A FAMÍLIA E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
NEVES, Anamaria Silva
ROMANELLI, Geraldo
Resumo
O presente artigo pretende tecer uma reflexão teórica acerca da temática família, especificamente a família que apresenta a violência doméstica, com a violência física de pais e mães contra filhos. Apoiamo-nos na leitura psicodinâmica e em conceitos da
Antropologia para a compreensão da amplitude que os conceitos família e violência adquirem na análise das organizações familiares. Ao recorrer a áreas distintas do conhecimento, construímos um saber dinâmico, enriquecedor e que amplia o campo de abordagem do objeto de estudo. A interdisciplinaridade edifica um arranjo teórico questionador, complementar e complexo que faz do pesquisador um elo fundamental entre a teoria, a crítica e a análise da pesquisa.
Palavras-chave: interdisciplinaridade; família; violência doméstica.
As histórias de Graciliano Ramos (2000), escritas no livro de memórias Infância, versam sobre as descobertas do seu mundo infantil. O imaginário e as fantasias imperam sobre a realidade hostil de um mundo misterioso e excludente. As dolorosas vivências do autor revelam não somente o espaço individual e subjetivo da infância: submergimos nas profundezas da organização familiar representada com maestria pelo autor ao caracterizar os personagens, as cenas e os afetos circundantes. Partimos da escrita refinada e essencialmente humana de Graciliano para caminharmos pelo mundo científico que teoriza a família e suas estratégias de organização.
O literário abre-alas das versões de sofrimento e de angústia da infância serve como inspiração para as histórias ouvidas e interpretadas neste estudo. Histórias singulares mas que refletem fenômenos da subjetividade, comuns ao desenvolvimento humano e à organização familiar. A família é o cenário das versões controversas sobre amor e agressão, confiança e abuso, respeito e invasão, legitimadas em histórias de vida protagonizadas por personagens oriundos das camadas populares da sociedade ao longo das gerações. As histórias das famílias apelam para as reminiscências das dores sentidas, e as lembranças evocadas não se limitam às interlocuções do sujeito consigo mesmo, mas incluem as versões compostas pelas gerações que o antecederam.
A Antropologia, que propõe “o estudo do homem inteiro”, leva em consideração as diferentes dimensões do ser humano que vive em sociedade, é “a ciência do homem por excelência e envolve a todos nós” (Laplantine, 1988, p.33).
A reflexão do homem sobre o homem, a natureza que o cerca e a sociedade da qual ele faz parte são antigas, mas apenas no final do século XVIII, segundo Laplantine (1988), um saber científico começa a despontar, fundando a “ciência do homem”, a Antropologia.
O homem passa a ser objeto de conhecimento, e o “espírito científico” antes aplicado pela Física ou pela Biologia passa a ser aplicado ao próprio homem. O homem, sujeito que se apropria do conhecimento, passa a ser objeto de estudo da ciência.
O autor distingue cinco áreas principais da Antropologia, que, apesar de distintas, mantêm estreita relação entre si: a Antropologia Biológica, a Antropologia Pré-histórica, a Antropologia Lingüística, a Antropologia Social e Cultural (ou Etnologia) e a Antropologia
Psicológica. Essa última com ênfase na compreensão dos comportamentos conscientes e inconscientes do ser humano com vistas à apreensão da totalidade do sujeito, confirmando que a dimensão psicológica permanece indissociável do campo de estudo da Antropologia.
A Psicanálise, com Freud, descobre o inconsciente como expressão manifesta do pathos, e assim ela nasce e se desenvolve a partir da investigação do psiquismo e inerente à noção de Psicopatologia. O fenômeno do sofrimento humano, sob a perspectiva do sofrimento psíquico, alicerça-se na Psicopatologia Fundamental, termo criado há mais de vinte anos pelo psicanalista francês Pierre Fédida. Em contraste com a Psicopatologia Geral, a Psicopatologia Fundamental se interessa pelo sofrimento singular e pela forma como ele se apresenta constituindo um sujeito – assujeitado pelo pathos. Pathos, que além de significar sofrimento, origina ainda as palavras paixão e passividade. O pathos passa pelo corpo mas vem de fora, fazendo-o padecer (Berlinck, 2000).
O desafio do estudo interdisciplinar que ora se apresenta inclui a compreensão dos aspectos sociais e a produção de subjetividade dos sujeitos, das famílias e das diferentes gerações das famílias que convivem com a violência doméstica praticada por pais e mães contra seus filhos. Séve (1989, p.448) relembra um trecho de Marx, extraído de Correspondance: “a história social dos homens nunca é senão a história de seu desenvolvimento individual”. Segundo Séve, as inquietações que movem a ciência, a pesquisa e os confrontos teóricos têm aproximado a Psicanálise dos preceitos marxistas e, nesse sentido, acoplamos ao discurso marxista a fala freudiana de 1921, do texto Psicologia de Grupo e a Análise do Ego, que afirma: “temos que concluir que a psicologia dos grupos é a mais antiga psicologia humana” (Freud, 1976, p.156). Marx que pensa o indivíduo e Freud que assimila o grupo. Pretensões visíveis e anseios inerentes ao entendimento clínico e comunitário permitem transparecer o quanto a interdisciplinaridade é fonte de pesquisa inerente ao conhecimento produzido nas ciências humanas.
Família: conceitos e arranjos
Muitas vezes pressenti, em minhas insônias do mundo inteiro, que eu também arrasto a condenação daquela casa mítica num mundo feliz onde morríamos todas as noites. G.G. Márquez. Viver para contar.
Na autobiografia do escritor colombiano Gabriel García Márquez, de 75 anos, a casa referida é aquela na qual ele passou a sua infância com a avó, as tias religiosas e os homens contadores de histórias de guerra, casa onde cada santo tinha um quarto e cada quarto tinha um morto. Os cenários que acolhem os diferentes modelos familiares e que arrastam infinitas histórias e dramas na vida dos sujeitos de toda a humanidade refletem as características oscilantes que a família engloba.
A exemplo do que vinha ocorrendo na década de 1970, as décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pela redução relativa do modelo tradicional de família nuclear (constituída por marido, esposa e filhos) e pelo aumento proporcional do número de famílias chefiadas por mulheres e por unidades domésticas unipessoais.
A evolução dos diferentes tipos de unidades domésticas mostra a significativa redução do tamanho das famílias, com número médio menor de pessoas e de filhos (IBGE, 2001).
As relações atualmente conhecidas que unem rede de parentesco, unidade doméstica/residencial e grupo conjugal tiveram estruturas diferenciadas nas diversas sociedades e em momentos históricos específicos (Bruschini, 1997), confirmando que a mutabilidade e a não-naturalidade são especificidades do estudo da família.
A família é uma unidade dinâmica, um grupo social, um espaço de convivência fundamental ao desenvolvimento dos seus membros; contudo possui características e funções próprias, que são historicamente questionadas e redefinidas. A família não comporta uma definição unívoca, primordialmente centrada em parâmetros excludentes. É justamente o saber produzido por diversas disciplinas que auxilia a pensar o conceito e o significado contextualizado do substantivo família.
A família é um grupo primordial no âmbito do desenvolvimento de sujeitos psíquicos singulares, bem como na formação ideológica dos cidadãos que a compõem. Ideologia que, de acordo com Guareschi (1999), tanto serve para sustentar relações justas e éticas como serve para alimentar relações assimétricas, de dominação.
A amplitude do conceito de família nos impele à busca de recortes que delimitem os horizontes de discussão. A definição de Osório (1996, p.16) clareia e, concomitantemente, apresenta elementos introdutórios sobre as variáveis que envolvem a conceituação: Família é a unidade grupal onde se desenvolvem três tipos de relações pessoais-aliança (casal), filiação (pais/filhos) e consangüinidade (irmãos) - e que, a partir dos objetivos genéricos de preservar a espécie, nutrir e proteger a descendência e fornecer-lhe condições para a aquisição de suas identidades pessoais, desenvolveu através dos tempos funções diversificadas de transmissão de valores éticos, estéticos, religiosos e culturais.
A origem etimológica da palavra família denota conotações instigantes quanto às suas derivações sociais. Família, do vocábulo latino famulus, significa servo ou escravo, do que se entende que primitivamente a família era considerada um conjunto de servos ou criados de uma pessoa. Dessa forma, as origens do termo traduzem as origens da tipologia relacional estabelecida, ou, como Osório (1996) repara, a raiz etimológica refere-se à natureza possessiva dos vínculos familiares entre os povos primitivos. O autor considera que as concepções de poder e posse estão vinculadas às origens da família e à sua constituição grupal.
Lasch (1991), em seu livro Refúgio num mundo sem coração, tenta recuperar os percalços da família no último século. O autor pontua que, com a selvageria crescente do mundo dos negócios e da política, o homem procura refúgio na família; entretanto ela aparece gradativamente mais frágil e incapaz de acolher esse sujeito carente. Afirma que a família contemporânea é produto da ação humana e do controle social e não de forças sociais abstratas. Lasch fala sobre a sociedade moderna e o controle social antes relegado às famílias ou aos indivíduos, afirmando que o Estado controla o corpo, o espírito e a vida privada dos sujeitos. Se alguns críticos apontaram Lasch como um admirador da família burguesa ou um nostálgico defensor da família patriarcal, entendemos que o autor imprime o diálogo crítico com a Antropologia, a Psicanálise e a Sociologia e, sem recorrer a versões ortodoxas sobre as relações familiares, promove um debate instigante, apontando a família como agente de socialização que reproduz padrões culturais no indivíduo.
Bourdieu (1996) apresenta a família como principal sujeito das estratégias de reprodução, não apenas biológica, mas reprodução das relações sociais. O autor diz que a família é produto do trabalho de instituição que tem como objetivo instituir, de forma adequada e duradoura, em seus membros, sentimentos que assegurem a integração, condição de perpetuar a unidade familiar. A família precisa se afirmar como corpo que luta para existir mediante relações de força econômica e simbólica.
Se Lasch resgata aspectos catastróficos e pouco otimistas da família, com foco na família norte-americana, Bourdieu especifica ainda características de existência e estruturação da família atual. Romanelli (2003) retoma Bourdieu e acrescenta que na análise de estratégias é importante criar a dimensão da temporalidade, já que os integrantes da família percorrem as trajetórias de vida de forma diversa dos demais. A partir daí, a análise do ciclo de vida familiar permite acompanhar o movimento dos membros da família e as posições sociais que são ocupadas nesse processo.
A discussão aponta para a família como uma construção social, um grupo ativo na formação e transformação dos padrões culturais e afetivos. Biasoli-Alves e Simionato-Tozo (1998) ressaltam que a família, seja como conceito, seja como grupo primário, apresenta alterações ao longo dos diferentes momentos históricos e nas diversas culturas em que está inserida. A família, ao ser transformada, assimila, modifica e devolve à sociedade os elementos processados em seu interior que, por sua vez, os modifica. A diversidade dos arranjos familiares descritos nas diferentes culturas e em distintos períodos nos permite observar a importância da família na orientação dos filhos, em particular.
Na busca por definições de família, alguns autores recorrem ainda aos conteúdos míticos como referência primária. Osório (1996), focalizando a antropogênese, afirma que as mitologias, ao criar o homem, situam-no em condição relacional no seio familiar e, nesse sentido, resgata a versão mitológica greco-romana da criação do universo e dos seus habitantes.
A versão bíblica, com Eva e Adão e a expulsão do paraíso, representa, simbolicamente, o repúdio do pai aos filhos. Os irmãos Caim e Abel espelham a rivalidade entre os irmãos. O mito de Édipo, que envolve a punição, a culpa, o desejo e o emaranhado afetivo, amplia a compreensão do ciclo afetivo da vida familiar. As propriedades da família conferem-lhe, mitologicamente, a condição de reduto do nascimento do relacionamento humano. Relação que, de acordo com Guareschi (1999), é definida pela existência das pessoas em relação a outras, ordenação que se faz intrínseca, ou, em latim, ordo ad aliquid. A família, originária das relações humanas, é entendida como grupo primordial.
Familiar, familiarizado, em família, da família e de família são conotações dispersas de um lugar simbolicamente definido, um reduto onde se encenam romances trágicos, dramáticos, aventureiros, felizes e contraditórios, com personagens amados e odiados, simultaneamente, no reduto do composto familiar. Se a família se constitui uma representação, é também um grupo de convivência que se organiza de acordo com diferentes arranjos e se apresenta em distintas versões. Faz-se mister a evocação dos cenários que não apenas a historicizam, mas que a compõem: a casa, a domesticidade, a intimidade e a produção da violência doméstica nessa conjunção.
Violência doméstica: o desafio da compreensão.
Pensar a violência implica considerar as bases e o desenvolvimento histórico que determinam as formas que ela assume ao longo da organização das sociedades. Raggio (1992), psicanalista, propõe “concentrar nossa atenção no bosque antes que nas folhas” (p.26). O autor explica que o ser humano necessita da agressividade para viver, mas a violência institucional e sistemática é um fenômeno que nasce com as sociedades de classe e penetra no processo de exploração do homem pelo homem por meio de mecanismos de repressão. Raggio argumenta que a ordem capitalista reproduz a violência assim como reproduz o capital e, para isso, reproduz sujeitos ideologicamente violentos que, por fim, produzem e consomem a violência.
As raízes histórico-sociais da violência, o bosque, e o inconsciente individual, as folhas, formado por fantasias edípicas, desejos e alicerçado por um superego de características variantes são processos inerentes ao sujeito social. A análise do sujeito e a análise da família consistem em inserirmos a discussão do homem como um sujeito em que a história e a violência imprimiram suas marcas.
A prerrogativa de que o tema violência doméstica está relacionado à violência geral que impera na nossa sociedade foi um dos eixos principais na determinação da condução teórica a ser seguida. A pesquisa bibliográfica demonstrou como a questão da violência se faz presente nas variadas áreas do conhecimento - História, Sociologia, Antropologia, Economia, Psicologia - e, via de regra, sustenta propostas plausíveis que norteiam as discussões e embasam definições e reflexões sobre a especificidade da violência doméstica.
Enfatizemos a agressão. A palavra agreddi, de origem latina, significa abordar, avançar e, nesse sentido, o oposto da agressão não é paz ou amizade, mas o isolamento ou inexistência de qualquer tipo de contato. Segundo May (1972), quando a capacidade de se colocar no mundo diante do outro, de reivindicar posições, direitos – a exemplo do que ocorre com as minorias – e todas as formas de expressão se tornam inoperantes, a agressão emerge como forma de reação. O autor postula que há dois tipos básicos de agressão: a destrutiva e a construtiva. Ao explanar acerca da segunda, retoma as histórias de homens públicos para enfocar formas de direcionar aspectos agressivos do ser em prol de causas nobres como o abolicionismo. É importante frisar que a agressão construtiva inclui o confronto com o outro sem causar-lhe dano. Anthony Storr, citado por May (1972), compara o ato de lutar e o ato de fazer amor nos humanos e pontua que as brigas entre amantes terminam, com freqüência, em relações sexuais, com uma estranha relação entre combatente e amante como componentes de uma mesma fábula. Para May é fundamental reiterar aspectos positivos da agressão e considerar que os aspectos negativos são expostos em demasia por causa da culpa e da ansiedade incrustadas nos ataques movidos contra o outro. O autor conclui que as atividades humanas mesclam formas positivas e negativas de agressão.
Quando a agressão se torna ineficaz, impera a violência, como explosão primária predominantemente física. A violência seria um caminho de descarga tensional na busca por um senso de significação do sujeito.
Segundo Gerald Chrzanowski, citado por May (1972), a agressão está associada a um objeto ao qual é direcionada a fúria, por assim dizer. Na violência, a relação com o objeto é danificada.
A maneira como o sujeito é capaz de interpretar o mundo à sua volta parece decisiva na disposição para rivalizar com o outro. A violência seria, assim, ... uma organização dos poderes da pessoa a fim de provar o seu próprio poder, a fim de estabelecer o valor do eu ... mas ao unir os diferentes elementos do eu, omite a racionalidade (May, 1972, p.153).
O autor segue dizendo que violência e comunicação são excludentes e que quando uma pessoa tem um acesso de cólera a capacidade de fala é bloqueada e a energia é transferida para os músculos, no preparo primitivo para o ataque e a luta. Significa que foram desfeitas e desorganizadas as possibilidades de comunicação e entram em cena a agressão e a violência. A linguagem, quando utilizada para despertar emoções de origem agressiva das pessoas, pode ser tão violenta quanto a força física, de forma que a incapacidade de comunicar-se denuncia a deterioração dos vínculos entre as pessoas.
O tema dos maus tratos contra crianças e adolescentes, como uma questão social, é recente e atravessou diferentes níveis no último século. Apesar do progresso gradativo no estudo da violência ou maus tratos contra a criança, algumas questões permanecem. Explosões emocionais contra os que estão mais próximos e mais indefesos definem a síndrome do pequeno poder, em que o mais forte exerce o seu pequeno poder sobre um mais fraco (Guerra, 1998). A autora descreve como a violência doméstica, como violência intersubjetiva, consiste na violência interpessoal, com abuso do poder disciplinador, ocasionando um processo de vitimização e imposição de maus tratos.
Na cena da violência doméstica existem três formas de desempenhar o papel no enredo familiar: como vítima, ator e/ou testemunha (Koller, 2000). O autor da infração, o sujeito que transgride não somente as normas sociais mas invade a intimidade e a organização afetiva e corpórea do outro, utiliza-se da persuasão e do controle para manter o outro na condição de dominado e subjugado. O desafio é que a violência doméstica nem sempre é claramente identificável e a vítima, inerte, assujeitada, sofre mas tem dificuldade de encontrar alternativas de ajuda, seja pela ameaça sofrida, seja pela ausência de elementos norteadores de auxílio, como a escola, a creche e os vizinhos, no caso de crianças vitimizadas.
Belsky e Vondra (1989), em estudos sobre a etiologia dos maus tratos praticados por pais e mães contra as suas crianças, propõem um modelo de estudo sobre os determinantes parentais, ou seja, eles criticam os modelos psiquiátricos e aqueles exclusivamente fundados em explicações do ambiente e sugerem um modelo geral dos determinantes do funcionamento parental. Sob essa perspectiva são consideradas as características individuais dos pais, das mães e dos filhos (personalidade parental e características das crianças), características sociais (o contexto que envolve as relações conjugais, a rede social, o trabalho), e, por fim, fatores circunstanciais (a pobreza, descontentamento com o emprego, ignorância sobre o desenvolvimento infantil). Cada elemento citado deve ser analisado com igualdade de prevalência, o que significa que para cada caso devem ser avaliados os elementos e as características que apresentam na família estudada.
Bringiotti (2000) postula que as definições sobre maus tratos infantis devem englobar tanto aspectos teóricos, como uma definição operacional, com vistas a facilitar a identificação do fenômeno. A autora seleciona a seguinte definição de maus tratos infantis:
Qualquer dano físico ou psicológico não acidental contra uma criança menor de dezesseis ou dezoito anos - segundo o regime de cada país – praticado por seus pais ou cuidadores e que ocorre como resultado de ações físicas, sexuais ou emocionais de omissão ou comissão e que ameaçam o desenvolvimento normal tanto físico quanto psicológico da criança (Bringiotti, 2000 apud Fuster e Ochoa, 1993, p.35, tradução nossa).
Guerra (1998) diferencia quatro tipos de violência doméstica:
a) Violência sexual: envolve atos hetero ou homossexuais entre o adulto e uma criança ou adolescente e tem por finalidade estimular sexualmente essa criança ou adolescente para obter estimulação sexual para si ou para outrem;
b) Violência psicológica: ocorre nas ocasiões em que o adulto ameaça e deprecia a criança provocando-lhe sofrimento mental;
c) Negligência: representa a falha ou omissão dos pais ou responsáveis em prover as satisfações físicas e emocionais dos filhos, desde que a falha não seja mero resultado das condições de vida que estão fora do seu domínio;
d) Violência física: a autora realiza um apanhado teórico e, em âmbito nacional, oferece um espectro que inclui nomenclaturas como síndrome, violência, abuso-vitimização física.
A afirmação de que o cenário da violência doméstica é um desalento à crença na família que, em quatro paredes, se ama e se respeita não pretende excluir o afeto amoroso e incondicional. A intenção é ainda incluir uma outra realidade vigente nas famílias estudadas: a coexistência de investimento afetivo e a ruptura de vínculos ao longo das gerações.
A violência doméstica aparece em todas as camadas sociais em diferentes momentos históricos, mas nas camadas populares ela se torna pública em virtude da denúncia e do decorrente acompanhamento ou intervenção dos órgãos públicos. As camadas altas da sociedade mantêm o anonimato e compram a discrição através dos atendimentos particulares, quando o fazem.
O tema violência doméstica é contundente em dois âmbitos principais, desde sua definição, em que os limites que vão do tapinha ao espancamento são controversos, até os parâmetros éticos e pedagógicos sobre castigos e punições físicas, que agregam pesquisadores de diferentes influências. Quiçá existam outras formas de se pensar a violência física que incluam ainda o entendimento do uso do corpo, esse corpo violento que usurpa o lugar do outro mas que também tenta se aproximar do outro, marcar o outro e não apenas machucá-lo.
A interdisciplinaridade é buscada no sentido de revisitar as abrangências que delineiam a violência física sem a frenética compulsão da categorização do tipo de violência ou do atendimento à denúncia registrada nos prontuários das instituições de atenção à infância. Fica premente a reflexão sobre as estratégias familiares na educação dos filhos, estratégias que incluem há séculos a punição física. O olhar se ajusta sobre a família agressora denunciada que recebe atenção e análise sem rotulações reducionistas.
A interdisciplinaridade nos apresenta uma nova relação com o conhecimento e a construção coletiva do saber (Fazenda, 1998). Por disciplina, entende-se um ramo do saber, do conhecimento, que também está imerso numa noção de conduta, valores, de relacionamentos. Conforme Etges (1995), a verdadeira interdisciplinaridade possibilita medeia a comunicação entre os cientistas e a partir disso estabelece uma linguagem comum entre diferentes campos. Não há o surgimento de uma nova teoria, mas a compreensão do que o outro faz, bem como a descoberta de novas estratégias tanto na própria ciência como na ciência do outro. A interdisciplinaridade não objetiva unificar as diversas ciências e sim levar à compreensão dessas de uma forma crítica e criativa.
É preciso desconstruir o conceito e pesquisar a família, o que implica questionar fórmulas prontas de análise e descobrir as sutilezas dos discursos dos personagens que compõem os agrupamentos familiares. A atenção e o investimento de pesquisadores sobre as organizações familiares alertam para a prevenção do abandono de crianças, da institucionalização infantil e do rompimento de relações afetivas desgastadas, mas, na maior parte dos episódios verificados, passíveis de serem reconstruídas e trabalhadas.
A Antropologia auxilia a compreender a família não como bem de consumo descartável, reposto por instituições secundárias às quais é delegado o papel da maternagem e educação básica, e sim como instituição primária, incondicionalmente importante na construção de identidades, valores, afetos e cidadania. Marcilio (1997) nos aviva a memória e lembra que o Brasil revela a cruel realidade de ter sido o último país a abandonar as Rodas dos Expostos – dispositivos utilizados no Brasil no período que vai do século XVIII até 1950, com o objetivo caritativo e religioso de abrigar crianças e recém-nascidos abandonados por seus familiares – referendando, na atualidade, a herança impregnada no movimento compulsivo da institucionalização como recurso imediato frente aos desajustes familiares.
Lembremo-nos de autores como Becker (1998), que comenta a tragédia que envolve a ruptura dos vínculos familiares e pondera sobre as alternativas oficiais - como a concessão da guarda, tutela e adoção - como soluções cabíveis mas trágicas na história dos personagens envolvidos. Ou ainda Vicente (1998, p.54), ao postular que a institucionalização infantil tem gerado, historicamente, crianças analfabetas com falta de perspectivas de vida autônoma e independente:
As milhares de famílias sem terra, sem casa, sem trabalho, sem alimento enfrentam situações diárias que ameaçam não só seus corpos - território último do despossuído - mas, simultaneamente, seus vínculos e subjetividades.
Abordar a família, considerando as peculiaridades que o termo pressupõe, significa repensá-la na ordenação do passado, do presente e do futuro, numa perspectiva circular, estrutural, dialeticamente efetivada na relativização de parâmetros ditos universais. Por fim, nosso estudo qualifica a subjetividade e questões de cunho sociocultural e psicanalítico enquanto complementares na compreensão dos romances familiares.
1 Artigo elaborado a partir da tese de A.S. NEVES, intitulada “A violência física de pais e mães contra filhos: cenário, história e subjetividades”. Universidade de São Paulo, 2005.
2 Professora Doutora, Instituto de Psicologia, Universidade Federal de Uberlândia. Av. Pará, 1720, Bloco 2C, Campus Umuarama, 38400-920, Uberlândia, MG, Brasil.
3 Professor Doutor, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, Departamento de Psicologia e Educação, Universidade de São Paulo. Ribeirão Preto, SP, Brasil.
Estudos de Psicologia I Campinas I 23(3) I 299-306 I julho - setembro 2006
Referências
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