19 novembro, 2008

Ainda novos ares para a infância: tempo e devir



Ainda novos ares para a infância: tempo e devir
A obra gaguejante de Biely, Kotik Letaiev, lançada num devir-criança que não é eu, mas cosmos, explosão de mundo: uma infância que não é a minha, que não é uma recordação, mas um bloco, um fragmento anônimo infinito, um devir sempre contemporâneo.
G. Deleuze, Crítica e clínica, 1997, p. 129.

G. Deleuze, filósofo francês contemporâneo, distingue também dois modos da temporalidade. De um lado, temos o devir e, do outro, a história (Deleuze, 1992, p. 210-1). A historia não é a experiência, mas o conjunto de condições de uma experiência e de um acontecimento que têm lugar fora da história. A história é a sucessão de efeitos de uma experiência ou acontecimento. De um lado, então, estão as condições e os efeitos; do outro lado, o acontecimento mesmo, a criação, o que Nietzsche chamava de intempestivo. De um lado, está o contínuo: a história, chrónos, as contradições e as maiorias; do outro lado, o descontínuo: o devir, aión, as linhas de fuga e as minorias. Uma experiência, um acontecimento, interrompem a história, a revolucionam, criam uma nova história, um novo início. Por isso o devir é sempre minoritário.

As maiorias não se definem pelo número ou pela quantidade, mas porque são um modelo ao qual há que se conformar. As minorias, ao contrário, são potências não numeráveis ou agrupáveis em conjuntos (Deleuze; Guattari, 1997b, p. 174); elas não têm modelo, estão sempre em processo. O dinamismo das minorias, o que libera o devir é um certo nomadismo (ser nômade é alcançar velocidade, movimento absoluto, pode-se ser nômade sem sair do lugar. Cf. Deleuze; Guattari, 1997b, p. 50-4), um certo fugir do controle, da pretensão unificadora, totalizadora; é uma força de resistência, um "exorcizar a vergonha" (Deleuze, 1992, 212). Por isso o devir, o acontecimento e a experiência são verbos em infinitivo e não conjugados ou substantivos. Por isso a infância ou a criança não são propriamente acontecimentos, mas o devir-criança, o infantilar o são.

Entre a geografia e a história, Deleuze privilegia a primeira. Assim, sua ontologia é cheia de planos, segmentos, linhas, mapas, territórios, movimentos (Deleuze; Guattari, 1997a, p. 83 ss.). Os seres humanos - como todas as formas da vida - atravessamos simultaneamente espaços cruzados, entrelaçados, opostos. De um lado, estão os espaços da macro-política, o Estado, os segmentos molares, binários por si mesmos, concêntricos, ressonantes, exprimidos pela Árvore, princípio de dicotomia e eixo de concentricidade. De outro lado, os espaços da micro-política, os segmentos moleculares, o rizoma, aonde as binaridades vêm de multiplicidades, e os círculos não são concêntricos.

Esses espaços são co-extensivos, no campo social, e estão mutuamente imbricados, entrelaçados. Os dois espaços são reais: não há como habitar um deles sem, ao mesmo tempo, estar habitando também o outro. De modo que toda política é, a uma só vez, macro e micro. Na perspectiva de Deleuze, o que diferencia uma e outra política não é tanto uma questão de tamanho ou de escala, mas de massa, vibração e fluxo (Deleuze; Guattari, 1997a, p. 95). Enquanto os segmentos molares concentram, centralizam e totalizam, os fluxos moleculares vazam, escapam à captura, se conectam na diversidade, fogem da centralização e da totalização. Uma sociedade, uma instituição, um indivíduo são atravessados por linhas de um e de outro tipo.

Na macro-política, o possível é o que antecipa o real e o real é o que atualiza o possível a partir de um projeto político, ou político-educacional. Nela, o possível é anterior do real e dá sentido a uma prática política. Por exemplo, Platão, desde sua macro-política, pensava a infância como pura possibilidade e partir de sua utopia pedagógica buscava concretizar essa possibilidade espelhando-se nas formas puras de beleza, bem e justiça.

Na micro-política, o possível é o resultado da política, seu produto. Uma política do acontecimento, revolucionária, não é aquela que atualiza um projeto possível mas a que provoca o possível, a experiência; ela cria novos possíveis, novas possibilidades de vida, uma vida nova, uma nova política (Zourabichvili, 2000). Uma micro-política não parte da infância como possibilidade e não define uma educação que transforme a infância, atualizando suas já pensadas potencialidades. Uma micro-política gera novas potências infantis, devir-criança, infantilar. O possível é criado pelo devir, pela experiência, pelo acontecimento, pelo infantilar.

Devir-criança, infância e infantilar

Não é a criança que se torna adulto, é o devir-criança que faz uma juventude universal.
G. Deleuze - F. Guattari, Mil Platôs, 1997a, p. 69.

As distinções entre história e devir, chrónos e aión, macro e micro-política, podem nos ajudar a pensar a infância. Em certo sentido, há duas infâncias. Uma é a infância majoritária, a da continuidade cronológica, da história, das etapas do desenvolvimento, das maiorias e dos efeitos: é a infância que, pelo menos desde Platão, se educa conforme um modelo. Essa infância segue o tempo da progressão seqüencial: seremos primeiro bebês, depois, crianças, adolescentes, jovens, adultos, velhos. Ela ocupa uma série de espaços molares: as políticas públicas, os estatutos, os parâmetros da educação infantil, as escolas, os conselhos tutelares.

Existe também uma outra infância, que habita outra temporalidade, outras linhas, a infância minoritária. Essa é a infância como experiência, como acontecimento, como ruptura da história, como revolução, como resistência e como criação. É a infância que interrompe a história, que se encontra num devir minoritário, numa linha de fuga, num detalhe; a infância que resiste aos movimentos concêntricos, arborizados, totalizantes: "a criança autista", "o aluno nota dez", "o menino violento". É a infância como intensidade, um situar-se intensivo no mundo; um sair sempre do "seu" lugar e se situar em outros lugares, desconhecidos, inusitados, inesperados.

Somos habitantes dos dois espaços, das duas temporalidades, das duas infâncias. Uma e outra infância não são excludentes. As linhas se tocam, se cruzam, se enredam, se confundem. Não nos anima a condenação de uma e a mistificação da outra. Não somos juízes. Não se trata de combater uma e idealizar a outra. Não se trata, por último, de dizer como há que se educar as crianças. A distinção não é normativa, mas ontológica e política. O que está em jogo não é o que deve ser (o tempo, a infância, a educação, a política), mas o que pode ser (poder ser como potência, possibilidade real) o que é. Uma infância afirma a força do mesmo, do centro, do tudo; a outra, a diferença, o fora, o singular. Uma leva a consolidar, unificar e conservar; a outra a irromper, diversificar e revolucionar.

Talvez o conceito de "devir-criança", inventado por Deleuze e Guattari (cf., por exemplo, 1997a, p. 41 ss.), mereça ainda alguns esclarecimentos. Como acabamos de ver, o devir instaura outra temporalidade, que não a da história. Por isso mesmo, o devir não é imitar, assimilar-se, fazer como um modelo, voltar-se ou tornar-se outra coisa num tempo sucessivo. Devir-criança não é tornar-se uma criança, infantilizar-se, nem sequer retroceder à própria infância cronológica. Devir é um encontro entre duas pessoas, acontecimentos, movimentos, idéias, entidades, multiplicidades, que provoca uma terceira coisa entre ambas, algo sem passado, presente ou futuro; algo sem temporalidade cronológica, mas com geografia, com intensidade e direção próprias (Deleuze; Parnet, 1988, p. 10-15). Um devir é algo "sempre contemporâneo", criação cosmológica: um mundo que explode e a explosão de mundo.

O devir-criança é o encontro entre um adulto e uma criança - o artigo indefinido não marca ausência de determinação, mas a singularidade de um encontro não particular nem universal - como expressão minoritária do ser humano, paralela a outros devires (devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível, Deleuze; Guattari, 1997a, p. 11 ss.) e em oposição ao modelo e à forma Homem dominante. O devir-criança é uma forma de encontro que marca uma linha de fuga a transitar, aberta, intensa.

Afirma Deleuze que as crianças obtêm suas forças do devir molecular que fazem passar entre as idades (Deleuze; Guattari, 1997a, p. 70) e que saber envelhecer não é manter-se jovem, mas extrair os fluxos que constituem a juventude de cada idade (ibid.). Devir-criança é, assim, uma força que extrai, da idade que se tem, do corpo que se é, os fluxos e as partículas que dão lugar a uma "involução criadora", a "núpcias anti-natureza", a uma força que não se espera, que irrompe, sem ser convidada ou antecipada.

(Fragmentos do texto de Walter Omar Kohan, Professor de Filosofia da Educação da Uerj)




Um comentário:

Cerikky.. Cesar Ricardo Koefender disse...

Cerikky.. Cesar Ricardo Koefender disse...

Dia da criança ou devir criança?

Mais um dia instituído pelo mercado para vender produtos, ilusões e obter lucro. Óbvio.
As crianças - os consumidores sem dinheiro e improdutivos no sentido da mais-valia financeira - e os produtos para elas, estão na "ordem do dia, mais uma vez, nesta época do ano". Chegou o dia das crianças.

Opto pelo devir criança: força molecular que atravessa todas as idades e que se caracteriza por uma aguda - portanto mutável, passageira e situaçional -
observação da vida, dos afetos e dos acontecimentos; por uma entrega intensa às construções de relacionamentos edificantes e prazerosos; por uma quebra igualmente intensa daquilo que se convencionou chamar de "educação"... tudo recheado de muita seriedade e alegria e bom humor!