17 novembro, 2008

Carta a um psicoterapeuta, por Kesselman



Um e-mail a um jovem psicanalista do ano 2050
de Hernán Kesselman
Psiquiatra, psicanalista, psicodramatista

Publicado na Revista Topía: psicoanálisis, sociedad y cultura N° 32. Buenos Aires 2001
Tradução autorizada pelo autor e realizada pela Dra. Irina Dicovsky. Buenos Aires

Buenos Aires, agosto de 2001.
Esta carta lançada numa garrafa ao oceano cibernético foi escrita por um psicoargonauta para dialogar, além de sua época, com outro psicoargonauta que a recolha para ressoá-la em todas as direções possíveis e impossíveis.

Está escrita nos tempos "globalífilicos" do neoliberalismo selvagem e das reações "globalifóbicas". Numa Argentina que se nega a declarar-se desaparecida e onde impera o desespero diante da exclusão social.

Quero contar-lhe algo sobre a origem dos meus heterónimos aos quais chamo: Dispossíveis. Síntese de disposição, de possibilidade diferente, de estar no ato biográfico, e suas conexões e relações desenvolvidas no meu exercício assistencial, da pesquisa e da docência, assim como na minha vida cotidiana até fazer deles uma forma de sentir, atuar, de pensar e comunicar-se. Lhe dizer como se impuseram sem que os chamasse. Como reapareceu assim Fernando Pessoa, o poeta que tinha lido na minha adolescência mas que me consoou agora em todo o potencial de sua característica fundamental como escritor: a heteronímia. De como influiu não só para transitar minha cotidianidade pessoal senão também para propô-la aos integrantes do meu entorno profissional, como ferramenta e como janela para a revisão de todos os esquemas referenciais, com os quais operava no campo do estudo das cartografias e taxonomias do comportamento humano. É a proposta de um procedimento otimista para brincar de viver várias vidas sem ter que viver várias mortes.

Heterônimo foi o termo escolhido por Pessoa para designar diferentes personagens, biografias, estilos com os quais foi mascarando seu ortônimo (seu próprio nome). Para "outrar-se", fazer-se outro, desde essa capacidade histero- neurastênica que ele mesmo dizia que tinha. E o faz para diferenciá-lo da palavra "pseudônimo" que seria assinar com outro/s nome/s para não ser reconhecido como a mesma pessoa, que usam alguns autores.

Na década de ’60 voltei a interrogar os paradigmas que dominavam a psiquiatria manicomial, desde minha prática hospitalar em Lanús, com Mauricio Goldenberg; junto ao impacto dos ensinamentos de Bleger, de Pichón Riviére, e minha formação psicanalítica com Marie Langer e Emilio Rodrigué que resultou em Plataforma: a busca de uma Psicanálise aberta. Na psicologia vincular, o estudo da psicopatologia e da psicofarmacologia vincular, que incluíam o conteúdo pessoal do curador (cuidador) já que para ser curador é preciso conhecer e reconhecer o ferido que todos levamos dentro.

As cenas temidas em nós, os psicanalistas, puderam ser partilhadas com outros na medida em que puderam se corporizar em cenas dramáticas e transitar a via reggia da di-versão. O sentido do humor permitiu-nos brincar com nossos temores com maior simplicidade que se os classificássemos como unidades patológicas (fobias, hipocondrias, obsessões, persecuções, depressões, confusões, etc.)

As leituras de Deleuze e Guattari e a clínica antropofágica proposta pelo tropicalismo brasileiro, abriram os axiomas rígidos da psicologia dominante e estimularam a invenção desde a esquizanálise e a Obra Aberta de Umberto Eco, o que levou a Pavlovsky e a mim a conceber evoluções e práticas da multiplicação dramática em todos os terrenos. E, em vez de reduzir interpretativamente, as desdobrávamos por multiplicação ressonante de e pelos outros.

Embora houvesse o aparecimento de variações sinfônicas no campo da psicopatologia vincular, sentia que devia realizar um rodeio para sua revisão.

No caminho nutri-me com alimentos provenientes da arte, a filosofia e a literatura. Neste caso, 25 anos depois, brincando com os heterônimos.

Refletindo ironicamente com respeito às patologias que me capturam na solidão, comecei a batizar com nomes próprios as personagens que habitam em mim nos meus piores e melhores estares (meus dispossíveis). Personagens que tinham vida e nome próprio. Conviviam num único corpo. Podiam se tornar independentes e corporificar-se. Começo, então, a pesquisar com paixão o afazer heteronímico de Fernando Pessoa. Nele, as personagens se impõem desde una escritura automática como se ele mesmo fosse um médium para que se expressem, muitas vezes dizendo coisas que não pensa nem sente, escrevendo com estilos diferentes e habitando-os com biografias, fisionomias e caracterologias diferentes entre si. Ele designa um deles, o mais jovem e rude, Alberto Caeiro, mestre de seu próprio ortônimo e de seus heterônimos, especialmente de Ricardo Reis - seu amigo poeta monárquico pagão- e de Álvaro de Campos –o apaixonado triunfal, que assina seus próprios poemas explosivos. O único livro que assina com seu ortônimo é Mensagem. Há, inclusive, semi-heterônimos (porque são quase iguais a ele mas um pouco mutilados, como Bernardo Soares).

A crise de identidade do mundo globalizado e suas produções de subjetividade predominantes no fim do milênio no qual nos movíamos, nos apresentava mais uma vez as aberturas dos paradigmas que fechavam nossa mobilidade.

Encarcerados na certeza de que não podemos ser mais que aquele que somos, não podemos levar adiante o desejo tão humano, tão lúdico, tão tipicamente infantil de poder ser muitas personagens, diferentes entre si. É assim como, junto às condições histórico-sociais que nos determinam, não podemos viver outras vidas salvo na ficção literária, no teatro, no cinema, o sonho. E, no meu caso, na cena clínica do psicodrama analítico e a multiplicação dramática.

Desde a heteronímia, Pessoa atreveu-se a viver tantas vidas como "pessoas" escreviam. Numa disjunção inclusa, porque aos heterônimos associou seu próprio ortônimo.

Por acaso não somos na vida profissional o conjunto de máscaras que se vinculam entre si, com poses e gestos que vão além do antifaz do rosto? E isto vale para terapeutas e pacientes em qualquer continente em que sejam utilizadas ferramentas psicológicas. Eu ofereço-lhes brincar de batizar seus dispossíveis.

Dos trânsitos transculturais podem surgir composições que transformam a nostalgia das perdas em novas oportunidades de criação. Partido para sempre entre a Argentina e a Espanha, pelo exílio e o des-exílio, partilho os privilégios que consoam com Pessoa, esta esquizofrenia cultural de sabores, cores, lembranças, cheiros, ritornelos. Deve ter, provavelmente, influenciado fortemente meu gosto pela heteronímia e o tema do duplo que tanto fascinaram a Cortázar e Borges, como aconteceu a Octavio Paz, a Saramago e a Tabucchi.

Antonio Tabucchi - escritor italiano, autor da novela Afirma Pereira e de Um baú cheio de gente, entre outros - veio a ser tão estudioso e apaixonado por Pessoa que fê-lo circular por seus romances e o levou a adotar Portugal como seu segundo lar, e de colocar Pessoa como uma sombra fantasmagórica que pode aparecer de repente em qualquer de suas narrações ou em seus recorridos por Lisboa.

Deleuze e Guattari, são a presença fértil de Pessoa na obra filosófica ( O quê é a Filosofia?) e lhes inspiram a concepção de "personagens conceituais": "A personagem conceitual não é a representante do filósofo, é, inclusive, seu contrário. As personagens conceituais são os ‘heterônimos’ do filósofo, e o nome do filósofo, o mero pseudônimo de suas personagens". Eles falam, também, de "figuras estéticas" que, a diferença das personagens conceituais (potência de conceitos) são potências de afetos e percepções.

José Gil, propôs uma convergência entre o pensamento de Deleuze e o de Pessoa, e atreveu-se a "afirmar" que aquilo que às vezes aparece explicitado em Deleuze, por exemplo em Mil Mesetas, aclara e ilumina aquilo que pôde ter sido uma rápida e simples anotação de Pessoa no O livro do Desassossego (Bernardo Soares).

A filosofia de Deleuze e Guattari e a poesia de Pessoa têm um centro comum: a multiplicidade. Por isso, por ir e vir uma e outra vez de um a outros autores.

Gil profetizava uma cartografia da heteronímia que me anima a tentar construí-la com meus colegas e pacientes.

Existe una "assembléia de corpos e almas" na psicologia do encontro com a qual habitamos o espaço da cena demonstrativa, explorando o ballo in maschera pirandelliano no qual um diretor busca as personagens que habitam num protagonista que representa o profissional que emprestou seu script para se descentrar, remover o rosto, na covisão grupal. Nessa busca indaga-se àqueles que o habitam antes e durante a entrevista, em qual heterônimo disponível, ou seja, em qual dispossível se encontram os atores até chegar a uma captura mútua que se quer abrir no jogo multiplicador. Até um gaguejar cênico que habilita a multiplicação ressonante dos outros para fabricar des-tempos possíveis, desterritorializações e se inventem multi-recursos futuros.

Neste caminho me cruzo, também, com Oliverio Girondo (Espantalho): "Eu não tenho uma personalidade; eu sou um coquetel, um conglomerado, uma manifestação de personalidades..."

Pessoa como Álvaro de Campos, revela-nos em Passagem das horas o segredo de sua multidão:

"Multipliquei-me, para sentir

Para me sentir, precisei sentir tudo,

Transbordei, não fiz senão extravasar-me,

Despi-me, entreguei-me,

E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente."

Por isso, caro destinatário, convido-lhe a lembrar, com Pessoa, este e-mail na calçada de seu café habitual "A Brasileira", onde eu mesmo fui ao seu encontro. Em pose metálica está o poeta com uma cadeira vazia para quem estiver disposto a se sentar com ele. Não fala, mas sabe escutar. Seus olhos de escultura sob o chapéu talvez lhe examinem atentamente o rosto. E até lhe distraiam do fragor do mundo de peregrinos que vão a revisitá-lo em Lisboa. Quiçá desde sua incapacidade se conecte com a Sua e dispare outros dos seus próprios dispossíveis.



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