergunta: o que visa a prática clínica, seja ela de que tipo for, não seria apenas a aquisição deste “plus” de virtuosidade? Mas de que virtuosidade estamos falando? Virtuosidade para que? Uma resposta possível é a de que se trata de uma virtuosidade para “abrir o corpo”2 para as forças da alteridade do mundo um pouco mais ou mais freqüentemente, não esquecendo da prudência que deve nos orientar na modulação desta abertura. Isto implica em reconhecer um pouco mais a crueldade da vida e se assustar um pouco menos com o assombro e a vertigem em que a vida nos lança a cada vez que ela põe um mundo a perder. Lembrar, pelo menos de vez em quando, que a vertigem é a preciosa pulsação do enigma da vida em nosso corpo, enigma de sua condição trágica, o caráter implacável do movimento vital, sua violência positiva ou ativa. A presença física deste enigma é o que nos leva a exercer a vontade de invenção para construir outros mundos, vontade que só vinga se acompanhada da vontade de resistência para lutar pela inscrição destes outros mundos na tessitura do presente, obra incansável que se faz a cada dia. Só um pouco mais, um “plus” que já é tanto...



1 “Capitalismo mundial integrado” (CMI) é o nome que, já no final dos anos 1970, Félix Guattari propôs para designar o capitalismo contemporâneo como alternativa à “globalização”, termo, segundo o autor, por demais genérico e que vela o sentido fundamentalmente econômico, e mais precisamente capitalista e neo-liberal do fenômeno da mundialização em sua atualidade. Nas palavras de Guattari: “O capitalismo é mundial e integrado porque potencialmente colonizou o conjunto do planeta, porque atualmente vive em simbiose com países que historicamente pareciam ter escapado dele (os países do bloco soviético, a China) e porque tende a fazer com que nenhuma atividade humana, nenhum setor de produção fique de fora de seu controle”. (Guattari, Félix, “O Capitalismo Mundial Integrado e a Revolução Molecular”, in Revolução Molecular. Pulsações políticas do desejo, org. Rolnik, Suely. Brasiliense: São Paulo, 1981).

2 Título da conferência proferida por José Gil no mesmo simpósio Corpo, Arte e Clínica, UFRGS, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional – Mestrado. Porto Alegre, 09/04/03.



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