18 novembro, 2008

Ritual de aspersão, por Fortaleza da alma.




Entrou e viu as flores secas cobertas pela poeira daqueles dias secos, quentes e vazios. Artificiais.
O silêncio infiltrava-se naquela atmosfera dourada e azul dos dias de sol, por entre a sombra das árvores e as brechas em cada espaço com luz.

Observou que ali estiveram mas o vento interveio e logo levou para longe o único vaso das flores que ainda tinham vida original, soterradas em um pedaço de terra, agarrando-se à seiva como quem agarra a última esperança.

Depôs suas poucas coisas rente ao chão e fechando os olhos, reviu as cenas vividas ali, junto àquela que lhe doava o sorriso gratuito e mais puro e terno de sua vida.

Tomou as flores secas por entre as mãos, arrancou-as...e levou-as até a água que jorrava. Lavou cuidadosamente cada uma delas e retirando a densa camada de poeira com as finas gotas e desajeitados dedos, deixava vir à tona tudo que tinha evitado reencontrar. O cheiro, os cantos, o lugar, a vida que passara ali. Juntou àgua ao pequeno vaso distante e o preencheu com o pedaço de terra que dele tinha sido separado, unindo-o finalmente à esperança. Balançou intensamente cada uma das flores: não mais importavam se eram artificais ou não, perduravam e ali estavam, em sua mão, pedindo cuidado, negando o abandono.
Era uma voz conhecida, que ouvira vinda de seu próprio ser, a quem por tanto tempo negligenciara, deixando-o criar raízes perante tanto abandono, pensando que cuidando de outros seres poderia alimentar-se. Mas não se alimenta nada e nem a ninguém quando se sente a própria fome escavar-lhe as entranhas. E com aqueles simples gesto, balançando ao vento aqueles ramos, sentia como se mandasse para longe tudo que lhe oprimia o espírito. Deixando a água voar, chegar ao seu destino e secar, reconciliara-se com seu passado. Reconciliara-se consigo mesma e, disposta a não mais perder-se de si deixara aquele lugar, surpreendida de que ali existissem restos mortais quando tanta vida jorrava dela.

Não muito distante dali um garoto soltava pipa. E ela dizia então a si mesma que melhor imagem não haveria para selar aquele compromisso. Ela compreendia. Estava livre, enfim.

Este belíssimo texto está originalmente no blog Fortaleza da alma.
http://fortalezadaalma.blogspot.com/

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