JORGE DE LIMA (1895-1953)
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E tudo haveria de ser assim, para contemplar-te sereno, ó morte,
e integrar-me nos teus mistérios e nos teus milagres.
Agora vejo os Lázaros levantarem-se
e...
18 novembro, 2008
TECNOLOGIAS INTELECTUAIS E MODOS DE CONHECER: NÓS SOMOS O TEXTO
Pierre Lévy
O que acontece quando lemos ou escutamos um texto? Em primeiro lugar, o texto é perfurado, ocultado, permeado de brancos. São as palavras, os pedaços de frases que não ouvimos (não só no sentido perceptivo, mas também intelectual do termo). São os fragmentos de texto os quais não compreendemos, não tomamos em conjunto, não reunimos uns aos outros, negligenciamos. Paradoxalmente, ler, escutar, é começar por negligenciar, por não ler ou desligar o texto.
Ao mesmo tempo em que rasgamos o texto pela leitura, nós o ferimos. Nós o recolocamos sobre ele mesmo. Nós relacionamos, umas às outras, as passagens que se correspondem. Os pedaços dispersos sobre a superfície das páginas ou na linearidade do discurso, nós os costuramos em conjunto: ler um texto é reencontrar os gestos textuais que lhe deram seu nome.
Escutar, olhar, ler, voltam finalmente a se construir. Na abertura em direção ao esforço de significação que vem de outro, trabalhando, atravessando, amassando, decupando o texto, incorporando-o a nós, destruindo-o, nós contribuímos para erigir a paisagem de sentido que nos habita. Confiamos, por vezes, alguns fragmentos do texto aos conjuntos de signos que se movimentam em nós. Estes ensinamentos, estas relíquias, estes fetiches ou esses oráculos não têm nada a ver com as intenções do autor nem com a unidade semântica viva do texto. Eles, contribuem, porém, para criar e recriar o mundo de significações que nós somos.
O hipertexto, a hipermídia ou a multimídia interativa percorrem um processo já antigo de artificialização da leitura. Se ler consiste em selecionar, esquematizar, construir uma rede de remissões internas ao texto, em associar a outros dados, em integrar as palavras e as imagens para uma memória pessoal em reconstrução permanente, então os dispositivos hipertextuais constituem uma espécie de reificação, de exteriorização dos processos de leitura. Já o vimos, a leitura artificial existe desde muito tempo. Que diferença podemos estabelecer entre o sistema que estava estabilizado sobre as páginas dos livros e dos jornais e aquele que se inventa hoje sobre as relações digitais? Em relação às técnicas anteriores, a digitalização introduz primeiro uma pequena revolução copernicana: não é mais o leitor que segue as instruções da leitura e se desloca no texto, mas é, de hoje em diante, um texto móvel, caleidoscópio que apresenta suas facetas, gira, torna e retorna à vontade diante do leitor.
De outra parte, a escritura e a leitura mudam seus papéis. Aquele que participa na estruturação do hipertexto, no traçado pontilhado das possíveis pregas do sentido, é já um leitor. Simetricamente, aquele que atualiza um percurso ou manifesta tal ou qual aspecto da reserva documentária contribui para a redação, encontra momentaneamente uma escrita interminável. As costuras e remissões, os caminhos de sentido originais que o leitor inventa podem ser incorporados à estrutura mesma dos corpus. A partir do hipertexto, toda leitura é uma escritura potencial. Mas sobretudo os dispositivos hipertextuais e as redes digitais desterritorializaram o texto. Eles fizeram emergir um texto sem fronteiras próprias, sem interioridade definível. Existe agora o texto, como se diz da água ou da areia.
O texto é colocado em movimento, tomado em um fluxo, vetorizado, metamórfico. Está assim mais próximo do movimento mesmo do pensamento, ou da imagem que nós dele fazemos hoje. O texto subsiste sempre, mas a página se oculta. A página, isto é, o pagus latino, o campo, o território situado pelo branco das margens, lavrada de linhas e semeada pelo autor de letras, caracteres. A página, pesada ainda da argila mesopotâmica, aderindo sempre à terra do neolítico, esta página muito antiga, se oculta lenCom efeito, os meios de comunicação contemporâneos instauraram uma ecologia de mensagens muito diferente daquela que prevaleceu até a metade do século XX. Certo, não nos banhamos jamais duas vezes no mesmo rio informacional, mas a densidade das ligações e a rapidez das circulações são tais que os atores da comunicação não têm maiores dificuldades em dividir o mesmo contexto. Daí, a pressão de universalidade e objetividade diminuiu. Como o tinha pressentido Mac Luhan, reencontramos, mas sobre uma outra órbita, a um nível de energia superior, certas condições de comunicação que reinaram nas sociedades orais. A história cruzada de suportes materiais e da relação ao saber poderia ser esquematicamente representada pelas interferências e os cavalgamentos de quatro ideais-tipos. Primeiro tipo: nas sociedades anteriores à escritura, o saber prático, mítico e ritual foi encarnado pela comunidade viva. Quando um velho morre, é uma biblioteca que queima. Segundo tipo: com o advento da escritura, o saber é carregado pelo livro, único, indefinidamente interpretável, transcendente, suposto que contém tudo: a Bíblia, o Corão, os textos sagrados, os clássicos, Confúcio, Aristóteles... Terceiro tipo – desde a prensa até essa manhã: aquela da enciclopédia. Aqui, o saber não é mais carregado pelo livro, mas pela biblioteca. Ele é estruturado por uma rede de remissões, perseguida talvez, desde sempre, pelo hipertexto. A desterritorialização da biblioteca a que assistimos hoje não é talvez senão o prelúdio à aparição de um quarto tipo de relação com o conhecimento. tamente sob a alta superfície informacional, seus signos desligados vão rejuntar a onda numérica (digital). Tudo se passa como se a numerização (digitalização) estabelecesse uma espécie de imenso plano semântico, acessível em todo lugar, para o qual cada um poderia contribuir para produzir, dobrar diversamente, retomar, modificar, redobrar... Há necessidade de o sublinhar?
Por uma espécie de retorno em espiral à oralidade das origens, o saber poderia ser de novo tomado pelas coletividades humanas vivas antes que por suportes separados. Somente esta vez, o portador direto do saber não seria mais a comunidade física e sua memória carnal, mas o cyberspace, a região dos mundos virtuais por intermédio da qual esta comunidade conheceria seus objetivos e se conheceria ela mesma como inteligência coletiva. Aqui, não visamos mais o futuro do texto clássico como na primeira parte de meu discurso, nem a invenção de uma nova escritura como na segunda parte, mas, para terminar, o basculamento em direção a toda uma outra ecologia da comunicação. A reunião dos documentos numerizados (digitalizados), programas inteligentes, de sistemas à base de conhecimentos, de suportes de simulação e de multimídias interativos, é já virtualmente realizada pela interconexão mundial de memórias informáticas. As mensagens eletrônicas construíram uma rede de comunicação internacional na qual se podem trocar e comentar toda sorte de dados. Mas como se orientar neste cyberspace onde correm mensagens e informações de toda ordem? Como se localizar em um fluxo? É preciso tentar desesperadamente fixar a forma do espaço científico, traçar as fronteiras das disciplinas? É preciso hierarquizar o essencial e o acessório? Mas, segundo qual critério? Para quem e por quanto tempo? Não é preciso antes se resolver a considerar o conhecimento como um espaço contínuo e flutuante, o mesmo para todos e diferente para cada um? Por que não projetar uma galáxia de mundos virtuais, exprimindo a diversidade dos saberes humanos, que não estaria organizado a priori, mas refletiria, ao contrário, os percursos e os usos de seus exploradores?
Quase vivas, essas cosmopedias(2) seriam estruturadas e reestruturadas, cartografadas e recartografadas em tempo real pela escritura e a leitura coletivas. Assim, o cyberspace de uma comunidade se reorganizaria automaticamente em função da relação movente que seus membros estabeleceriam com a massa de conhecimentos disponíveis. Desde que o indivíduo mergulhasse em uma cosmopedia, todo o espaço do saber reordenar-se-ia em torno dele, segundo sua história, seus interesses, suas interrogações, suas enunciações anteriores. Tudo o que a ele se referisse estaria próximo, ao alcance da mão. O que lhe importasse pouco distanciar-se-ia. As distâncias aí seriam subjetivas, as proximidades refletiriam as significações em contexto. As cosmopedias do século XXI não fariam mais as pessoas girarem em torno do saber, mas o saber em torno das pessoas.
Os instrumentos numéricos (digitais) oferecem a possibilidade de uma evolução em direção a uma maior democracia em relação ao saber. Mas nada é garantido. A hora na qual cada um reconhece que o conhecimento é o fundamento do poder, quando se repete por todos os lugares que a capacidade de aprender e de inventar sustenta o poder econômico, não há talvez outra via para uma renovação da democracia que não imaginar e colocar em obra formas não-excludentes de relação com o saber. Com este objetivo, a ideografia dinâmica, a cosmopedia, os mundos virtuais de significação dividida, o cyberspace para a inteligência coletiva são utopias que proponho à discussão crítica. Se nunca tais possibilidades virem o dia, então o Livro, a biblioteca, o imenso corpus proliferante e louco do saber, cessariam de nos sobrepor e de nos desenganar. A transcendência do texto começaria a declinar. Nós seríamos, talvez, menos irradiados pelo espetáculo mediático. A imanência do saber à humanidade que o produz e o utiliza, a imanência do povo ao texto, tornar-se-ía mais visível.
Por intermédio dos espaços virtuais que os exprimiriam, os coletivos humanos se jogariam a uma escritura abundante, a uma leitura inventiva deles mesmos e de seus mundos. Como certos manifestantes desse fim de século gritaram nas ruas “Nós somos o povo”, poderemos então pronunciar uma frase um pouco bizarra, mas que ressoará de todo seu sentido quando nossos corpos de saber habitarem o cyberspace: “Nós somos o texto.” E nós seremos um povo tanto mais livre quanto mais nós formos um texto vivo.
Fonte: http://portoweb.com.br/PierreLevy/nossomos.html
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