17 novembro, 2008

Guerra dos gêneros e guerra aos gêneros, por Suely Rolnik





No visível, o óbvio: uma guerra entre identidades sexuais, lutando por seus interesses; especialmente o assim chamado gênero feminino oprimido em luta contra o assim chamado gênero masculino, seu opressor. Mas só aqui dá para captar algo desta ordem, já que neste plano os personagens são feitos de figuras através das quais eles se representam, assim como nós os representamos; tais figuras são efetivamente classificáveis em identidades ou gêneros e funcionam segundo uma lógica binária de oposições e contradições, cujo atrito pode transformar-se em conflito. Já no invisível a coisa se complica, impossível aqui registrar algo da ordem do gênero, com sua lógica binária e suas oposições.

E mais: neste plano o que se capta é a produção do que justamente acaba por desestabilizar as figuras e, junto com isso, o quadro classificatório dos gêneros, sejam eles sexuais, raciais, étnicos ou outros quaisquer. São movimentos de forças/fluxos desenhando certas composições e desfazendo outras; aglutinações de novas composições produzindo diferenças, origem de pequenos abalos sísmicos nas figuras vigentes; acumulações progressivas de diferenças/abalos provocando terremotos. Figuras se desmancham, outras se esboçam; gêneros e identidades se embaralham, outros se delineam - e a paisagem vai mudando de relêvo.

Uma lógica das multiplicidades e dos devires rege a simultaneidade dos movimentos que compõem este plano. Estamos longe dos binarismos. Entre os planos, portanto, uma disparidade inelutável; nada a ver com oposição. No invisível, a infinitude do processo de produção de diferenças; no visível, a finitude das figuras nas quais os personagens se reconhecem, com suas identidades e seus gêneros. É notório o mal-estar que tal disparidade mobiliza: há sempre um ou mais personagens tomados por um estranho estado de desterritorialização, como que perdidos numa terra desconhecida sem no entanto sequer ter saído do lugar. São os momentos em que os personagens mais se apegam ao gênero, como numa espécie de tábua de salvação; passam a reivindicá-lo em altos brados e, raivosamente, atribuem ao gênero oposto a origem de seu desassossego. Este estado por vezes os leva a agrupar-se e o tumulto então se avoluma. Isto é o que registrariam radares caso pudessem rastrear a guerra dos gêneros tal como vem se travando nas últimas décadas.

No campo da subjetividade, pode-se distinguir culturas e épocas tomando como referência quanto e como se transita entre os planos visível e invisível; quanto e como se lida com a disparidade entre a finitude das figuras e a infinitude da produção de diferenças; quanto e como se encara o mal-estar que tal disparidade mobiliza. Muitas são as modalidades praticadas. No contemporâneo, por exemplo: se ampliássemos o espectro de nossos radares de modo a rastrear o ambiente em que eclode a guerra dos gêneros, os sensores sem dúvida registrariam a predominância de uma modalidade de subjetivação em que pouco se transita entre os planos. O que exatamente veríamos? Personagens que tendem a viver confinados no plano da representação, como se só existisse o que o olho alcança, insensíveis às forças e, consequentemente, às diferenças que suas composições engendram. Quase nada se registra no ambiente que pareça acolher o estranhamento que a disparidade entre os planos provoca; pelo contrário, quase tudo leva a crer que é possível instalar-se vitalício numa determinada figura sem que jamais tremam seus contornos; a impresssão é de que se acredita que tremores são pura expressão de fraqueza e que os fortes não tem isso. Há uma glamourização destas supostas figuras estáveis e donas de si, especialmente insuflada pela mídia, e que produz miragens de eternos vencedores.

No reluzente espelho de tais miragens, é grande a chance de, em algum momento, os personagens enxergarem-se como fracassados: a cada vez que um deles é abalado pela disparidade entre os planos, a reação mais comum é tomar o mal-estar que este abalo mobiliza como sinal de alarme anunciando perigo de desagregação; um verdadeiro calvário. Quando diferenças irrompem em cena, convulsionando as figuras estabelecidas, não se observa qualquer esboço de movimento de construção de modos de existência que as corporifiquem; o que cai na trama do espectro são personagens correndo esbaforidos de um lado para o outro, feito baratas tontas. Atordoados, eles parecem estar à cata de figuras idealizadas para identificar-se, de modo a reconstituir-se o mais rapidamente possível e encontrar seu lugar neste magma homogeinizado de subjetividades. Quando conseguem, alimentam sua ilusão de estabilidade e parecem apaziguar-se; mas o prêço que pagam é ver a vida enquanto potência de diferenciação, escapando de suas mãos. É nítida sua desvitalização. Mas certamente não seria apenas isto o que detectariam radares, se implantados nesta virada de século.

Um espantoso avanço das tecnologias de informação e de comunicação de massa, faria aparecer na trama de seu espectro um fato curioso: a maioria dos personagens, independentemente de onde estejam, encontram-se habitados pelo planeta inteiro ao mesmo tempo; uma imensa riqueza de forças/fluxos e, por consequência, de mestiçagens virtuais, aumenta indubitavelmente a potencialidade de engendramento de diferenças e de criação de mundos. Paradoxalmente, é evidente a limitação destes personagens para processar tamanha abundância; intolerantes à desestabilização, eles não se deixam facilmente afetar pelos efeitos das misturas em sua subjetividade. É gritante o contraste que se observa entre a exuberância de mundos virtuais e a mesmice das figuras em torno das quais se organizam. Prognóstico: o quadro pede uma mudança na política de subjetivação vigente. Parece que se há uma guerra a ser travada ela teria como um de seus principais alvos a libertação do confinamento no visível. Para isso seria preciso criar condições para que a experiência do mal-estar provocado pela disparidade fosse menos traumática e mais produtiva. Senão, corre-se o risco de a riqueza da paisagem contemporânea transformar-se em inferno: quando as figuras estabelecidas são tomadas como identidades e seu abalo traumaticamente interpretado como ameaça de desagregação, para manter-se no mesmo lugar, se é capaz de fazer qualquer coisa, inclusive matar.

A guerra dos gêneros é um exemplo disto, sem dúvida dos mais amenos se pensarmos no que se tem feito em nome de identidades nacionais, religiosas, étnicas e raciais. Mas esta visão da guerra dos gêneros não contradiz o sentido emancipador que se costuma atribuir-lhe? Sim e não: é verdade que esta guerra é de certo modo indispensável para que personagens do gênero oprimido, desqualificados socialmente, conquistem direitos civis e dignidade; mas não é menos verdade que ela os mantém confinados numa identidade, invertendo apenas seu valor, que de negativo se transforma em positivo. E o mais curioso é que esta simples inversão, além de manter tais personagens no mesmo lugar, às vezes até os reforça em seu modo de subjetivação identitário: fica adiado o confronto com a finitude e o trabalho que se faz necessário para dar vasão às diferenças emergentes. É que este trabalho implica a criação de contornos subjetivos singulares e efêmeros - e portanto não generalizáveis -, já que singulares e efêmeras são as misturas de forças/fluxos de que é feita cada diferença que vai se produzindo ao longo da existência. Caso de fato existissem radares apropriados para rastrear este tipo de guerra, o que eles implacavelmente nos mostrariam é que enquanto gêneros se degladiam no plano visível por uma causa politicamente correta - a luta por uma igualdade de direitos, que aliás no Brasil são especialmente desiguais -, no plano invisível, há uma proliferação de diferenças produzidas por uma hibridação cada vez maior de forças/fluxos, que não conseguem encontrar canais para sua existencialização. E quanto mais se degladiam os gêneros, mais se afirmam as identidades e menos canais se abrem para as diferenças; reciprocamente, quanto mais proliferam diferenças e mais aumenta sua pressão, mais apavoradas ficam as subjetividades com suas supostas identidades e mais defensivamente as enrijecem na tentativa de manter a ilusão de sua eternidade e proteger-se do terror que a finitude provoca.

Avaliar esta situação fazendo um esforço para nos deslocar de uma lógica da representação em direção a uma lógica das multiplicidades e dos devires, própria da dinâmica entre os planos, nos deixa um tanto perplexos. Explorada desta perspectiva, a guerra entre gêneros revela sua faceta de guerra a favor da perpetuação de gêneros e contra a processualidade da vida enquanto produção de diferenças. Conclusão: se quisermos evitar que a guerra politicamente correta dos e pelos gêneros se transforme numa guerra politicamente nefasta para a vida, será preciso travar simultaneamente uma guerra contra a redução das subjetividades a gêneros, a favor da vida e suas misturas. Neste ponto, o Brasil parece ter algo a dizer na questão dos gêneros. Trazemos a marca de uma certa facilidade para nos desfazer das figuras vigentes, e com elas das identidades e gêneros, sempre que necessário. Nossa fundação e nossa história é pontuada por mestiçagens. Habituados a nascer e renascer das misturas, somos constitutivamente híbridos; borram-se em nós desde o início as fronteiras entre figuras. Um dos movimentos do Modernismo brasileiro colheu esta marca de nossa cultura e decidiu afirmá-la positivamente, chamando-a de "Antropofagia"1. Estendendo esta idéia, hoje, para o campo do desejo, diríamos que antropofágico é o próprio processo de composição e hibridação das forças/fluxos, o qual acaba sempre devorando as figuras da realidade objetiva e subjetiva e, virtualmente, engendrando outras.

O grau de abertura para a antropofagia das forças/fluxos pode ser um critério para distinguir diferentes modos de subjetivação. Por este critério, diríamos que um modo de subjetivação é antropofágico quando tende a se constituir como existencialização das virtualidades engendradas na mestiçagem das forças/fluxos e não como resistência contra a finitude. Em outras palavras, um modo antropofágico de subjetivação se reconheceria pela presença de um grau considerável de abertura, o que implica numa certa fluidez: encarnar o mais possível a antropofagia das forças, deixando-se desterritorializar, ao invés de se anestesiar de pavor; dispor do maior jogo de cintura possível para improvisar novos mundos toda vez que isso se faz necessário, ao invés de bater o pé no mesmo lugar por medo de ficar sem chão. A antropofagia seria o princípio organizador deste modo de subjetivação. Um princípio radicalmente ateu, imanente à produção da realidade, cuja referência é a processualidade: as diferenças emergentes a partir das quais se traçará novos territórios e, indissociavelmente, suas cartografias.

Opera-se aqui um deslocamento do princípio que tem por referência uma representação de si e do mundo tomada a priori, seja ela qual for, mesmo que em nome de uma causa politicamente correta. Se o Brasil tem algum know how a oferecer para a guerra dos gêneros seria mais na direção de uma guerra contra a perpetuação dos gêneros. Isto passa pelo rastreamento de dispositivos que permitam desmobilizar o terror que a antropofagia nos causa, condição indispensável para incorporá-la como princípio organizador de nossos processos de subjetivação. A importância deste tipo de know how extrapola a guerra dos gêneros. A miscigenação contemporânea requer que mudemos o princípio que rege nossos processos de subjetivação, depurando-o dos resquícios do modelo que reduz a subjetividade à representação, se quisermos ampliar nossas chances de processar a riqueza que temos em mãos. Ao lado da guerra de gêneros é preciso cada vez mais levar uma guerra dos habitantes dos devires contra os adictos dos gêneros, inclusive e antes de mais nada, na arena de nossa própria subjetividade. Uma guerra de híbridos, mestiços, antropofágicos.
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1
O termo "antropofagia" foi proposto por um movimento muito polêmico que se desenrolou nos anos 20, no contexto do Modernismo no Brasil. Trata-se do Movimento Antropofágico, do qual a figura e a obra de Oswald de Andrade é uma das mais vigorosas expressões. Originalmente a noção designa uma das marcas presentes na cultura brasileira; nós a retomamos aqui para problematizá-la no campo específico dos processos de subjetivação no Brasil.

Suely Rolnik é psicanalista e trabalha com o referencial da Esquizoanálise e da Filosofia da Diferença, cujos principais autores teóricos são Felix Guattari e Gilles Deleuze.



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