17 novembro, 2008

Nossa humanidade, por Leloup






No pensamento hebraico, quando beijamos alguém descobrimos o grande sopro que nos é comum. Saímos da dualidade para descobrir a dualidade que está em nós. Assim, em certos encontros humanos, há uma experiência de transcendência que alcança a profundeza da pele. Paul Valery dizia: “Se vocês soubessem como a pele é profunda!” Há uma dimensão numinosa que depende, é claro, da forma como se é tocado ou de como se toca alguém. Já dizia Graf
Durckeim”Quando você tocar alguém não toque nunca um corpo. Não se esqueça de que você toca uma alma com toda sua história”. Lembremos disso não só em uma relação amorosa, mas quando temos que acompanhar uma pessoa doente ou agonizante.
Pode acontecer de sermos tocados não apenas como homem ou como uma mulher (o que já é muito!), mas podemos ser tocados como um deus ou uma deusa, reconhecendo em nós a luz que está em nossa matéria, o mistério que somos e que esta mão muito doce e muito respeitosa nos revelou. Quando a mão de nossa mãe foi tão doce, a mão de nosso pai ou de um amigo foi tão leve, ficamos com a nostalgia daquele toque e nos tornamos insatisfeitos com todos os contatos que possamos ter. O absurdo e a graça – maneiras diferentes de sermos tocados. Portanto, como é no nosso corpo que podemos viver o absurdo e a graça, há nele memórias de absurdos bem como memórias de beleza e de graça.
Através da experiência da separação, da diferenciação, podemos talvez conhecer o que podemos chamar a “graça de uma aliança”. O que eu amo no outro não é o que se parece comigo, não é o que eu compreendo dele, mas o que ele tem de diferente. Amo nele o eu não compreendo.

Assim, em cada encontro humano, podemos apreender este mistério da alteridade, respeitá-lo ou negá-lo, reduzi-lo ao igual, reduzi-lo a uma coisa qualquer. Durante as guerras, quando se quer executar um prisioneiro, vendam-se seus olhos. Vendar os olhos de uma pessoa é esquecer que há, neste ser mortal e transitório, algo que nos olha. E que neste olhar não se dá simplesmente pela cor dos olhos.
Deus talvez seja este ponto inacessível onde dois olhares se encontram. Não é você, não sou eu, você e eu podemos não mais nos entendermos, mas há uma realidade entre nós. Há o grande terceiro, que é indissolúvel entre nós.

Fala-se da indissolubilidade do matrimônio e, entretanto, tudo é solúvel no tempo. O desejo muda, ele é solúvel no tempo. Um grande afeto nem sempre resiste à rotina, à vida quotidiana. O compartilhar os mesmos pensamentos, as mesmas idéias, não é durável. Ocorrem então conflitos, oposições, onde cada um quer opor e impor seu pensamento ao outro. Tudo é solúvel no tempo.

O que é indissolúvel? O indissolúvel não sou eu nem você, é o terceiro que está entre nós. Enfatizamos isso porque nosso amor não depende só de nós, não depende só de nossos humores, de nossa inteligência, de nossa afeição. O nosso amor deve acolher como uma realidade o que está entre nós, mas que não nos pertence. Aqui encontramos uma experiência do numinoso, além da dualidade e que a física contemporânea chama de “o terceiro incluído”. Este terceiro é o que nos permite estar ao mesmo tempo juntos e diferentes. O amor é que nos unifica e o que nos diferencia.

Às vezes são nossas experiências do absurdo que nos ajudam a nos diferenciar. Ajudam-nos a sair da fusão. Ajudam-nos a sair do “pequeno um”, o “um” da criança no ventre de sua mãe. Podemos chamar então de “um indiferenciado” e “um diferenciado”. Este é todo o sentido do número três, pois para ser “um” é necessário ser três. O amante, a amada, o amor. A natureza, a arte, o encontro. São três locais da nossa humanidade, de nossa vida humana, onde podemos sentir essa ambivalência do real que, ao mesmo tempo, nos constrói e nos destrói. Somos então conduzidos, através desta ambivalência, do absurdo e da graça que vivemos, a conhecer um estado que os contém. Aproximamo-nos do grande símbolo taoísta onde o negro é o negro e o branco é branco, onde não há mistura e também não há separação.
Por Jean-Yves Leloup em Além da luz e da sombra: sobre o viver, o morrer e o ser, RJ, Vozes, 2001.



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