17 novembro, 2008

Nietzsche 1



Na “Genealogia da Moral”, Nietzsche discorre sobre o ressentimento (1º dissertação), a má consciência (2º dissertação) e o ideal ascético (3º dissertação). Com relação ao ressentimento, Nietzsche diz, basicamente, que qualquer corpo sofre, ininterruptamente, fluxos que são investidos pelos nossos sentidos: o olho investe a luz, o olfato investe o cheiro, o paladar investe o sabor, etc. Essas forças que investem os fluxos são as forças de recepção, ou seja, tudo que chega a um corpo é imediatamente investido por essas forças. A luminosidade da luz, o cheiro e o sabor do alimento, o som de uma música: surgem, então, afetos (ou sentimentos) dessas afecções, gerando imagens desses afetos. Essas imagens vão, necessariamente, para o inconsciente, onde serão processadas pelas forças de recepção. Nota-se que as forças de recepção agem no nível consciente (indicando se um sabor ou um cheiro é agradável ou desagradável), mas também no nível inconsciente, onde há digamos, a digestão das imagens. É como o ato de alimentar-se: as forças de recepção do paladar investem no fluxo de um alimento para, em seguida, ser processado pelas forças de recepção do estômago. Pode-se dizer que existe um inconsciente do estômago que processa o alimento para, em seguida, distribuí-lo aos demais órgãos do corpo, produzindo a própria conservação do corpo. Portanto, as forças de recepção são também forças de conservação - elas agem no nível da consciência, mas também no nível do inconsciente.

Graças ao processamento das imagens que chegam ao inconsciente, um corpo sadio continua a receber os fluxos que o atingem sempre como algo inédito. O processo de recepção dos fluxos e o processamento das imagens não é interrompido. E quando é que ocorre a interrupção? Espinosa nos auxilia, sinalizando (“Ética”, proposição XVIII, parte III):

"O homem experimenta pela imagem de uma coisa passada ou futura o mesmo afeto de alegria ou de tristeza que pela imagem de uma coisa presente."

Os afetos podem ser alegres ou tristes. A alegria, para Espinosa, é o afeto que aumenta a capacidade de existir de um corpo; a tristeza é o afeto que diminui a capacidade de existir. Como um corpo sempre recebe novos fluxos, a sua potência está sempre em variação: imagens, imagens e mais imagens são formadas ininterruptamente. O ressentimento instala-se quando essas imagens deslocam-se do inconsciente para a superfície, ou seja, para a consciência. Nesse momento, os fluxos que são investidos pelos sentidos do corpo são bloqueados por uma imagem – que pode ser alegre ou triste - que fixou-se na consciência. Dessa forma, a leitura que se faz dos novos fluxos é sempre através de uma imagem do passado, que permite a interpretação da realidade no presente através dela. Dois exemplos:

- Um homem que não quer experimentar o novo, restando-o apenas recordar as alegrias que ocorreram na sua vida, mas que também convive com o tormento dos afetos tristes. Para ele, sair de casa é um sacrifício: ele não quer ser visto de jeito nenhum, pois tem medo do que os vizinhos vão falar dele. Em casa, quase não abre a janela, pois isso o faz lembrar das imagens de garotos que atiraram pedras contra a janela da sua casa;

- Num edifício, uma mulher não quer entrar no elevador sozinha, pois isso a faz lembrar das imagens de pessoas presas no elevador que ficou parado entre os andares. No restaurante, ela não quer comer tomates, porque ela se recorda do dia que engasgou-se ao tentar comê-los.

Sem dúvida, não há como evitar que as marcas deixem de vir à consciência; não precisamos nem fazer esforço, logo quando nos deparamos com algo que remete a uma imagem antiga, ela surge, continuando viva no presente: é assim quando olhamos para alguém que não conhecemos e, mesmo assim, a imagem daquela pessoa nos faz associar à imagem de alguém que é familiar a nós; ou então, quando se escuta um som na rua que faz lembrar uma agradável (ou desagradável) música. Imagens que permanecem nas profundezas do inconsciente e que, num instante, sobem à superfície, sem que haja um "eu" que ordene tal associação de afetos.

Mas tudo depende do uso que se faz das marcas. O problema é quando a marca domina. É quando res-sentimos a marca como única possibilidade de ter alguma sensação de prazer: uma retrospectiva dos bons momentos com o ex-namorado; o time de futebol que ganhou um título há dez anos; uma premiação recebida na época da universidade... Enfim, para o ressentido, qualquer afeto prazeroso vira algo como se fosse necessário "em si". “Recordar é viver”... E a marca também domina quando ela gera uma sensação de tristeza: o assaltante de tal rua e o medo de encontrá-lo novamente no mesmo local; o acidente de automóvel que não permite que a pessoa sinta-se novamente segura para dirigí-lo, etc. Resumindo: os afetos alegres e tristes, quando dominam, não permitem que a pessoa esteja novamente aberta aos fluxos que continuam atingindo-a (é como se os fluxos dissessem à ela: "A vida continua. Acorde!"). O mundo não é uma realidade fechada; a realidade é sempre aberta, tudo está em devir, pois quando se imagina que não há saída, sempre há saída... Um corpo saudável, para Nietzsche, é aquele que cultiva a arte do esquecimento: é a memória do futuro e não a do passado. Com relação a isto, retornarei mais adiante.

Portanto, o ressentido é, antes de tudo, um doente. Por não encontrar mais a superfície do acontecimento e da criação, ele rumina, rumina e rumina sempre as mesmas marcas. Os anos passam e ele não se dá conta disso. O sofrimento segue, a vida continua dolorida, a sua existência clama por algum sentido: “não é possível que a vida seja tão dolorida”, assim diz o ressentido. De fato, o ressentido tem a tendência de encontrar alguma explicação para o seu sofrimento. Agora, imaginem uma comunidade assim... É aí que Nietzsche, magistralmente, detecta aquele que irá tirar vantagem de uma massa doente: o sacerdote judaico, esse misto de “doença com vontade de poder”.

O sacerdote indica à massa ressentida a causa dos seus males: o culpado é sempre o outro. O outro deveria ter agido diferente. É como se um rebanho de ovelhas fosse atacado por um lobo. O pastor, então, indica a causa do sofrimento: o lobo não deveria ter agido. Para o ressentido, a realidade é dividida entre o “bem” e o “mal”: se o outro agir da forma que se espera dele, sem causar dano algum, ele é “bom”; mas se ele causar algum prejuízo, então ele é “mal”. Com o surgimento do sacerdote, a moral é instituída, o ressentido torna-se um tipo reativo, pois ele reage às forças ativas que lhe atingem, sempre procurando controlá-las, de forma que elas nunca lhe causem qualquer tipo de dano. O tipo reativo, refém da imaginação, acredita que é possível tornar o homem ativo (que age sem pensar nas conseqüências) num sujeito moral, pois enquanto ele não abaixar a cabeça e pedir desculpas, não será feita a “justiça”. Assim se multiplica o rebanho...

No “Ecce Homo”, Nietzsche diz porque escolheu a figura de Zaratustra (fundador da religião persa, que pregou a existência do “bem” e do “mal”) para anunciar o super-homem:

“(...) pois o que constitui a imensa singularidade deste persa na história é precisamente o contrário disso. Zaratustra foi o primeiro a ver na luta entre o bem e o mal a verdadeira roda motriz na engrenagem das coisas – a transposição da moral para o metafísico, como força, causa, fim em si, é obra sua. Mas essa questão já seria no fundo a resposta. Zaratustra criou este mais fatal dos erros, a moral: em conseqüência, deve ser também o primeiro a reconhecê-lo.” (“Porque sou um destino”, parte 3)

Com o poder sacerdotal instituído, o mesmo poder é alimentado pela massa reativa, que vira cúmplice do poder que as explora. Ora, a massa reativa somente se torna cúmplice porque o poder lhe indica os “bons” e os “maus” caminhos, os “amigos” e os “inimigos”. Além disso, o poder promete a “salvação”... É tudo que o ressentido quer: bons caminhos, bons amigos, bons encontros. E o sujeito “bom”, nesse caso, é aquele que pensa nas conseqüências da ação; portanto, ele somente age “conscientemente”, escolhendo entre o “bem” e o “mal”. Ele ainda acredita no livre-arbítrio. Mas se esse mesmo homem “bom” cometer uma ação que causará a tristeza em alguém, então ele terá agido “mal”. O tipo ativo é sempre um “mal” para uma sociedade ressentida, pois o ressentido quer conservar aquilo que lhe causa alegria, tornando-se refém de um objeto exterior a ele. Mas a natureza não funciona somente por conservação. A natureza age, a natureza acontece, a natureza se auto-produz através dos... encontros. A natureza é criativa...

Uma comunidade assim se multiplica através da subtração das forças ativas nos indivíduos. Tudo vira conservação. O indivíduo que age, que desestabiliza alguém ou uma sociedade, tem que ser punido. Por ser ativo, vira uma ameaça séria. O sacerdote é um paranóico total, precisa controlar as massas para continuar no poder. Evidentemente, ele é também um tipo ressentido, mas encontrou a saída para eliminar as suas dores, as suas angústias e a sua fragilidade diante da existência, através dos “benefícios” do poder. Somente o impotente deseja o poder.

A tristeza das massas torna-se ódio. Ódio aos que as exploram, ódio aos que a causam tristeza. Ódio aos “maus”. Espinosamente falando, o homem da imaginação - por ser refém dos afetos de alegria e tristeza que são gerados através dos encontros - ama aquilo que lhe causa alegria e odeia aquilo que lhe causa tristeza. O ressentido quer conservar o objeto que lhe causa alegria e quer destruir o objeto que lhe causa tristeza. Ao querer conservar ou destruir o objeto, ele permanece distante do entendimento daquilo que lhe causa: as relações que ele tece na sua vida, giram sempre sob a exigência de ser abastecido por afetos alegres causados por um objeto exterior. Ele exige que esse objeto continue fornecendo-o sempre afetos alegres; mas quando isso não acontece, ele chega até a odiar o mesmo objeto. Surge, então, uma cena estranha: ama-se e odeia-se o mesmo objeto.

Enquanto se vive submisso à moral, o sujeito não entende nada com o que lhe acontece: julga o outro, imagina que a causa de tudo que lhe acontece sempre está no objeto. Mas a ética nos indica outro meio: o foco, na verdade, está sempre na relação que se estabelece com os outros corpos, com os fluxos que nos atingem. Não existe “mau” ou “bom” em si; é tudo uma questão de modo de relacionar-se.

Por exemplo: dependendo do modo que eu me relaciono com a luz do Sol, eu posso ter um bom ou mau encontro com ela. Se eu olhar diretamente para a luz do Sol durante um certo tempo, eu poderei sofrer sérios danos à minha visão, diminuindo a potência do meu olho de enxergar; em contrapartida, se eu não olhar para o Sol consigo viver a minha vida sem ser prejudicado por ela. Mas se eu ficar deitado na areia da praia durante horas, a minha pele poderá desenvolver um certo tipo de câncer, etc. Sabemos que a luz do Sol é necessária para a saúde do meu corpo e para a própria condição da vida na Terra, portanto ela é necessária. O bom ou o mau, nesse caso, já não indica um julgamento moral, mas sim o modo de me relacionar com as potências externas a mim, aumentando ou diminuindo a minha capacidade de agir, de existir e de pensar. Portanto, tudo na natureza é modo de relação. O mesmo Ser (a luz solar) pode ser útil ou prejudicial para mim. E nem por isso o homem moralizou o Sol... Mas ele conseguiu moralizar as relações humanas... É esse tipo ressentido que cria o poder, na forma de uma religião, de um Estado, de uma lei, etc., para seguir com a sua existência.
Vimos que o sujeito que ressente enxerga a realidade à sua volta de acordo com os afetos das marcas que não foram processadas. A vida vira um tédio, tudo vira tristeza e dor. Os fluxos novos que chegam a ele são bloqueados pelas marcas, algo como uma “prisão de ventre”. As dores, então, devem ser eliminadas através do conhecimento do que as causa. O sacerdote indica as causas do sofrimento, acusando aquele que cometeu uma ação “má” contra o seu rebanho. Nesse momento, o ressentido passa a ser um tipo reativo. Ele não age, apenas reage: a sua reação é uma vingança contra aquele que lhe causou uma tristeza, ou seja, uma diminuição da potência de existir. Como a causa do “mal” é identificada, o reativo exige uma punição àquele que agiu de forma imoral: quando isso acontece, ele sente até uma certa alegria ao ver que o outro recebeu “aquilo que merecia”. Portanto, o castigo sofrido pelo sujeito que agiu de forma "maldosa" vira uma fonte da alegria do tipo reativo. É a alegria dos homens tristes, de Espinosa. Pagar na mesma moeda: eis o sentimento de justiça que move o tipo reativo.

Mas apesar das acusações, da vontade de vingança, da “justiça” consumada, o reativo continua - salvo efêmeros momentos de prazer – sofrendo muito. Algo estranho se passa com ele: a dor existencial não é eliminada com a vingança. Mais acusações, mais “culpados” são identificados e, no entanto, a dor continua. Na “Genealogia da Moral”, Nietzsche diz que o ódio judeu não é uma oposição à compaixão cristã: num certo momento, a acusação torna-se um perigo a um Deus tão bondoso, mas que não consegue eliminar – através do culto ao ódio - a dor do rebanho. “Será, então, que é esse Deus o verdadeiro culpado pelo nosso sofrimento?” – imagina o rebanho. Então, São Paulo cria aquilo que, segundo Nietzsche, foi o golpe de gênio do cristianismo:

“(...) o próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus pagando a si mesmo, Deus como único que pode redimir o homem daquilo que para o próprio homem se tornou irredimível – o credor se sacrificando por seu devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!...” ( 2° dissertação, 21).

Segundo São Paulo, a culpa pelo sofrimento do tipo reativo não é mais dos outros (o ódio judeu), mas sim do próprio sofredor (o pecado), que somente será expiada através do amor ao próximo (a compaixão cristã).

As forças ativas voltam-se para dentro, gerando uma interioridade. Como um corpo, para Nietzsche, é constituído de forças de recepção e de forças ativas, as forças de recepção (ou de conservação) dominam as forças ativas (ou de criação) naquele que ressente. Há uma hierarquia fundamental que é invertida, pois, para Nietzsche,

“(...) uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força – a própria vida é vontade de potência -: a autoconservação é apenas uma das indiretas, mais freqüentes conseqüências disso” (“Além do Bem e do Mal”, Capítulo 1, 13).

Assim, as forças ativas continuam existindo no corpo daquele que ressente, mas essas forças não são mais vazadas através ato criativo; pelo contrário, elas voltam-se contra o próprio corpo. A dor se multiplica, acumulando-se, tornando-se insuportável. Esse movimento é formalizado pelo sacerdote através do pecado ou o "grande erro": “A culpa é sua, pois em algum momento da sua vida, você errou!”. O cristianismo surgiu ao produzir a culpa no crente, mas, simultaneamente, ofereceu a saída para a expiação dos pecados. A fórmula da salvação? Ser “bom”, não cometer atos “maus”, ter “compaixão”, não esquecer dos “pecados”, em suma, não ser ativo.

Eis a má-consciência: a consciência marcada, pecadora, culpada. Crer no “reino dos céus” é a única saída para a salvação daquele que ressente. A dor tem que ser eliminada, nem que seja no mundo do além. Não crer nisto - assim imagina o crente - é esperar pelo sofrimento infinito, simbolizado pelo “inferno”. Amor ao próximo, mas também aos inimigos. Jesus, ao morrer na cruz, disse: “Perdoai-os Pai, pois eles não sabem o que fazem”. Mas esse “amor” é, na verdade, uma nova forma de “ódio”: o cristianismo universalizou-se, ganhou novos ares, pois pelo mundo afora não cansou de encontrar sujeitos sofredores, ressentidos. Os ativos, os que nem consideravam a existência de Deus, foram perseguidos, jogados à fogueira, demonizados. Tudo em nome do “amor” cristão.

Mais uma vez, em nome da salvação, o poder é desejado, produzido constantemente. “Sem o poder, teremos o caos total” – assim pensa o vulgo. O importante é entendermos que Nietzsche avaliou o valor dos valores: o que quer a vontade de ter e de servir ao poder? O que quer a vontade de idealizar? O que quer a vontade de nada? O que levou Schopenhauer a desejar o Nirvana?

(Este artigo, texto, me foi enviado pela internet, por uma fonte confiável, mas sem a indicação de autor)

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