17 novembro, 2008

Necessária e impossível sabedoria, por Edgar Morin






O que é uma vida racional? Não existe nenhum critério racional para defini-la. No limite, pode-se perguntar se comer e viver de modo sadio, não correr riscos, nunca ultrapassar a dosagem prescrita significam realmente viver, ou melhor, se a via racional não é uma vida demente. Não é loucura pretender erradicar nossa loucura? A vida comporta um mínimo de desperdício, gratuidade, “consumação” (Bataille), desrazão. Castoriadis disse: “O homem é esse animal louco cuja loucura inventou a razão.”

Ser racional não seria, então, compreender os limites da racionalidade e da parte do mistério do mundo? A racionalidade é uma ferramenta maravilhosa, mas há coisas que excedem o espírito humano. A vida é um misto de irracionalizável e racionalidade. Seria necessário aprender, de qualquer modo, a brincar com esta parte irracional de nossas vidas e saber aceitá-las.


Foi o mundo moderno que fez surgir o conceito de razão, e foi a partir do momento em que o sentido da palavra razão foi fixado que a razão tornou-se desracionalizável. Desde então, a dialética, ou melhor, segundo meus termos, a dialógica entre sapiens e demens instalou-se no interior do racionalismo e da razão.


Agora, então, nos damos conta de que a racionalidade vai nos fornecer algumas indicações para a pesquisa da sabedoria perdida, mas que, finalmente, não vamos encontrar nela um guia de vida. Quanto mais cremos que a razão nos guia, mais deveríamos estar inquietos a respeito do caráter desracionalizável desta razão.


Retomemos agora um aspecto existencial: o que é a vida? A vida é um tecido mesclado ou alternativo de prosa e de poesia. Pode-se chamar de prosa as atividades práticas, técnicas e materiais que são necessárias à existência. Pode-se chamar de poesia aquilo que nos coloca num estado segundo: primeiramente, a poesia em si mesma, depois a música, a dança, o gozo e, é claro, o amor. Prosa e poesia eram intimamente entrelaçadas nas sociedades arcaicas. Por exemplo, antes de partir em expedição ou no momento das colheitas, havia ritos, danças, cantos. Encontramo-nos numa sociedade que tende a disjuntar prosa e poesia e na qual há uma imensa ofensiva da prosa ligada ao desenvolvimento técnico, mecânico, gélido, cronometrado em que tudo se paga, tudo é monetarizado. A poesia tem, certamente, ensaiado defender-se nos jogos, festas, bandos de companheiros, nas férias. Cada um, em nossa sociedade, ensaia resistir à prosa do mundo, como, por exemplo, nos amores clandestinos, por vezes efêmeros, sempre erráticos. Há pacotes prontos para consumir a poesia que se vende nos clubes de férias, como o Clube Mediterrâneo, por exemplo; lá vive-se num mundo sem dinheiro, mas evidentemente tudo já foi pago adiantado. Em resumo, a poesia é a estética, o amor, o gozo, o prazer, a participação e, no fundo, é a vida! Mas o que é uma vida racional? Implica levar uma vida prosaica? Loucura! Mas somos parcialmente obrigados a isso, porque se tivéssemos uma vida permanentemente poética, não a sentiríamos mais. É-nos necessária a prosa para que possamos ressentir a poesia. Sobre ela, gostaria de me referir àquilo que George Bataille denomina “consumação”, quer dizer, o fato de nos queimarmos num grande fogo interior, oposto ao mero consumo, que é um fenômeno de supermercado.


É preciso aceitar a “consumação”, a poesia, o dispêndio, o disperdício, uma parte da loucura na vida... Talvez seja isso que constitui a sabedoria. Sabemos que a atitude de gozar – e entendo, por isso, que, gozar a vida, curtir uma boa refeição, um bom vinho, implica, simultaneamente, a atitude de sofrer.

Se aprecio um bom vinho, espero quando me obrigam a beber um vinho que considero ruim, enquanto que se não tivesse essa atitude, poderia muito bem beber o que quer que fosse com a mesma indiferença. De modo semelhante, a atitude para a felicidade implica a atitude para a infelicidade. É evidente que, se conhecemos a felicidade com alguém que nos é caro e esse alguém nos abandona, tornamo-nos infelizes porque justamente havíamos conhecido a felicidade. A atitude de racionalização consistiria em dizer: para não ser infeliz, não amarei mais ninguém e, desse modo, não passarei mais desgostos. O Tao-te-ching diz: ”A infelicidade caminha de braços dados com a felicidade, e a felicidade deita-se ao pé da infelicidade.” Você chama a felicidade, tira as conseqüências dela, que implicam aceitar a infelicidade.

Encontramo-nos aqui diante de uma situação muito difícil, pois não existe um programa de sabedoria. O que existe, em contrapartida, é a idéia de que não podemos prescindir da dialógica sempre em movimento entre nossa polaridade de demens e sapiens. Bem entendido, pode-se e deve-se evitar a pior demência: mas isso que é a sabedoria?

Eu veria o esforço da sabedoria em outro lugar, eu o veria no esforço da auto-ética. A auto-ética implica inicialmente evitar a baixeza, evitar ceder às pulsões vingativas e maldosas. Isso supõe muita autocrítica, auto-exame, aceitação da crítica do outro. Diz respeito, também, aos universitários e aos professores de filosofia, que não são melhores do que ninguém, mesmo que a despeito dos manuais de filosofia. A auto-ética é, antes de mais nada, uma ética da compreensão. Devemos compreender que os seres humanos soa seres instáveis, nos quais há a possibilidade do melhor e do pior, uns possuindo melhores possibilidades do que outros. Devemos compreender também que os seres possuem múltiplas personalidades potenciais e que tudo depende dos acontecimentos, dos acidentes que ocorrem com eles e que podem liberar alguns deles.

Na auto-ética, e principalmente no plano elementar da recusa das idéias de vingança e punição, é onde se situa o centro da sabedoria. É nessa auto-ética para si e para o outro que se encontram implicadas virtudes antigas que nos remetem à via oriental: saber distanciar-se de si mesmo, saber objetivar-se. Quero falar destas práticas que consistem em se ver como objeto, sabendo integralmente que se é sujeito, em poder descobrir-se, examinar-se, etc. Esse distanciamento pode ser tentado de modo direto, como no caso de Montaigne. O esforço de introspecção é vital, mas o que é péssimo é que ninguém o ensina. Não somente não é ensinado, mas também é ignorado, como entre os psicólogos behavioristas, para os quais a única coisa que conta é o comportamento, ou os neurocientistas para os quais o que existe é o cérebro e os neurônios, e para os quais a introspecção não tem nenhum valor.


É necessário, entretanto, ensinar e aprender a saber distanciar-se, saber objetivar-se e aceitar-se. Seria igualmente necessário saber meditar e refletir a fim de não sucumbir a essa chuva de informações que nos cai sobre a cabeça, ela mesma sucumbida pela chuva do amanhã, que nos impede de meditar sobre o acontecimento presente no cotidiano, não permitindo que o contextualizemos ou que o situemos. Refletir é ensaiar, e uma vez que foi possível contextualizar, compreender, ver qual pode ser o sentido, quais podem ser as perspectivas. Mais uma vez, para mim, a linha de força de uma sabedoria moderna consistiria na compreensão.


Falo de um ponto de vista pessoal, porque não posso fazer como se tudo isso fosse anônimo. Participei recentemente de um colóquio sobre o amor e me pareceu que se falava do amor de um ponto de vista exterior. Todos nós vivemos o amor, e essa vivência faz parte de nós. No que me concerne, ensaio assumir não apenas minha própria dialógica de sapiens-demens, mas também a dialógica entre as quatro forças que são muito poderosas em mim, na qual nenhuma delas chega a dominar as outras e na qual eu aceito a coexistência e o conflito.

Quero falar da dúvida e do misticismo. É por isso que amo Pascal, que se tornou um autor-chave para mim. Encontro nele esta alta racionalidade e o conhecimento dos limites da razão. Ele sabia que a ordem da caridade ultrapassava a da racionalidade. Pascal era filho de Montaigne, embora tenha guardado sua própria fé. De minha parte, não possui essa fé num deus da revelação, mas fé em alguns princípios que podem ser chamados de “valores”. Não vejo o meu misticismo como o de Santa Teresa d’Ávila, cujos “Êxtases” muito admiro, nem como o de São João da Cruz , ainda que haja nele uma visão extremamente profunda da relação entre conhecimento e ignorância. Creio que posso ressenti-lo, por exemplo, numa flor, num pôr-do-sol, numa visão. Em minha dialógica, nenhum elemento destrói o outro, É dessa forma que assunto o problema. Assumo mesmo a contradição entre uma curiosidade que me leva à dispersão e a necessidade de me reconcentrar para produzir o fruto de minha experiência e de meu pensamento, quer dizer, O Método. Por um lado, digo a mim mesmo, que tenho necessidade de conhecimento complexo – e sei que isso é racional. Tenho necessidade de conhecer cada vez mais as ciências que trazem revelações sobre a vida, o universo e realidade... Mas até que ponto minha necessidade de conhecimento é ela mesma racional? Sei perfeitamente que adquirir um saber total é uma tarefa impossível. Adorno diz de modo apropriado: ”A totalidade é a não-verdade.” Ao mesmo tempo, não chego a ficar profundamente triste em virtude dessa necessidade de conhecimento, e isso porque a necessidade de saber é o que ocorre no mundo. Digo sempre a mim mesmo: seria sábio renunciar a ser cidadão deste mundo e se sujeitar a quaisquer processos sem ensaiar refletir sobre eles? Vejo e vivo essa contradição. Finalmente, creio que as grandes linhas da sabedoria se encontram na vontade de assumir as dialógicas humanas, que podem ser resumidas na dialógica sapiens-demens e na dialógica prosa-poesia.

A sabedoria deve saber que contém em si uma contradição; é inteiramente loucura viver muito sabiamente. Devemos reconhecer que na loucura, que é o amor, há a sabedoria do amor. No amor da sabedoria, ou da filosofia, falta amor. O importante na vida é o amor: Com todos os perigos que ele contém.

Mas isso não é o suficiente. Se o mal que sofremos e fazemos sofrer reside na incompreensão do outro, na autojustificação, na mentira a si próprio (self deception), então o caminho da ética – e é aí que introduzirei a sabedoria – reside no esforço da compreensão e não na condenação, no auto-exame que comporta a autocrítica e que se esforça em reconhecer a mentira para si próprio.


Fonte: Morin Edgar. Amor, poesia, sabedoria. 7ª edição- Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 2005.


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